09 Agosto 2016
“É decisivo para a renovação da Igreja e nela para a renovação das congregações religiosas, incluída a Ordem dos Pregadores, que nos deixemos oxigenar pelos novos ares de uma Igreja em saída, pobre e servidora do mundo. É preciso atualizar esse amor à Igreja em processo contínuo de reforma, no momento em que celebramos a festa de São Domingos (na ilustração) que, segundo canta a liturgia, ‘falou dentro da Igreja’”, escreve o teólogo dominicano Jesús Espeja, em artigo publicado por Religión Digital, 07-08-2016. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/5ZcX2l |
Eis o artigo.
Minha vocação de dominicano vai se consolidando em sintonia com a figura deste castelhano, sensível às mudanças culturais, movido pela compaixão diante das carências dos seres humanos, e servidor de uma Igreja que derruba muros de separação. Apesar dos instalados em um triunfalismo eclesial não entenderem seu carisma, recebeu aprovação e apoio de Honório III, sucessor de Pedro naquele tempo, empenhado em realizar o chamado do quarto concílio lateranense a evangelizar na nova situação cultural que já despontava.
Hoje, a Igreja rejuvenescida no Vaticano II e enriquecida por um sucessor de Pedro também busca seguir o convite do concílio, inclusive, encontra nas altas instâncias eclesiásticas muito narcisismo e triunfalismo, excessivo fechamento diante da emergência de uma nova situação cultural onde já estão os sinais do Espírito.
Quando nós, dominicanos, celebrarmos 800 anos, será lamentável nossa insensibilidade diante da nova situação cultural que já está surgindo e que não atualizemos nosso carisma para servir uma Igreja “em saída”. Evocando nossa longa história e diante da coragem de futuro que a situação atual do mundo e a missão evangelizadora da Igreja demandam, é fácil ficarmos cantando as glórias do passado, gastar as energias apontando estruturas e mediações que devem morrer, para que nasça o que quer nascer, perdendo o vinho novo em odres já corroídos que matam sua vivacidade e sua força.
Confesso que, para mim, os gestos, as intervenções orais e as Exortações do Papa Francisco estão sendo evangélico respiro. Como dominicano apaixonado pela reflexão sobre a fé cristã em um mundo em mudança, há alguns traços na orientação deste Papa que parecem chave apropriada para a reforma inescapável que hoje nós, freis pregadores, necessitamos.
Primeiro, “renovar o encontro pessoal com Jesus Cristo ou, ao menos, tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, sem cessar” (Exortação Evangelii Gaudium, n. 3). O convite resulta familiar para os frades pregadores. O beato Angélico nos deixou um precioso quadro de São Domingos abraçado ao Crucifixo; o mesmo gesto em Catarina de Siena, Rosa de Lima e Martinho de Porres.
O futuro da Igreja, e nela das congregações religiosas, incluída a Ordem dos Pregadores, não se garante sem mais sustentando andaimes estruturais, nem recomendando as observâncias comunitárias. Nada, nem ninguém pode suprir a vida de fé como experiência do encontro pessoal com Jesus Cristo, em quem saboreamos a presença de Deus que, a partir do amor, continuamente cria e acompanha a humanidade em seu crescimento. Hoje, o Papa Francisco insistiu falando ao Capítulo Geral dos dominicanos: “devem ser evangelizados por Deus para evangelizar”.
Por Deus encarnado ser inseparável da humanidade, o Papa recomenda, hoje, aos dominicanos: “Olhando a nosso redor, comprovamos que o homem e a mulher de hoje estão sedentos de Deus. Eles são a carne viva de Cristo, que grita ‘tenho sede’ de uma palavra autêntica e libertadora, de um gesto fraterno e de ternura. Este grito nos interpela e deve ser o cerne da missão que dá vida às estruturas e programas pastorais. Pensem nisto quando refletirem sobre a necessidade de ajustar o organograma da Ordem, para discernir sobre a resposta que se dá a este grito de Deus”.
“Quanto mais saiamos para saciar a sede do próximo, mais seremos pregadores de verdade, dessa verdade anunciada por amor e misericórdia, da qual fala Santa Catarina de Siena”. O verdadeiro encontro com Jesus Cristo, continua o Papa, nos faz “contemplativos da Palavra e do povo, é sagrada a Palavra e também seus destinatários”. Nós, freis pregadores, tomaremos consciência e trataremos de colocar em prática as implicações que esta recomendação do Papa Francisco acarreta?
