03 Setembro 2016
"As mudanças climáticas são um problema global e só podem ser combatidas por algum tipo de consciência global e um sentido do bem comum que envolva toda a humanidade", afirma o editorial do jornal inglês The Guardian, 01-09-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo o editorial, precisamos da "ajuda de pessoas que sejam claras sobre a distinção entre humanos e deuses. Aqui entra o Papa Francisco tem jogado o peso do seu papado sobre o movimento ambiental de uma forma sem precedentes. Ele não está sozinho. Todas as religiões mundiais organizadas têm agora uma forte consciência ambiental. Todas elas são afetadas".
Há menos de uma semana, a Conferência Internacional de Geologia declarou que devemos reconhecer que entramos em uma nova era geológica, o Antropoceno, em torno de 1950. As mudanças que fizemos no planeta agora são irreversíveis, e os seus efeitos continuarão durante os milênios por vir. No entanto, essa pode vir a ser a mais curta de todas as eras geológicas, uma vez que não há garantia de que os seres humanos irão sobreviver, aqueles que sobreviverem, aos resultados da sua própria atividade.
Pelos últimos 2,5 bilhões de anos, desde que as cianobactérias encheram a atmosfera da Terra com o oxigênio livre, venenoso para quase todas as outras formas de vida na época, nenhuma espécie teve tal efeito sobre o ambiente como nós. Mas nós não somos bactérias. Somos a única espécie capaz de refletir sobre o nosso impacto. Temos agência moral. Podemos prever as prováveis consequências das nossas ações, levá-las em consideração e, então, fazer escolhas. Em relação ao ambiente, essas escolhas frequentemente foram erradas e mostram poucos sinais de estarem certas a tempo de nos salvarem de mudanças climáticas muito grandes e prejudiciais.
O problema é um clássico da teoria dos jogos, que as democracias liberais estão mal preparadas para lidar. A confiança e a cooperação conduziriam ao melhor resultado para todos, mas cada jogador ou Estado-nação vai se beneficiar mais no curto prazo com uma política de egoísmo e traição. A falta de ciclos eleitorais no mundo rico significa que quase todos os governos precisam de crescimento econômico hoje, qualquer que seja o custo a ser pago com juros cruéis no futuro. Esse vai ser um problema de outras pessoas, assim como os efeitos das mudanças climáticas agora parecem ser um problema de outras pessoas, até quando essas outras pessoas começam a fugir da guerra, da fome e da doença e aparecem nas margens do mundo mais rico.
As mudanças climáticas são um problema global e só podem ser combatidas por algum tipo de consciência global e um sentido do bem comum que envolva toda a humanidade. É aí que os esforços das religiões mundiais se tornam importantes. Edmund Leach, o grande antropólogo britânico, disse na sua Conferência Reith em 1967: "Os homens se tornaram como deuses (...) A ciência nos oferece total domínio sobre o nosso ambiente e sobre o nosso destino". Mas essa confiança parece oca hoje. Mesmo que a "ciência" estivesse nos oferecendo esse domínio total – e fenômenos como a resistência aos antibióticos sugerem que não está – Leach assumiu um mundo em que os cientistas eram autoridades reconhecidas acima de toda a disputa política. A emergência do negacionismo das mudanças climáticas mostra o quão errado ele estava ao fazer isso.
Talvez, então, precisemos da ajuda de pessoas que sejam claras sobre a distinção entre humanos e deuses. Aqui entra o Papa Francisco, que tem jogado o peso do seu papado sobre o movimento ambiental de uma forma sem precedentes. Ele não está sozinho. Todas as religiões mundiais organizadas têm agora uma forte consciência ambiental. Todas elas são afetadas. Ser uma religião mundial é, por definição, ter adeptos tanto entre os inimaginavelmente pobres quanto os inimaginavelmente ricos.
No entanto, o Papa Francisco tem dedicado um esforço e um capital político consideráveis na tentativa de construir uma teoria coerente que possa mostrar como os danos ao nosso ambiente também nos prejudicam, e não apenas aos nossos hipotéticos descendentes. Isso realmente importa. O interesse próprio só irá funcionar no benefício comum se se entender que nós mesmos somos criaturas mutuamente dependentes que se prejudicam quando prejudicam umas às outras.
Como o papa afirma, "os seres humanos estão profundamente ligados entre si e à criação na sua totalidade. Quando maltratamos a natureza, maltratamos também os seres humanos". A dificuldade é ligar esses sentimentos com a ação prática, e é isso que a sua iniciativa mais recente sugere imaginativamente. O cuidado com o ambiente, doravante, deve ser considerado pelos fiéis católicos como uma "obra de misericórdia" – aquilo que o mundo exterior chamaria de um ato de caridade. Eles são chamados a uma "grata contemplação do mundo" como uma disciplina espiritual, mas também com um tipo de gestos pequenos e um pouco inconvenientes como reciclar, usar o transporte público ou mesmo apenas desligar as luzes desnecessárias, o que, por si sós, são quase sem sentido, mas, quando praticados por bilhões de pessoas, fazem uma mudança real e muito necessária.
Tudo isso, diz ele, deve ser entendido como "simples gestos cotidianos, pelos quais quebramos a lógica da violência, da exploração, do egoísmo"; e, embora o mundo precise, sem dúvida, de ações enormes e dramáticas para romper o ciclo da exploração e das mudanças climáticas, ele também precisa de pessoas comuns para fazer a sua parte simplesmente com tais gestos simples.
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Papa Francisco: uma voz improvável pelo ambiente. Editorial do jornal The Guardian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU