09 Agosto 2016
"Em junho de 2013, a trama da terra tremeu. Embalada por um ciclo global de lutas, a multidão foi às ruas disputar a metrópole e explodiu com as ambiguidades e coexistências. A linha da multidão desabrochou num feixe de tendências até então desconhecidas, para além das variáveis hegemônicas do governismo, que não pôde lidar com elas nem poderia, tamanho o envolvimento e a cumplicidade com o que de pior os arranjos da política maior traziam consigo. A força de junho de 2013 colidiu com a postura reativa e paranoica do governismo, que transformou a luta por hegemonia numa comédia ideológica. As ideias – esquerda, desenvolvimentismo, keynesianismo – passaram a funcionar como placebos, numa zona indiscernível entre utopia e cinismo, em todo caso impotência. A única potência que puderam agenciar, por meio do estado, foi criminalizar as lutas, neutralizar seus elementos de autonomia e disseminar o medo, o que chegou ao clímax nos caldeirões de Hamburgo e operações firewall da Copa das Tropas e nas campanhas de 'desconstrução' de tudo o que esboçasse opor-se ao projeto governista de hegemonia", afirma o texto coletivo produzido por UniNômade, 06-08-2016.
Segundo o texto, "o debate que queremos promover é sobre a renda universal incondicionada e o Comum como gestão e acesso radicalmente democráticos aos serviços e às instituições, impulsionados por um novo ciclo constituinte de lutas que têm nas ocupas das escolas e na mobilização nacional indígena duas referências fundamentais de potência e autonomia".
Eis o texto.
Formada em 2001, a Rede Universidade Nômade – Brasil (Uninômade) produziu um sem número de atividades, eventos e publicações nos últimos quinze anos, porém relativamente poucos textos coletivos. Valem lembrar cinco deles: o manifesto fundador, Para uma universidade nômade; a convocação de um Fórum pela radicalização democrática (2005); o abaixo-assinado de crítica à política de habitação conduzida pelo PT no Rio de Janeiro (2009); o artigo O comum e a exploração 2.0 (2012) e o manifesto Uninômade + 10: tatu or not tatu (2012). Cada um desses textos foi um esforço de reinvenção diante de novos problemas que se apresentavam. Cada um traçou uma configuração dinâmica de linhas de continuidade e ruptura, em relação às trajetórias e relações da rede. Neste, elabora-se uma ruptura que, se já está dada nos últimos anos, precisa ser reafirmada em todo o significado e alcance que o seu gesto comporta. Trata-se da ruptura com o cadáver do pós-governismo [1].
Este é um gesto calcado sobre a nossa história de êxodos, através dos platôs de uma política menor. Nesses 15 anos, a Uninômade foi atravessada por linhas de intervenção que, embora não tenham se originado dela nem nela se resolveram, deram vida as suas produções. Podemos apontar-lhe a coexistência de duas grandes linhas: uma que chamaremos de linha de multidão e a outra de linha de hegemonia. As duas linhas estiveram misturadas, ora ressoando, ora produzindo pela dissonância.
Ao se formar no começo da década passada, a Uninômade perseguiu a linha de multidão, quando reforçou as práticas de composição entre uma dissidência minoritária no interior da universidade pública e a iniciativa de cursos pré-vestibulares para negros e pobres. Estava em questão participar do grande movimento em curso no Brasil pela democratização do acesso à produção universitária para além dos canais institucionais do estado e dos muros corporativos e sua concepção fechada de autonomia.
Na época, decidimos participar da luta pela política de cotas raciais que era do conjunto do movimento negro, sobretudo depois da conferência de Durban (2001), mas que boa parte da esquerda brasileira recusava, inclusive a cúpula do PT e alguns dos seus mais influentes intelectuais. Nessa linha, também se inserem as relações estabelecidas com fóruns de lutas, coletivos de produção cultural, rádios livres, mobilizações de camelôs ou indígenas, midiativismos, além de uma linha editorial em geral pensada nas lutas e para as lutas [2].
A linha de hegemonia, paralelamente, apostava na prática de estar dentro e contra o governo Lula e se destacou em três momentos: o primeiro com o abaixo-assinado contra a greve da UFRJ de 2003; o segundo enquanto resposta à crise do mensalão com o Fórum pela Radicalização Democrática, em 2005; e o terceiro na experiência, rapidamente abortada pela nomenklatura petista, do Núcleo de Biolutas, em 2011.
A linha de hegemonia levou a rede a produzir manifestos em defesa do governo Lula, por meio do que se viabilizariam plataformas de democratização e políticas do comum, – tais como os Pontos de Cultura, o microcrédito popular, a eletrificação rural, ou a Bolsa Família trabalhada como embrião para uma Renda Universal, capazes de prover condições materiais para impelir as lutas a um novo patamar de potência, segundo um circuito virtuoso de ações institucionais e a inteligência coletiva da multidão.
Esta linha de hegemonia tornou-se a mais visível e, ao redor dela, se gerou alguma coesão à diversidade de grupos e pessoas que compunha a rede. Os atritos e dissonâncias entre as duas linhas nem sempre se resolviam produtivamente, pois a linha de hegemonia, isto é, o efeito-governismo, terminava por se impor. Isto aconteceu, por exemplo, quando se tentou converter a vitória contra a greve na UFRJ em mobilização para a defesa das cotas.
Ou quando o Fórum pela Radicalização Democrática não obteve nenhum sucesso em consolidar uma interlocução com o Ministério da Cultura (MinC). Foi assim, ainda, quando o bloco do governismo passou a identificar Lula a Vargas [3] e decidiu investir na “Aceleração do crescimento”.
O que era um momento tático de consolidação das políticas sociais se tornou um movimento estratégico de planificação central e imersão oligárquica nos esquemas do biopoder brasileiro: máfias eleitorais, empreiteiras da ditadura, coronelismo. Mais tarde embrulhado como “nova matriz econômica” e encontrando em Dilma a sua face mais emblemática, se inicia aí o pesadelo prometeico da recriação das tendências que, no discurso intervencionista, se pretendia corrigir.
Com a assimilação neodesenvolvimentista da crise do capitalismo global em 2008-09, a modernização prometida para garantir o futuro do país já não guardava ponto de contato com o percurso democrático das reformas de base ou a cristalização de novas instituições defendidas pelo desenvolvimentismo dos anos 50, reduzindo-se a um experimento autoritário, contra as lutas.
A evidência da virada já era incontornável logo após a posse de Dilma, em meio ao Brasil Maior dos megaeventos e do agronegócio, ao desmonte do MinC, à distopia de Belo Monte e outras barragens [4], à remoção de pobres, ribeirinhos, quilombolas, favelas, ao desprezo com a demarcação de terras indígenas e com a reforma agrária.
Nesse momento, estava dada a inviabilidade de uma linha de multidão continuar funcionando com a linha de hegemonia que a relação com o bloco do governismo vinha condicionando. Mesmo assim, em 2011, a Uninômade insistiu na promoção do Núcleo de Biolutas, ainda segundo a lógica dentro e contra.
Hoje, os leaks proporcionados pela operação Lava Jato, a Glasnost que os seus efeitos vêm determinando, e o Chernobyl que foi a devastação em Mariana demonstram que àquela altura as duas linhas não podiam mais coexistir de maneira produtiva, ainda que somente em junho de 2013 a UniNômade tenha se dado conta da irreversibilidade da nova configuração.
Hoje, seis anos adentro na década de 2010, ficou claro também como aquela composição tão diversa da rede se mantinha por certo afeto – meio nostálgico, meio identitário, meio oportunista – de “ser governo”, embora o PT e o governo nunca estivessem nem um pouco preocupados com as críticas ou o pensamento nômade. Eis aqui um elemento necessário de autocrítica.
Contudo, a linha de multidão não deixou de acompanhar a trajetória da Uninômade, inclusive por ocasião do manifesto pela radicalização democrática (2005), com as críticas ao PT e à corrupção. Essa persistência da multidão fez a Uninômade acontecer novamente, no momento em que a cola governista passou a paralisar a dinâmica produtiva da rede, assim como de outros coletivos e movimentos.
A inclinação para fora do governismo havia começado em 2009, nas interações com o movimento pela moradia no Rio de Janeiro, do que resultaram dois abaixo-assinados contra a política de remoções conduzida pelo PT na cidade, por meio da secretaria municipal de habitação. E se consolidou em 2012, depois dos envolvimentos com o ciclo de acampadas quinzemaístas e Occupy, como na OcupaRio (na Cinelândia) e na Ocupa dos Povos (durante a conferência da ONU, a Rio + 20), com as sucessivas reelaborações teórico-políticas decorrentes da série Brasil Menor de colóquios em contraponto ao pesadelo do Brasil Maior [5].
Nesse ano, ainda, ficou claro como, para assenhorear-se das verbas corruptas do governismo, a linha de hegemonia queria fazer das redes culturais/digitais e do trabalho precário não o terreno para novas lutas, mas a atualização pós-moderna da exploração, a serviço do estado e do mercado.
Finalmente, em meio à Cúpula dos Povos, e apesar dos desentendimentos, no evento terra a terra [6] a linha da multidão se abriu para hibridizar-se com a afirmação ameríndia do perspectivismo e a crítica feroz ao aceleracionismo economicista [7], esposado pelo governo.
Até que, em junho de 2013, a trama da terra tremeu. Embalada por um ciclo global de lutas, a multidão foi às ruas disputar a metrópole e explodiu com as ambiguidades e coexistências. A linha da multidão desabrochou num feixe de tendências até então desconhecidas, para além das variáveis hegemônicas do governismo, que não pôde lidar com elas nem poderia, tamanho o envolvimento e a cumplicidade com o que de pior os arranjos da política maior traziam consigo.
A força de junho de 2013 colidiu com a postura reativa e paranoica do governismo, que transformou a luta por hegemonia numa comédia ideológica. As ideias – esquerda, desenvolvimentismo, keynesianismo – passaram a funcionar como placebos, numa zona indiscernível entre utopia e cinismo, em todo caso impotência. A única potência que puderam agenciar, por meio do estado, foi criminalizar as lutas, neutralizar seus elementos de autonomia e disseminar o medo, o que chegou ao clímax nos caldeirões de Hamburgo e operações firewall da Copa das Tropas e nas campanhas de “desconstrução” de tudo o que esboçasse opor-se ao projeto governista de hegemonia.
A repressão de junho foi uma decisão consciente do governo do PT, indesculpável sob qualquer ótica de realismo político, e amparada inclusive por intelectuais que atuam mais como funcionários de propaganda do que pensadores. Em vez dos impasses serem metabolizados para um novo impulso, foram simplesmente negados, por meio da postulação conformista de ondas reacionárias, mídias malignas e terríveis retrocessos – como os Caminhantes Brancos de Game of Thrones, absolutamente outros, viriam do nada para destruir a civilização petista. O resultado, previsível e previsto, foi empurrar a justa indignação no colo de grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL).
A ruptura se manifestou, enfim, nas eleições de outubro de 2014. A linha de hegemonia foi dirigida à adesão mal disfarçada do “voto crítico” para a reeleição de Dilma e Temer, outro nome para a estratégia de fechamento das brechas. A partir daí, a comédia ideológica do governismo replica sucessivos atos, cada vez mais curtos e sem consistência, ao redor do “voto crítico”: o Fora Cunha, os frentismos “populares”, o #NãoVaiTerGolpe, até chegar no “Fora Temer” quando apresentado de maneira casada ao Volta Dilma – ou Lula, em 2018.
A retórica marqueteira do golpe pretende imobilizar as lutas em nome da volta do PT ao governo, ainda que, paradoxalmente, os desdobramentos do evento de junho acabaram percolando, como linha minoritária, inclusive os protestos mais simpáticos ao petismo. Na medida em que o eterno retorno do idêntico, seja Dilma ou Lula, vai se tornando um retrato na parede, é possível que essas linhas moleculares junhistas se libertem de vez do pós-governismo e, assim, evoluam numa dinâmica expansiva.
Cabe aqui um parágrafo sobre a candidatura de Marina no primeiro turno daquelas eleições. A Uninômade não tomou posição e escolhemos não tentar unificar posições, que variavam entre “voto crítico”, “abstenção e/ou nulo” e “Marina”, por não apostar mais numa nova linha de hegemonia.
Independentemente disso, a estigmatização reservada à candidatura de Marina e seus simpatizantes pelo governismo e suas linhas auxiliares foi sintomática. Marina foi duas vezes ministra de Lula e representava uma resistência consistente ao projeto neodesenvolvimentista que ele e as empresas “campeãs nacionais” decidiram colocar nas mãos de sua gerente, Dilma.
Marina funcionava como um contrapeso de dentro do governo, do mesmo modo que os índios e os operários das barragens e estádios tentavam frear de fora o novo regime (acelerado) de exploração. Ora, por um lado, muitos não acharam sequer estranho do ponto de vista democrático que, depois do terremoto de junho de 2013, a candidata que mais ameaçava o bloco governista tivesse sido eliminada por uma canetada cartorial.
Os mesmos que gritavam, diante da multidão, contra o fascismo da classe média, acharam normal, “legal”, a decisão de instituições das mais antidemocráticas: cartórios e justiça eleitoral. Os mesmos que agora atribuem o governo pós-impeachment a um golpe de estado minimizam o fato que votaram Temer e, em favor de sua eleição, participaram de uma campanha de hegemonia que contribuiu para saturar o ambiente político – sobretudo, o “de esquerda” e mesmo de ativismo – de binarismos, difamações, lacrações, linchamentos virtuais.
Não se trata aqui de decidir se Marina seria uma alternativa, – como se alternativas houvesse à mão na prateleira de uma política maior esgotada, – mas de apreender as consequências desse episódio.
Quando Dilma se reelegeu e começou a fazer exatamente o oposto do que dizia o marketing, não havia mais condições para fazer-nos engolir o estelionato eleitoral. Em poucos dias, carregando já um enorme fardo de erros estratégicos e táticos, o governo ficou paralisado sob o peso das próprias mentiras.
***
Primeiramente: reintegração dos garis demitidos pelo consórcio mafioso PT-MDB no Rio de Janeiro.
Não há onda conservadora no mar de violência e injustiça que ainda caracteriza o país mesmo depois de 14 anos de governo federal petista. Pelo contrário, a trama da terra continua tremendo. Os garis do Rio continuam se organizando em seu Círculo Laranja apesar da repressão dos governos do PT-MDB, os coletivos de jovens ocupam os espaços de escolas em várias cidades do Brasil, as periferias e os povos indígenas continuam resistindo à política do extermínio. A nova matriz econômica, última floração do desenvolvimentismo brasileiro, felizmente, foi desmontada. A operação Lava Jato está ameaçando a casta como um todo.
A saída não virá pelo Brasil Maior, mas, por outro lado, também não virá simplesmente da prisão em massa dos corruptos e corruptores, sem a construção de novas instituições e a regeneração das existentes, a partir do ímpeto de lutas e indignações. Não há atalhos, nem pela via economicista, nem pela punitivista.
A luta dos garis do Rio constitui um ponto de perspectiva bem interessante. Dentro dela, o levante de junho está vivo e ao mesmo tempo atravessado por um sem número de potencialidades e dificuldades. Os garis são um dos mais potentes desdobramentos do movimento de junho de 2013 e fizeram da luta da categoria em fevereiro de 2014 o terreno de construção de sua autonomia, em ressonância com a metrópole mobilizada pós-junho. Demitidos às centenas pelo consórcio mafioso do PT-MDB que governa o Rio, não puderam usufruir da mordomia de traduzir as divagações, as pretensões pequeno-acadêmicas e os clichês paranoicos em análise política [8].
O que os garis estão fazendo de diferente então? Em primeiro lugar, um trabalho massacrante, limpar a cidade, produzir a sua saúde ambiental. Em segundo lugar, desdobrar o fragmento de autonomia que conquistaram em termos de autovalorização. Para isso, adotaram duas práticas: uma na crítica da representação, a outra, na crítica da reestruturação-modernização. Na crise da representação, o Círculo Laranja optou por apresentar candidatos próprios a vereador. Diante da automação da limpeza urbana, determinada pela força de suas lutas, os garis têm como desafio transformar-se em agentes de saúde, em particular dentro das favelas e periferias que vivem uma situação permanente de emergência sanitária: falta de saneamento básico, lixões a céu aberto, endemia de zika, dengue, chikungunya etc.
A crise da representação e a transformação do trabalho (automação) são, ao mesmo tempo, produto das lutas e impulso para novas. Atravessar a representação com uma candidatura independente é uma das maneiras de enfrentar a repressão, mas também de construir um terreno de disputa do próprio desenvolvimento da cidade: o que fazer da modernização produzida pelas lutas?
O ponto de vista dos garis nos parece, assim, uma das melhores maneiras para apreender os enfrentamentos reais que temos pela frente: o futuro dos efeitos da Lava Jato e as reformas de Temer e Lula. Pode-se destacar, ainda, a participação da Uninômade na construção de outros círculos de cidadania e em plataformas cidadãs para inovar na campanha municipal de 2016, sob o contágio dos municipalismos constituintes de Barcelona e Madrid [9].
Ensaiada no Rio de Janeiro nos episódios da greve dos bombeiros e da resistência da Aldeia Maracanã, a ruptura foi, definitivamente, em Junho de 2013. Junho também foi a indignação pelas grandes obras e gastos sem critério, pela prioridade dada aos estádios em detrimento da saúde e educação, pela recusa à representação política baseada na exploração e na corrupção sistematizadas.
Basta lembrar no Rio que, além da campanha “Cadê o Amarildo”, das ocupas e do “Fora Cabral”, também se mobilizou contra a corrupção entranhada no sistema político-econômico e a PEC 37, que sustava poderes de investigação do ministério público. O terremoto de junho abalou os bunkers do marketing eleitoral, abrindo uma brecha por onde, depois, viria a passar a investida da Lava Jato.
Assim, ainda que sustentando uma face justicialista atrás de rostos culpados por saquear os fundos públicos, a Lava Jato também abre um questionamento incontornável sobre a lógica sistêmica da política brasileira. Se a restauração à direita e à esquerda foi bem sucedida em obturar os elementos mais constituintes do levante de 2013, dois anos depois a operação Lava Jato conseguiu prolongar-lhe alguns efeitos, impelida por uma mobilização em ruas e redes na casa dos milhões. A operação chegou a um ponto crítico, com dois desdobramentos: por um lado, ela visa hoje o mundo político no seu conjunto, o próprio Congresso na quase totalidade. Pelo outro, está se tentando replicar a operação no Rio de Janeiro, – com as prisões do esquema do Cabral e do almirante envolvido no escândalo da Eletronuclear, – em São Paulo, com a prisão do ex-ministro de Lula e Dilma, Paulo Bernardo, – e em Brasília, com a denúncia em face de Lula.
A destituição de Dilma e a campanha contra o golpe ofuscam a preparação de outro enfrentamento: entre a Lava Jato e a casta política aninhada nos principais partidos e poderes. Que junho de 2013 tenha podido gerar efeitos inclusive por meio da Lava Jato – cuja lógica interna, em última instância, também é de casta – não deixa de ser um problema e desaconselha comemorações apressadas. A questão material que se coloca, agora, talvez não seja tanto o que no fundo é a Lava Jato, segundo algum modelo do que deveria ser, mas sim o que se pode fazer dela, de seus efeitos e resultados, de sua potência (anti)política e aparente legitimidade social.
Depois da sua quase certa confirmação, o governo Temer tentará três eixos de reformas bastante perversas para os trabalhadores e os pobres: da previdência, do teto dos gastos públicos e da flexibilização da CLT.
Aos três eixos, pode-se associar também um rol de privatizações, algumas já em andamento, chamadas eufemisticamente, — como, aliás, o governo do PT já fazia, – de “venda de ativos”.
O rearranjo da coalizão mafiosa no poder se deu mais porque Dilma não tinha forças para realizar essas reformas, do que por barrar alguma guinada à esquerda, sequer cogitada. Que fique claro, essas reformas eram parte do programa real da presidenta para o segundo mandato, como ela mostrou, depois do fiasco da nova matriz econômica, com o ajuste desajustado que levou o país à depressão [10]. O pior de tudo é que, agora, essas reformas presididas por Temer encontrarão a sua legitimidade na catástrofe econômica que foi o período dilmista, entre erros estratégicos e frequentes trapalhadas.
Ao passo que a questão do teto dos gastos não consegue sequer reunir o consenso dos economistas neoliberais, pois depende da retomada do crescimento, precisamos opor às outras duas reformas, previdência e flexibilização, uma segunda via, outra reforma que as reconfigure dentro de um novo sistema de proteção social. Isto significa recusar a reforma da previdência e, ao mesmo tempo, abrir o caminho para uma nova forma de proteção social que abarque todas as modalidades de precariedade e flexibilidade já existentes.
O debate que queremos promover é sobre a renda universal incondicionada e o Comum como gestão e acesso radicalmente democráticos aos serviços e às instituições, impulsionados por um novo ciclo constituinte de lutas que têm nas ocupas das escolas e na mobilização nacional indígena duas referências fundamentais de potência e autonomia.
Se o ambiente está saturado de dispositivos de captura e binarismos estéreis, se o rigor mortis do governo do PT contamina as redes do pós-governismo, como o veneno inoculado que sobrevive à cobra, é preciso um gesto de descompressão. Vivemos um momento-chave em que, sem absorver os impasses de maneira produtiva, a repetição do mesmo fará rodopios desesperados ao redor de fantasmas.
Pôr-se não na marginalidade de um processo mórbido, mas fora, porque é aí onde estão os indignados que são muitos. Já fizemos, na realidade, essa ruptura, quando seguimos as linhas ambivalentes e desconfortáveis, nada terapêuticas, da multidão. Queremos agora reafirmar essa ruptura em todo o seu alcance, porque ela é ampla e irreversível. Ainda outra vez, uma universidade nômade não pode ter medo de nomadizar.
NOTAS
[1] – Por governismo se entende a adoção de uma linha macropolítica que assume a importância de estar no governo como contradição fundamental. Isto significa que, mesmo quando se distancia do adesismo eleitoral mais direto e acolhe um mapa mais complexo de críticas e ressalvas, o governista assume que, em última instância, o campo político se divide em dois segundo uma lógica de amigo e inimigo, hegemonia e contra hegemonia, ao redor do projeto de poder do governo Lula/Dilma. A versão mais caricata do governismo aparece com a blogosfera progressista abastecida por verbas de publicidade, em contraposição ao inimigo enunciado como “Partido da Imprensa Golpista” (PIG). A versão mais sofisticada e acadêmica se dá com os infindáveis volteios dialéticos do “voto crítico” e a premissa que o lulismo é algo a ser salvaguardado como um bem em si (conceito ideológico) e não algo com o que se faz alguma coisa. Em ambas as versões, acrítica ou crítica, o governista justifica a adoção do campo político ao sobrepô-lo, invocando maior ou menor interseção, ao da luta dos pobres. O pós-governismo é a resultante inercial do governismo depois do impeachment de 2016, ossificado pelo discurso do golpe de estado, com alguma penetração na universidade, em setores da cultura institucionalizada, nos movimentos sociais tradicionais e em partidos da oposição de esquerda.
[2] – Referimo-nos às duas publicações regulares da rede, a Revista Lugar Comum, com 47 números publicados, e a Revista Global Brasil, com 16 (todos os números de ambas as revistas disponíveis para download gratuito). Uma e outra possuem número ISSN e se propõem à meia distância entre lutas e produção acadêmica. Várias coleções de livros também foram pensadas a partir da produção da rede, como a Política no Império ou a Política da Multidão, em parcerias com as editoras Record e a AnnaBlume, respectivamente. A UniNômade mantém um site próprio, nutrido semanalmente por artigos, entrevistas e agenda de eventos, além de uma conta no twitter e um grupo no Facebook com mais de 13 mil inscritos.
[3] – A aproximação do governo Lula a Vargas denota uma apreensão mal resolvida com o período varguista de 1930 a 1945, quando é deflagrado o primeiro ciclo desenvolvimentista do país, com base no modelo de substituição das importações. A leitura da era Vargas por parte do governismo continua baseando-se no princípio da doação, que o ditador teria feito concessões em termos de salário e direitos trabalhistas além do que seria o “mínimo natural” dado pelo mercado capitalista. Da mesma maneira, o governo Lula teria consolidado correlação de forças para aumentar o salário real para além do que seria esperado de um governo neoliberal, impondo assim um reformismo diante da avidez por lucro do capitalismo. A tese da “doação varguista” já foi contestada por Francisco de Oliveira em Crítica da razão dualista (1972), em que se desenvolve como as políticas do período aproveitavam uma conjuntura internacional favorável para redirecionar as bases de acumulação de capitais, do agrário-exportador para o industrial. Para isso, o projeto do Estado Novo não dependia apenas de agregar novas classes no processo político (as camadas médias urbanas), como também regular os fatores de produção, a fim de reconstruir os circuitos de mais-valor que formam o metabolismo da economia industrializada. Afinal, o aumento do salário indica alteração na dinâmica produtiva, mas não significa, automaticamente, redução da taxa de exploração ou redistribuição de renda. Mutatis mutandis, essa tese poderia ser atualizada para os anos 2000 para compreender o lulismo e a formação da dita “nova classe média” dentro do novo regime flexível de acumulação, a fim de abater o discurso petista que identifica o governo Lula à conquista de direitos pela população. Na verdade, o que realmente importa nas medidas lulistas de transferência de renda consiste na mudança qualitativa que uma reapropriação dessas políticas propicia, o que inclusive pode reverter em ações contra o próprio governo e o PT.
[4] – Vale destacar que Belo Monte, além de crime socioambiental de enormes proporções, sintetiza o vício que não é acessório ou de “excesso” dos governos Lula/Dilma, mas um de seus pontos mais centrais. A hidrelétrica que destruiu o Xingu e seus povos revela, com clareza, o modus operandi da coalizão entre PT e PMDB, desde o ecocídio e o massacre aos índios, aos propinodutos bilionários para o financiamento de campanhas eleitorais, com generosa irrigação dos intermediários e polos da negociação.
[5] – A série de colóquios organizada pela UniNômade em parceria com a Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, acontece mensalmente em ciclos temáticos anuais, entre 2007 e 2016.
[6] – Uma crônica intelectual sobre o evento terra a terra, em Devir-pobre, devir-índio, por Bruno Cava.
[7] – Veja-se, por todos, A sociedade contra o estado e o mercado, por Moysés Pinto Neto.
[8] – Inclusive aqueles que, ao fechamento conjuntural, respondem: “micropolítica”. A aspiração à micropolítica esconde uma macropolítica conformista, numa estranha cumplicidade entre ilhas teóricas de radicalidade com a defesa de ilhas institucionais de conforto, o que funcionava bem com o governismo petista. Não são poucos os intelectuais que articulam loas sem fim ao mundo do maquínico e do subrepresentativo, mas não perdem a chance de anunciar a adesão a um campo político, colocando os dissidentes no lado contrário. A disputa por hegemonia com o que se justifica o governismo crítico, afinal, também perpassa a disputa pelo mesquinho mercado acadêmico.
[9] – O trabalho de recepção dos experimentos de Podemos, Syriza e das plataformas municipalistas em Podemos & Syriza: experiências democráticas na borda das lutas, orgs.: Bruno Cava e Sandra Aréncon Beltrán, ed. Annablume, 2015.
[10] – Por exemplo, o Projeto de Lei n.º 257/16, sobre refinanciamento da dívida dos estados condicionada a ajuste fiscal antifuncionalismo, que agora escandaliza os pós-governistas, foi proposto em março por Dilma, em regime de urgência.
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ASSINAM
– Alexandre Fabiano Mendes, professor, Rio de Janeiro
– Alexandre do Nascimento, professor, Nilópolis
– Alessandro Gonçalves Campolina, médico, São Paulo
– Aryadne Bittencourt, autônoma, Rio de Janeiro
– Barbara Szaniecki, designer e professora, Rio de Janeiro
– Bruno Arena, estudante de direito, Rio de Janeiro
– Bruno Cava, blogueiro e filósofo, Rio de Janeiro
– Bruno Tarin, ECO/UFRJ, Rio de Janeiro
– Celio Viana, gari, Rio de Janeiro
– Christian Fischgold, professor, doutorando em letras, Rio de Janeiro
– Clara Cuevas, professora, Curitiba
– Clarissa Moreira, arquiteta e professora, Rio de Janeiro
– Clarissa Naback, advogada, Rio de Janeiro
– Erika Hornink Munari, autônoma, São Paulo
– Fabricio Souza, advogado, Rio de Janeiro
– Fabricio Undr, cineasta, Salvador
– Fellipe dos Anjos, teólogo, São Gonçalo
– Gabriel Bernardo, DJ, coletivo Arruaça, Porto Alegre
– Giuseppe Cocco, professor, Rio de Janeiro
– Guilherme Dal Sasso, estudante, Porto Alegre
– Henrique Kopittke, estudante, Florianópolis
– Henrique Guilera, estudante, Curitiba
– João Pedro Dias, Círculo de Cidadania, Rio de Janeiro
– Laila Sandroni, CPDA/UFFRJ, Rio de Janeiro
– Leandro Carmelini, Niterói
– Luiette Ornellas, produtora, membro do Círculo Laranja, Rio de Janeiro
– Luiz Felipe Teves, advogado, Rio de Janeiro
– Malu Oliveira, jornalista e pesquisadora de net-ativismo, São Paulo
– Marcela Werneck, professora, Rio de Janeiro
– Márcio Tascheto, professor, Passo Fundo
– Márcio Pereira, professor, São Paulo
– Mariângela do Nascimento, professora, Salvador
– Michael Teixeira, Rio de Janeiro
– Michel Cristiano Calis, empresário, São Paulo
– Murilo Correa, professor, Ponta Grossa
– Newton Messias, professor, Recife
– Patricia Skolaude Dini, médica, São Paulo
– Pedro Grabois, professor, Rio de Janeiro
– Priscila Pedrosa Prisco, advogada, Rio de Janeiro
– Renan Porto, jurista e poeta, Jequié
– Rodrigo Bertame, coletivo Linhas de Fuga, Nova Iguaçu
– Salvador Schavelzon, antropólogo e professor, São Paulo
– Sandra Mara Ortegosa, professora, São Paulo
– Sérgio Prado Pecci, São Paulo
– Silvio Munari, professor, São Paulo
– Silvio Pedrosa, professor, Rio de Janeiro
– Sindia Santos, jornalista e dançarina, Rio de Janeiro
– Talita Tibola, psicóloga e pesquisadora, Rio de Janeiro
– Valéria Aguiar, professora, Rio de Janeiro
– Vera Rodrigues, psicóloga e psicanalista, Rio de Janeiro
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Quando a trama da terra treme - Instituto Humanitas Unisinos - IHU