Segundo, “somos chamados a formar as consciências, mas sem pretender substitui-las” (Exortação Amoris Laetitia, n. 37). Já a parábola evangélica do trigo e o joio sugere que podemos acompanhar e ajudar na liberdade do outro, mas não a suprir e esmagar. O Vaticano II afirmou que a liberdade é sinal da imagem divina na pessoa humana, já que sua dignidade exige que sempre atue segundo sua consciência. Em todas as comunidades cristãs e, portanto, nas congregações religiosas, há o perigo de ficarmos na superfície dos deveres, abdicando da própria responsabilidade, da criatividade e do risco.
Se falta o envolvimento das pessoas, as práticas religiosas podem ser uma boa armadilha que gera e justifica a estéril instalação. Em razão do individualismo que atualmente corrói a vida social e que, assim o como câncer nefasto, é grave patologia na vida religiosa, urge a formação da consciência pessoal no dinamismo do carisma que se professou. Sem essa formação, o mais comum é que a vida religiosa degenere, pelo menos, em uma sociedade de seguros mútuos com a superficialidade, mal-estar e insatisfação de todos.
Terceiro, não estamos neste mundo “para vegetar no sofá da vida” (Papa Francisco aos jovens reunidos em Cracóvia). Uma chamada de atenção a nossa “itinerância dominicana”, que se concretiza em diferentes âmbitos. Vale a pena indicar um, por exemplo.
O mundo dos últimos séculos avançou mais que a Igreja. Nossas formulações da fé cristã com a linguagem de outras culturas nada dizem aos distanciados da Igreja, nem à maioria dos cristãos. Por outro lado, em sociedades como a espanhola, o processo de secularização, a pluralidade cultural e a massiva indiferença religiosa são um desafio cada vez mais inescapável para a Igreja e, em concreto, para os frades dedicados à pregação do Evangelho. A situação atual exige muito estudo, não só para discernir os sinais de nosso tempo, como também para oferecer nova versão da fé cristã. Por experiência pessoal, estou convencido que não é possível oferecer esta versão atual da fé, caso não se conheça bem o conteúdo permanente da mesma em diferentes versões do passado.
Contudo, o dominicano, pregador da graça neste tempo de mudança, não cumpre a sua vocação repetindo de qualquer forma o que os grandes e admiráveis mestres disseram em outros tempos. A fé não existe como realidade abstrata. Os crentes só existem dentro de uma situação cultural que demanda nova leitura da tradição cristã. No despontar de uma nova época, Domingos, Tomás de Aquino, Catarina de Siena, Francisco de Vitória e Bartolomé de Las Casas não fizeram nova leitura e empreenderam nova prática? Nós, pregadores, não devemos fazer de nossa missão “um sofá que nos adormece”. Temos que nos despertar ao que acontece e brota novo no mundo, caso queiramos que o mundo também desperte à utopia do Evangelho.
Quarto, “o grito dos pobres e deserdados desperta” (Papa Francisco ao Capítulo Geral dos Dominicanos). Tanto nós, frades, como as instituições, facilmente nos instalamos, na medida em que avançamos em idade. Há anos, a propósito do Vaticano II, nossos Capítulos Gerais falaram muito da opção pelos pobres e da evangelização nas fronteiras. Mas, essas chamadas do Espírito facilmente ficaram soterradas, não só pelos longos e talvez excessivos documentos de novos Capítulos, como também, sobretudo, pela instalação e aburguesamento que sempre nos ameaçam. Nesta situação, hoje, o Sucessor de Pedro faz aos dominicanos uma saudável advertência, evocando a compassiva sensibilidade do jovem professor Domingos de Gusmão, na Universidade de Palência, vendo tanta gente pobre e desvalida: “Como posso estudar com peles mortas, quando a carne de Cristo sofre?”.
Falando sobre a Igreja, tenho sempre minhas reservas para não cair em uma ‘hierarcologia’, nem fazer do Papa um monarca absoluto. Mas, hoje, nota-se, dentro da comunidade cristã, rumores e até vozes com ranços diante da sensibilidade evangélica que as palavras e os gestos do Papa Francisco (na foto, abaixo, recebendo Bruno Cadoré, Mestre-geral da Ordem dos Pregadores) respiram e transpiram.
Por isso, é decisivo para a renovação da Igreja e nela para a renovação das congregações religiosas, incluída a Ordem dos Pregadores, que nos deixemos oxigenar pelos novos ares de uma Igreja em saída, pobre e servidora do mundo. É preciso atualizar esse amor à Igreja em processo contínuo de reforma, no momento em que celebramos a festa de São Domingos que, segundo canta a liturgia, “falou dentro da Igreja”.
Fonte: http://goo.gl/5ZcX2l |
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“A Ordem dos Pregadores precisa despertar ao que acontece e brota novo no mundo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU