Por: Jonas | 02 Agosto 2016
“Há pouco, comovi-me vendo a foto de uma criança no Afeganistão, sorridente e feliz, pois estava com uma camiseta sua. No entanto, o sorriso daquele menino não vai muito além da foto. Antes que uma camiseta sua, esse menino precisa se alimentar bem, ter boa educação, um mínimo de segurança sanitária e não ter que trabalhar como escravo, pois, infelizmente, nesta terra cruel há outra vida além das fotos. E, além disso, meio mundo adulto está ficando tão infantil como aquele baixinho da foto do Afeganistão e sorri feliz não por sua camiseta, mas pelos seus gols”, escreve o teólogo jesuíta espanhol José Ignacio González Faus, em carta pública ao jogador de futebol argentino Lionel Messi, publicada por Religión Digital, 01-08-2016. A tradução é do Cepat.
"Deixa-me dizer a você, inclusive, - conclui o teólogo catalão - que não teria me incomodado se tivesse ficado um tempinho breve na prisão: coloquemos dois meses. Porque lá teria tido algumas experiências que lhe teria exigido e enriquecido mais que dez treinamentos com Luis Enrique. E, além disso, poderia ter lido estas palavras de Eduardo Galeano, outro fã do futebol, em um livro de uns vinte anos atrás, intitulado Futebol ao sol e à sombra:“A medida em que o esporte se tornou indústria, foi banindo a beleza que nasce da alegria de jogar porque sim. Neste mundo de final de século, o futebol profissional condena o que é inútil. E é inútil o que não é rentável”.
Fonte: http://goo.gl/4b9ovm |
Eis o artigo.
Não posso começar sem uma felicitação efusiva por sua qualidade futebolística. Talvez seja o melhor jogador do mundo. E quem escreve a você tem sido um admirador do seu futebol por sua mistura de habilidade, inteligência, velocidade, decisão rápida, companheirismo...
No entanto, o decisivo em nossas vidas humanas não é ser bom ou admirável “em algo”, mas, sim, em nossa condição de pessoas. Um bom jogador, bom escultor, bom ator... se não são também boas pessoas, sempre estarão abaixo de qualquer homem verdadeiramente bondoso, que não se destaque em nada, pois vale muito mais o que temos dentro do coração, que o que temos na ponta dos pés.
Isto é esquecido por nossa cultura e, por isso, quero começar por aí: não falarei de sua qualidade futebolística, mas da qualidade humana de muitos de vocês, figuras às quais nossa sociedade converte em ídolos e modelos.
Com isto não quero dizer que você não seja boa pessoa; ao contrário, se lhe escrevo é porque parece ser. Contudo, isso exige que você se sinta obrigado a olhar em qual contexto vive. A Espanha é um dos países com maior injustiça social na União Europeia, e o segundo após a Romênia em diferenças entre ricos e pobres. E você ganha muito. Escandalosamente muito. Só isso já é imoral por si só; e não podemos perdoar, assim como aquele que paga o que for necessário para ter sua droga, já que, então, por você ser “bom jogador”, estaria contribuindo para que todos fôssemos “más pessoas”.
Você vive em um sistema corrupto e podre, em que impera o dinheiro, e onde o esporte é um amparo a essa tirania: evasões de impostos, requalificações de terrenos em torno aos campos de futebol, intermediários que forçam os contratos a subir, retirar dos clubes simples qualquer jogador que desponte, ainda que seja só para colocá-lo, depois, no banco... Vocês não podem se considerar alheios a isso, por mais belo que seja o futebol, porque equivale a ser cúmplices de toda essa podridão.
Há pouco, comovi-me vendo a foto de uma criança no Afeganistão, sorridente e feliz, pois estava com uma camiseta sua. No entanto, o sorriso daquele menino não vai muito além da foto. Antes que uma camiseta sua, esse menino precisa se alimentar bem, ter boa educação, um mínimo de segurança sanitária e não ter que trabalhar como escravo, pois, infelizmente, nesta terra cruel há outra vida além das fotos. E, além disso, meio mundo adulto está ficando tão infantil como aquele baixinho da foto do Afeganistão e sorri feliz não por sua camiseta, mas pelos seus gols.
Compreenderá, agora, que não estou me dirigindo só a você, mas a todas as estrelas do futebol representadas por você. Por melhor que jogue, não pode viver à margem de como vai este mundo espantoso, não pode se tornar a droga ou a “pílula azul” que os cidadãos tomavam no filme Matrix, para ver o mundo diferente de como é na realidade, deixando de perceber as injustiças, as crueldades e lágrimas que povoam esta nossa terra.
Quando após cada gol faz o sinal da cruz, eu me pergunto se esse sinal não se torna mais blasfemo que aquele estúpido Pai Nosso da senhora Dolors Miquel, pois aquilo que você faz após cada gol é o sinal de um Crucificado que recorda todos os crucificados da terra. E não parece que seu gesto irá servir muito para esses crucificados.
Ouvi dizer que seu companheiro Suárez provém de uma das vilas-miséria de Montevidéu. E me pergunto o que aconteceria se sua assombrosa sensibilidade com o gol fosse também uma sensibilidade semelhante com os que devem ter sido os seus companheiros de infância, em um desses miseráveis “assentamentos” da capital uruguaia.
Talvez, você me perguntará o que precisa fazer, e irá se surpreender se eu disser que não sei. Só gostaria que você se convencesse da verdade do que eu lhe disse, pois se todos vocês estivessem convencidos disso, a longo prazo encontrariam caminhos entre todos. Há pouco, deu-se no Brasil um movimento religioso entre jogadores que propunham nunca ser violentos, não insultar, nunca responder a agressão com agressão. Se não me engano, Donato era um deles e era notável. E agradecia. Ainda que eu tema que tenha sido só uma onda fugaz e que não acabou de redimir o futebol da violência física, cito isto como exemplo de que se todas as estrelas do futebol (jogadores e treinadores) se unissem neste ponto, já surgiriam coisas a fazer em resposta a sua pergunta.
Se não, deixe-me dizer que todos vocês contribuem para fortalecer essa imagem de nossa humanidade que foi esboçada, há tempo, por Imanol Zubero: passamos a parecer aquelas pessoas que dançavam despreocupadas e tranquilas sobre a cobertura do Titanic. Suponho que você já sabe como terminou a história.
PS. Escrevi esta carta antes de seu julgamento e a enviei à imprensa onde costumo publicar, mas me disseram que nestes dois meses não me publicarão nada, porque querem diminuir páginas. Contudo, uma prova do que eu digo a você na carta pode ser sua resposta no julgamento: “eu só me dedicava a jogar futebol, sem saber o que assinava”.
Não, querido Lionel, essa poderá ser a resposta de um jogador, mas não a de uma pessoa de estatura. E, por isso, nego-me a dizer “todos somos Messi”, sem entender como o Barça pôde montar uma campanha assim. Porque equivale a dizer: “todos somos irresponsáveis”.
Deixa-me dizer a você, inclusive, que não teria me incomodado se tivesse ficado um tempinho breve na prisão: coloquemos dois meses. Porque lá teria tido algumas experiências que lhe teria exigido e enriquecido mais que dez treinamentos com Luis Enrique. E, além disso, poderia ter lido estas palavras de Eduardo Galeano, outro fã do futebol, em um livro de uns vinte anos atrás, intitulado Futebol ao sol e à sombra:
“A medida em que o esporte se tornou indústria, foi banindo a beleza que nasce da alegria de jogar porque sim. Neste mundo de final de século, o futebol profissional condena o que é inútil. E é inútil o que não é rentável”.
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“O melhor jogador do mundo não pode se considerar alheio às injustiças”. Artigo de González Faus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU