08 Agosto 2016
Michel Lallement, francês especialista em sociologia do trabalho e do emprego, passou um ano em uma comunidade hacker nos Estados Unidos e escreveu um livro sobre a importância do fazer. Em entrevista, ele fala da ética de grupos como esse e o de makers e do que produzem em espaços como os FabLabs e TechShops.
A entrevista é de Fernando Eichenberg, publicada pela Folha de S. Paulo, 07-08-2016.
O século 21 marcará o início do fim do modelo dominante da sociedade assalariada e a afirmação crescente da "utopia concreta" de organizações coletivas sustentadas na autonomia, na solidariedade e no prazer do trabalho?
Impregnado dessa interrogação, Michel Lallement, 54, especialista em sociologia do trabalho e do emprego, passou um ano embebido na comunidade hacker americana Noisebridge, na baía de San Francisco. Sua vivência como membro do grupo, no período 2011-2012, resultou na recente publicação do livro "L'Âge du Faire" (A idade do fazer, ed. Seuil).
O pesquisador francês acredita que o mundo do trabalho esteja passando por uma veloz fase de mutação e acredita que a concepção futura de novas formas do viver em sociedade se verá fortemente influenciada por experiências comunitárias alternativas desenvolvidas nas últimas décadas.
Hackers ou makers vêm se agrupando em espaços de associação criativa que constituem laboratórios abertos do "fazer", livres de limitações do mercado, da rentabilidade ou do direito de propriedade. Esses locais, conhecidos como hackerspaces e makerspaces (leia glossário abaixo) ou ainda FabLabs (abreviação de "fabrication laboratory", laboratório de fabricação) e TechShops, encarnam o que alguns analistas denominaram de "comunismo científico".
Nesses espaços, cada indivíduo tem à sua disposição ferramentas e materiais de trabalho que vão desde utensílios plásticos a sofisticados robôs ou impressoras 3D. A tecnologia passa pela metalurgia artesanal, pela engenharia espacial, pela eletrônica de ponta e pelas linguagens de programação esotéricas –mas também envolve o aprendizado agrícola e culinário, favorecendo, como nota Lallement, o estabelecimento de novas relações sociais.
Criado em 2007, o hackerspace Noisebridge se reivindica como uma comunidade de inspiração anarquista, sustentada no lema "Be excellent to each other" (seja excelente para com o outro). Modelos similares ao da comunidade se propagam além da América do Norte, com diferentes influências, em localidades da Europa, da Austrália, da Índia, da África ou da América do Sul.
Michel Lallement, integrante do Laboratório Interdisciplinar para a Sociologia Econômica do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês), conversou com a Folha em seu gabinete, em Paris.
Eis a entrevista.
O sr. afirma que novas comunidades de trabalho, como a Noisebridge, estão trazendo de volta o tempo das utopias, mas das "utopias reais".
Hoje há um tipo de aceleração. Thomas More (1478-1535, autor de "Utopia") escreveu sobre algo que se pensava completamente irrealizável. Mas hoje, por razões tecnológicas (representadas nos espaços hackers por equipamentos como impressoras 3D etc.), vai tudo muito mais rápido. Há um tipo de democratização do pensamento utópico, uma nova onda, uma nova forma de fabricar a utopia concreta. E os hackerspaces são, na minha opinião, a encarnação disso.
Qual a influência dessas experiências no mundo de hoje?
Pode-se dizer que há cerca de 2.000 espaços desse tipo hoje no mundo. A próxima convenção FabLab ocorrerá na China, e os chineses dizem que vão investir US$ 500 milhões na criação de milhares de FabLabs. Todos os dias novos hackerspaces e FabLabs são abertos no mundo, é um movimento que se expande.
Fala-se até mesmo em uma Terceira Revolução Industrial.
Chris Anderson, que escreveu "Makers 'A Nova Revolução Industrial'" (ed. Campus, 2012) diz como a impressora 3D é genial, que é o fim do trabalho assalariado, que todo mundo vai ser um pequeno produtor em sua própria casa, porque se pode fabricar o que se quiser de acordo com a necessidade. Na indústria de hoje, você tem impressoras que valem 1 milhão de euros, do tamanho de um armário, e que permitem fazer fundições. Isso muda completamente a maneira de fabricar objetos, com uma técnica de produção de baixo custo, e em exemplar único. Entra em jogo a flexibilidade. A revolução digital não é apenas feita de coisas imateriais, e os hackerspaces encarnam uma nova etapa, a da conexão entre o mundo da informática, da internet e o mundo da produção. Há ainda as questões ecológicas que surgem disso. Estamos vivendo algo completamente novo, e acredito que essas inovações, mesmo que durem cinco ou dez anos, vão fazer com que as coisas mudem.
Como outros, o Noisebridge não é um local de alojamento, mas está aberto 24h por dia, todos os dias. Isso é uma maneira de prezar a autonomia no trabalho?
Exatamente. Essa autonomia, que de certa maneira foi desenvolvida nas empresas, não existe na prática; os assalariados permanecem fundamentalmente dependentes dos grandes sistemas, que são os grandes mercados e as lógicas burocráticas internas ainda bastante pesadas. Os FabLabs surgem hoje dentro das empresas para conter isso. Os hackerspaces cultivam essa característica; neles as pessoas trabalham quando querem, segundo suas regras. Por autonomia entende-se que o gesto, a invenção, o "faça você mesmo", o "hack", é desconectado de toda pressão do mercado e da burocracia. Daí vem sua novidade. Trata-se de uma alavanca de emancipação social.
Empresas capitalistas, como o Google, utilizam formas de organização do trabalho que têm origem alternativa em proveito de um fim mercantil. Isso constitui um problema do ponto de vista da ética hacker?
Isso retoma a oposição entre autonomia do trabalho e autonomia no trabalho, que para mim é central. O Google entendeu essa questão e decidiu dar tempo livre aos seus engenheiros, percebendo que isso era rentável. Os 20% do tempo em que os funcionários estavam completamente desconectados correspondiam a 50% dos projetos desenvolvidos depois.
A questão é que o Google permanece como um monstro da economia mercantil, com objetivo principal de obter lucro e, na ética hacker, isso pode ser um problema. Para os hackers, o mais importante é a lógica de compartilhamento. Todo o movimento "free open source" [software de código livre e aberto] que se desenvolveu é o antimodelo Google por definição.
Os hackers acabaram sendo associados aos crackers, que são os verdadeiros piratas da informática. Como é a convivência entre os dois?
Os hackers não são os crackers, como está no imaginário do grande público. Os hackers são facilmente assimilados aos piratas da informática. Há os mitos, como John Draper, o Captain Crunch, um dos primeiros a associar uma técnica básica para piratear telefones. Mas todo movimento maker hoje reivindica a ética hacker, baseada na ideia de que a informação deve ser totalmente livre, e associando ao prazer a produção ligada ao trabalho. Os hackers pregam isso procurando ter uma relação positiva com o mundo, diferentemente dos crackers, que, de uma certa maneira, só existem pela destruição. São dois mundos que se opõem, mesmo que possam ter raízes culturais comuns. Lembro que numa noite, em Noisebridge, uma pessoa clonou um cartão de crédito e ofereceu uma rodada de pizzas para todo mundo, o que não foi aceito pela comunidade.
Como é visto o WikiLeaks?
O Wikileaks é valorizado. Um dos fundadores de Noisebridge é Jacob Appelbaum, que trabalha no WikiLeaks e é bastante próximo de Julian Assange. Existe a ideia de garantir a liberdade individual, de que é preciso lutar contra esse monstro burocrático que é o Estado. Isso faz parte dos valores que irrigam os hackers. Assim como há ligações entre o meio maker e organizações como a Fundação Fronteira Eletrônica [EFF, na sigla em inglês, organismo que atua na defesa dos direitos fundamentais do ciberespaço].
A comunidade Noisebridge se reivindica como anarquista, mas você diz que nunca viu tantas regras em seu cotidiano.
Eles dizem que só têm uma regra: "Be excellent to each other". Mas, quando se vive com eles, nota-se que tudo é saturado de regras, como em outras comunidades. A forma como devem ser colocados os alimentos na geladeira, o jeito certo de utilizar um aparelho etc. Mas o que mais me interessou foi ver o modelo original de organização que eles criaram.
Ressalto dois princípios estruturais importantes: o consenso e a do-ocracy [algo como "democracia do fazer"]. Ao contrário da ideia que temos de anarquia como um caos confuso e alegre, ela depende da capacidade da comunidade produzir regras de convívio que funcionem de forma precisa no cotidiano, de discutir muito, de inventar normas para a gestão de conflitos. Como são hackers, eles pensam que a técnica pode resolver problemas sociais, e implantaram o "dramamômetro" [um software que registra cada vez que a palavra "drama" é citada numa discussão], que é bastante engraçado e permite medir o grau de conflito.
O sr. conta que sua experiência em Noisebridge teve um resultado pessoal direto, que foi, na volta para a França, passar a fabricar cerveja artesanal em casa.
É engraçado. Um dos interesses desses lugares é o de eliminar os complexos que as pessoas possam ter em relação às suas competências. Eles atuam no sentido de convencer as pessoas de que todo mundo tem capacidades. Isso está inscrito em sua filosofia, há uma obrigação de compartilhar as habilidades e saberes. E me deu vontade de fabricar minha própria cerveja. O hacking não é apenas linhas de códigos inteligentes, podemos hackear várias coisas. Isso é extremamente interessante: é possível hackear alimentos, cerveja, música. A tal grau que é possível hackear a sociedade. Essa cultura propõe uma reflexão sobre a técnica e sobre a transformação política. Por isso os hackers estão próximos de movimentos alternativos como Occupy Wall Street ou Food Not Bombs.
E a sua cerveja é boa, afinal?
Sim, ela é boa (risos). Eu a produzo com meu filho. Fizemos com que a família toda a degustasse e ela foi aprovada.
*GLOSSÁRIO
hacker
programador de computador que busca o desafio de superar as limitações de sistemas de software para aprimorá-los
cracker
aquele que quebra códigos de sistemas, sobretudo os de segurança, de maneira ilegal ou sem ética; os hackers, que defendem uma ética de códigos livres e abertos a todos, não gostam de ser confundidos com crackers, que operam fora da lei
maker
aquele que desenvolve novos objetos ou melhora os já existentes com a tecnologia
hackerspace
espaço físico que funciona como laboratório comunitário de trabalho para grupo de programadores
makerspace
local publicamente acessível para projetar e criar
FabLab e TechShop
são marcas registradas de makerspaces que funcionam no mesmo formato em todas as unidades; em cada FabLab, por exemplo, deve haver um gerente, uma impressora 3D, uma cortadora a laser, uma cortadora de vinil, uma fresadora de pequeno formato e outra de grande formato
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Sociólogo francês fala sobre a revolução do novo "faça você mesmo" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU