Por: Jonas | 06 Julho 2016
Bispos e outras autoridades eclesiásticas, familiares, amigos e funcionários recordaram as vítimas do massacre. A comunidade Palotina pede que os sacerdotes e seminaristas assassinados sejam declarados mártires e que a Ordem se apresente como querelante.
Fonte: http://goo.gl/cbnRIu |
A reportagem é de Alejandra Dandan, publicada por Página/12, 05-07-2016. A tradução é do Cepat.
Os quinze bispos ficaram atrás do altar coberto com um tapete que ainda guarda o sangue dos cinco palotinos assassinados pela última ditadura. Dos dois lados, acomodaram-se dezenas de sacerdotes vestidos de branco provenientes de lugares e filiações distintas.
Já havia passado pelo altar – em um gesto apressado, mas fundamental – o núncio apostólico Emil Paul Tsherring para trazer a presença e bênçãos do Papa Francisco.
Após o início da missa, da leitura de uma passagem de São Mateus e das bem-aventuranças, essa “carta magna” do rebanho católico, o arcebispo portenho Mario Poli parou diante do altar. Colocou os óculos, organizou as folhas e disse: “Aqueles que se colocaram como juízes, sentenciando a morte dos irmãos, não sabiam que os cristãos fazem o bem e são punidos como malfeitores”. “Sabemos”, acrescentou, naquilo que foi interpretado como um reconhecimento ao pedido da comunidade Palotina para que a hierarquia eclesiástica incentive a consulta pelo martírio, “que o martírio é um dom... Seus irmãos de congregação, que conheciam bem aqueles a quem retiraram a vida, desejam apresentar à mãe Igreja seu batismo de sangue. Ela, com sua sabedoria, saberá decidir qual é o lugar dos irmãos na Igreja do céu”.
Sob o teto da Igreja San Patricio, foram comemorados os 40 anos do assassinato dos sacerdotes Alfredo Leaden, Alfredo José Kelly e Pedro Eduardo Dufau e dos seminaristas Salvador Barbeito Doval e José Emilio Barletti. A missa das oito da noite encheu todos os espaços. Na primeira fileira, sentou-se o prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel, ao lado de Aníbal Ibarra, um dos impulsionadores da reabertura da investigação penal de 1984, após o encerramento ordenado pela justiça da ditadura. Estiveram presentes o rabino Daniel Goldman, o subsecretário de Culto da Nação, Alfredo Abriani, funcionários do Ministério da Educação, sobrinhos, irmãos e pais dos padres assassinados, centenas de pessoas.
“As cicatrizes de Jesus também foram vistas nos corpos de nossos irmãos religiosos, assassinados no dia 4 de julho, e assim se apresentaram diante do Senhor da Misericórdia”, disse o arcebispo. “Por que não pensar que se entregavam à vida fraterna, aqueles palotinos sobre os quais hoje fazemos memória”(?), disse. Comprometidos na oração, nos sacramentos, no serviço aos pobres e no serviço aos fracos na fé até que, acrescentou, “como disse o Salmo, o inimigo me perseguiu a morte e esmagou minha vida contra o chão”.
Diante do altar, catorze velas acesas, durante todo o dia, irradiaram luz sobre as imagens dos cinco homens que esta comunidade apontou, desde o início, como seus mártires. Dali, partiu a reivindicação para animar os superiores da Ordem e, depois, a hierarquia da Igreja, para abrir os dois caminhos que demandam.
O primeiro, a via da canonização ou o processo de martírio dentro do espaço da Igreja. Um processo que, segundo afirmam entre os palotinos, Jorge Bergoglio animou pessoalmente, durante a celebração do ano 2001, quando se completaram os 25 anos dos crimes, ao nomeá-los mártires, pela primeira vez, na homilia, e estimular a Ordem para que apresentasse a postulação. Os palotinos acataram, mas o processo, no entanto, travou. A segunda aprovação deve ser dada pela chefatura local da Igreja.
Por duas vezes, Bergoglio consultou os bispos, sem êxito, em 2009 e 2011, dizem na congregação.
E Poli ainda não abriu essa consulta. O pedido de ontem e a inédita presença de bispos que os palotinos conseguiram convocar, em sua igreja, procurou demonstrar ao Arcebispado o consenso para que a mesma seja feita.
Nesse cenário, surgiu espaço para a segunda reinvindicação, desta vez, animada pela comunidade e, sobretudo, por parte dos jovens que não só pedem o reconhecimento celestial, mas que a Ordem termine de assinar os poderes para se apresentar como querelante na causa penal, dentro da justiça terrestre.
Entre os bispos, houve presenças importantes para esse jogo de forças. Carlos Malfa, secretário geral da Conferência Episcopal Argentina, Jorge Lozano, bispo de Gualeguaychú e presidente da Pastoral Social, que durante o dia disse que a causa dos palotinos está viva e em andamento. Esteve presente Oscar Ojea, bispo de San Isidro e presidente da Cáritas. Também estiveram presentes os sacerdotes mais próximos ao Papa, como José “Pepe” Di Paola. E também os palotinos, com representantes de todas as comunidades do país. Entre eles, Jeremías Murphy, provincial da Ordem; Juan Sebastián Velasco, postulador da causa, e Rodolfo Capalozza, sacerdote e sobrevivente.
Para uns e outros, eram dirigidas as mensagens que aqueles que estavam ali ofereciam apenas por estar presente. Gastón Barletti esperou o momento desde cedo. Irmão de José Barletti, um dos dois seminaristas assassinados, há dois anos, conseguiu se apresentar por sua própria busca na causa judicial que, agora, está nas mãos do juiz Sergio Torres, responsável pela grande causa ESMA, um dos espaços da ditadura de onde se suspeita que saíram parte dos executores do massacre.
A mãe de Barletti esperava em um carro. Ele, enquanto isso, dizia com ênfase que conseguiu se apresentar como querelante. É o único dos familiares que, até aqui, abriu esse caminho. “São muitos anos ou bem poucos, de acordo com o que temos aprendido”, disse, um dia antes, quando começou a caminhada que simbolicamente partiu da ex-ESMA a San Patricio. “O Grupo de Tarefas executou a ordem sobre cinco pessoas armadas só com a palavra do Evangelho, que foram entregues por suspeita, pelas calúnias que os cercavam”.
Disse, mais claramente que Poli, que eles trabalharam nas vilas, que isso era considerado “perigoso e até subversivo”. Que, como parte de suas condenações, “foram negados três vezes”: por seus irmãos da comunidade, pela Igreja e também por alguns integrantes da Ordem. E reclamou: “Se hoje, após 40 anos, não colocarmos toda a nossa energia, continuaremos os negando, acredito que a autoridades da Igreja palotina e da Igreja sabem disto”.
Rolando Savino ficou responsável, à noite, pelas sinfonias do órgão da celebração, o “organista”, como considera a si mesmo, a primeira testemunha do crime ocorrido no dia 04 de julho de 1976. “Na Igreja, estão os mesmos que na rua”, disse, sentado sobre um dos bancos, Fernando González, um dos professores da comunidade. “Há algo de inquietação em tudo isto porque saímos à rua, há pouco, mas, por outro lado, isto também é uma grande conquista e um grande triunfo. À convocação foram incorporadas pessoas de um bairro que é mais ritualista que participativo. Muitos se aproximaram para perguntar, mas isto também é culpa nossa, porque por muitos anos isto foi celebrado só portas adentro da Igreja".
“Não me diga que agora tudo isto pode ser reaberto pela imprescritibilidade?”, perguntou a Aníbal Ibarra, surpresa, uma idosa advogada do bairro. Ester Nélida González disse que, naquela ocasião, também vivia nesse bairro, entre Belgrano e Urquiza. Acredita que, “obviamente, os responsáveis, em razão da idade, certamente já não devem estar mais. Porém, tomara – continua – que tudo isto possa continuar. Como ser humano, aqui, sabe-se que há coisas que não podem ser feitas. E você pense que no bairro disseram de tudo. De tudo. E ainda há pessoas que dizem que não são tantos os desaparecidos”.
Pérez Esquivel disse ter vindo para honrar os mártires da Igreja. “Os mártires são sementes de vida, deram testemunho de vida frente ao que o país estava vivendo, como tantos outros. Eles têm uma presença muito forte na vida do povo. É necessário chegar à verdade e justiça, agora, para que estes crimes não fiquem na impunidade”.
Os sobrinhos de Alfie Kelly também se aproximaram para agradecer a Ibarra. Uma senhora lhe presenteou com um livro de Angelelli. Ibarra falou rápido de como o núncio Pio Laghi e o cardeal-arcebispo Juan Carlos Aramburu, imediatamente após o massacre, chegaram à Igreja. De como o sacerdote Efraín Sueldo Luque começou a investigar. De como Laghi e Aramburu souberam rápido quem foram os autores e como guardaram silêncio, em cumplicidade com os militares.
“Isto que está acontecendo agora é maravilhoso”, disse uma sobrinha de Kelly, no dia anterior. “Há pouco, dizia aos garotos que eu vi passar com a imagem de Angelelli e dos padres de Chamical: é realmente comovedor ver isto, porque é uma oportunidade de mostrar que eles pensavam em um mundo melhor e que este mundo melhor é possível na medida em que estas coisas possam ocorrer. E na medida em que haja memória. Que são buscadas a verdade e a justiça”.
Na Igreja, o organista fez ressoar o Creio.
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A memória do martírio dos palotinos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU