13 Mai 2016
Quando as redes sociais se revoltaram contra o anúncio das operadoras de que a internet fixa teria limite de dados no Brasil, um dos primeiros nomes procurados para tratar do assunto foi o de Ronaldo Lemos. Mestre em Direito por Harvard e representante do MIT Media Lab no Brasil, o mineiro de 40 anos é um dos juristas mais atuantes no país para defender uma internet livre e a conectividade como um bem fundamental.
– Não se pode mexer na infraestrutura da internet, assim como não se mexe na infraestrutura da energia elétrica ou da água – compara.
A reportagem é de Paula Minozzo, publicada por Zero Hora, 07/08-05-2016.
Lemos abriu mão de uma carreira promissora no Exterior para deixar um legado para a legislação do país. Depois de liderar por sete anos um trabalho colaborativo, tornou-se um dos pais do que chamamos de constituição brasileira da internet, o Marco Civil, sancionado em 2014.
Como advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS) do Rio de Janeiro, ele expõe os principais desafios que o Brasil precisa enfrentar para resolver os problemas jurídicos, sociais e de infraestrutura relacionados à rede.
– Estamos à beira de um apagão – alerta.
Eis a emtrevista.
A limitação de dados fere o Marco Civil?
Sim, o Marco Civil trata a internet como serviço essencial para o exercício da cidadania. Esse princípio ajuda a nortear o modelo de cobrança de dados. A rede não vai conectar só computadores, pessoas e celulares, vai conectar objetos. Vamos ter vagões de trem conectados, plantas industriais. A conectividade está se transformando em algo como eletricidade e água, que fazem parte da estrutura da vida contemporânea. Imagina você conectando uma planta industrial à rede e o seu plano de dados acaba. Não faz sentido. O desenvolvimento de um país como o Brasil depende dessa infraestrutura de conexão e dessa possibilidade da internet estar disponível para a construção de smart cities (cidades inteligentes).
E por que o Brasil caminha nessa direção? Em vários países ainda é grande a oferta de planos ilimitados de banda larga.
Estamos vivendo hoje algo que não foi plantado e deveria ter sido nos últimos seis anos. O limite de dados é resultado de um descaso do ponto de vista de políticas públicas na questão da banda larga. Em países como Chile, Colômbia e Argentina, a banda larga se tornou um dos itens fundamentais de políticas públicas. Na Colômbia, existe um plano de banda larga há vários anos que se chama Vive Digital, uma das principais bandeiras governamentais. No Brasil, a banda larga foi tratada como acessório. O plano de banda larga nas escolas, lançado em 2010, que tinha um objetivo muito claro de conectar todas as escolas do país com internet de alta velocidade, falhou. Há uma relação direta entre internet e educação, mas boa parte das escolas continua desconectada. Não vamos resolver essa questão na Justiça nem do dia para a noite. Vamos ter que repensar o modelo de infraestrutura do Brasil. Chegou o momento do gargalo: todo mundo no Brasil quer se conectar e há uma completa falta de planejamento. Quando os EUA entraram em crise em 2008, uma das primeiras medidas de Barack Obama foi criar um plano nacional de banda larga. Isso é investimento que gera emprego, gera desenvolvimento econômico, gera inovação.
A escola é crucial, afinal, a educação à distância e os cursos online estão cada vez mais fortes e substituindo modelos presenciais.
O exemplo das escolas é dramático. Hoje você tem uma série de ferramentas acadêmicas, videoaulas gratuitamente no YouTube, que poderiam nivelar alunos do Brasil inteiro independentemente do lugar onde estivessem e do tipo de professor. Isso vai deixar de ser utilizado por quem não vai ter plano e recurso financeiro. A manifestação popular pode ajudar a atrasar ou reverter essa questão, o problema é que essa é uma questão infraestrutural. É igual ao apagão de eletricidade no início de 2008 no Brasil. Aquilo foi resultado de falta de investimento acumulado naquele setor por anos seguidos. Agora temos a mesma coisa. Estamos chegando a uma situação limite. É fundamental haver essa mobilização e uma discussão jurídica, mas mais importante é pensar na construção da infraestrutura.
As empresas de telecomunicações não falharam ao investir pouco em infraestrutura? E agora não estariam saindo em vantagem nessa questão?
A culpa não é só das teles. A falha é sistêmica. Houve uma falha regulatória, uma falha de mercado, a falha é generalizada. A única coisa que todos sabíamos é que era totalmente previsível que as pessoas iriam querer se conectar cada vez mais. Não tem solução única. Tudo na internet é multissetorial.
Então o Brasil não tem mais infraestrutura para mais gente se conectar?
Acredito que nas áreas urbanas, como na cidade de São Paulo, a capacidade está no limite. Estamos à beira de um apagão de conectividade. Um objetivo de qualquer país do mundo é atrair os data centers, aqueles grandes conjuntos de servidores que armazenam tudo, vídeo, e-mails, prestam serviços. As empresas usam esses data centers para fazer processamento de dados, só que eles funcionam como se fossem um grande armazém atacadista, e onde você coloca um grande armazém atacadista? Onde tem boas rodovias, entroncamentos. O Brasil, nos últimos anos, vem perdendo esses data centers para países da região, como o Chile.
É preciso mesmo regulamentar e taxar serviços de streaming, como as teles querem?
O Brasil é burocrático, tem muitas regras que dificultam a vida do empreendedor e do inovador. No ITS, estamos fazendo uma grande pesquisa com entrevistas para mapear o empreendedorismo inovador no país. Achamos que o Brasil é um dos países mais empreendedores do mundo, mas seus empreendedores não conseguem inovar como poderiam. Estamos atrasados em reformular o ecossistema de inovação que vale para todos, para as teles, para as concessionárias de serviços públicos de infraestrutura. A regulamentação de telecomunicações foi feita em 1996. A forma como os serviços são regulados no Brasil hoje é completamente defasada.
E a pirataria? Ainda há sentido em punir usuários que compartilham arquivos? Lembro do caso de Aaron Swartz, o americano que baixou artigos científicos, foi processado e cometeu suicídio com medo das fortes sanções.
Sempre que falo no Aaron Swartz fico emocionado. Era meu amigo, eu o conheci em uma conferência de Harvard. Ele estava dando uma palestra para advogados aos 14 anos de idade. Foi processado com base em uma lei da década de 1980 e que previa 30 anos de cadeia. Foi escolhido como bode expiatório. O impressionante é que ele foi no MIT (Massachusetts Institute of Technology), fez download de jornais acadêmicos, mas nunca os publicou, baixou no computador dele. A própria empresa responsável pela maioria dos jornais o perdoou. Mesmo assim, os promotores continuaram com a ação. Ele se envolveu em batalhas que são fundamentais. Uma delas contra o SOPA e o PIPA, leis completamente draconianas que tentaram passar nos EUA em 2012, que permitiam bloquear e censurar a rede. Isso gerou grande revolta. O Facebook pintou página de preto, a Wikipedia tirou site do ar em protesto até que certas leis fossem derrotadas. Isso está acontecendo agora no Brasil, com a CPI dos Crimes Cibernéticos. Naquela época, a indústria do cinema estava advogando pela passagem dessas leis, dizia que entraria em colapso. Passados quatro anos, a associação das indústrias audiovisuais dos EUA acabou de anunciar lucro recorde em 2015: US$ 38 bilhões. A gente vê hoje na CPI tentativas de criar mecanismos de bloqueio, de controle e de censura da internet que são inaceitáveis, e ferem a Constituição e direitos fundamentais. A luta do Aaron continua nos EUA e no Brasil.
Há um desconhecimento do poder público e das instituições sobre a importância da internet?
Muita gente me perguntou se os deputados estão fazendo essa CPI porque não sabem como a rede funciona. Acho que é ao contrário. Os deputados sabem exatamente como a rede funciona. Nesse sentido, vai ficando cada vez mais difícil, o cidadão não tem a capacidade de compreender o que está sendo proposto. Já os deputados estão com conhecimento muito sofisticado em relação à internet para fazer propostas que reduzem direitos fundamentais como privacidade e liberdade de expressão. O legislador vai atuar num campo com grande sutileza, e a população vai ter dificuldade de acompanhar e entender. A internet brasileira está sob ataque, e tudo que foi conquistado pelo Marco Civil pode ser perdido. Essa CPI, em sete meses, quer desconstruir tudo sem debater com ninguém.
Mas no relatório da CPI, os deputados usam argumentos legítimos, como prevenir tráfico de pessoas e crimes contra o sistema financeiro.
A lei brasileira nos últimos anos foi profundamente renovada para tratar dos cibercrimes. O Brasil tem uma legislação atualizada e incisiva. Por causa da CPI da Pirataria, houve ampla reforma do Código Penal para combater violações de direitos autorais na internet. Em 2008, tratou-se a questão da pedofilia, por causa da CPI da Pedofilia. Hoje, a polícia e as autoridades têm ferramentas poderosíssimas para combater pedofilia online. A Lei Carolina Dieckmann criou o rol dos crimes digitais e cibernéticos em 2012, e depois veio o Marco Civil em 2014, dando à polícia amplos poderes de investigação. Tudo já foi feito. O desafio, se houver, é fazer as leis existentes serem aplicadas. O Tiago Tavares, presidente da Safernet, a organização que mais combate pedofilia no Brasil, já disse que está satisfeito com as mudanças.
Você vê aí uma manobra para censura?
É o que dá a entender. Grande parte dessas ferramentas que estão propondo vai beneficiar políticos que se sentem incomodados quando as pessoas falam mal deles na internet. Uma das propostas seria de que qualquer crítica considerada acintosa à honra de um político deveria ser removida automaticamente pelos provedores e pelas redes sociais sem necessidade de ordem judicial. Se aprovado, isso poderia criar um efeito borracha que apagaria o que se quisesse.
Algumas das críticas que juristas fizeram ao Marco Civil são de que decisões judiciais no Brasil podem ser lentas e não acompanham o fluxo da rede. Por exemplo, conteúdo ofensivo ou ilegal permaneceria publicado até o juiz decidir o contrário.
Esse entendimento é equivocado. De fato, exige ordem judicial. O juízo acerca do que é conteúdo difamatório é altamente subjetivo. Críticas podem ser dolorosas, mas nem por isso são ilegais. É protegido pela liberdade de expressão o direito de crítica, desde que lícita, sem injúria ou difamação. É preciso que o juiz olhe e diga se aquilo é razoável ou não, ele está lá para defender a liberdade de expressão. Uma das conquistas do Marco Civil é que essas ações podem ser movidas em juizados especiais, tanto cíveis como criminais, que são gratuitos, rápidos e não precisam de advogado. O que não seria aceitável é um político, sem passar por juiz, mandar remover conteúdo.
E como você avalia a postura da Justiça nos casos recentes de suspensão do WhatsApp, um em dezembro e outro na última segunda-feira?
O serviço nunca poderia ser suspenso. Isso afeta um grande número de usuários que não têm nada a ver com a questão judicial, além de ser um atentado à liberdade de expressão e de livre iniciativa. O Marco Civil já prevê multas elevadas e suspensão do processamento de dados pessoais para punir descumprimento de ordem judicial. E é uma punição grave, já que a maioria dos sites gera receita por processamento e coleta de dados dos usuários.
O WhatsApp criptografou todas as mensagens de seus usuários, o que vai tornar mais difícil cumprir certas decisões. A Justiça brasileira já se excede agora, como será no futuro?
É o mesmo caso da Apple versus FBI nos Estados Unidos. Não é questão só do Brasil. Há um conjunto de empresas que, depois das revelações do caso Snowden, resolveram ficar ao lado dos usuários e proteger sua privacidade. A regra do mundo de hoje é a vigilância. As autoridades estão observando o que todos fazem. Algumas empresas como Apple, Telegram, WhatsApp e Viber falam “vamos implementar a criptografia, as comunicações dos usuários vão ser privadas e nem mesmo nós teremos acesso”. Isso é estar do lado do usuário, é fazer com que o usuário saiba que as comunicações dele não vão ser interferidas indevidamente. Mas não proíbe a investigação de crimes, que pode continuar sendo feita através dos chamados metadados. Que é o que o Marco Civil fez: ele obriga as empresas a guardar os logs de acesso e de conexão. Esse é o equilíbrio, você tem as ferramentas necessárias para combater crimes, mas essas ferramentas têm que ser proporcionais. Você precisa ter policiamento que olhe o fluxo de dados da rede mas sem ter um policial que durma na sua casa e fique observando o que você faz na rede. Para isso, a criptografia tem sido fundamental. Se o dado é criptografado e nem a própria empresa tem acesso, a ordem judicial é impossível de ser cumprida. Sempre que houver outros meios de prova e de investigação, esses meios tem de ser preferíveis à quebra de sigilo.
É assustador que uma ordem dessas suspenda um serviço usado por milhões?
É um poder que não deveria existir. Não pode haver chave-mestra da internet assim como não pode haver chave-mestra da eletricidade ou da água. Imagina um juiz mandar cortar o fornecimento de água para 200 milhões de brasileiros? A internet é um recurso da infraestrutura do país. Não pode haver poder para que um juiz de primeira ou segunda instância ou até do STF (Supremo Tribunal Federal) possa desligar o acesso a um determinado site para 200 milhões de pessoas. É um poder perigosíssimo de arbitrariedade em relação a um recurso existencial. A internet é essencial para o exercício da cidadania. Um juiz de primeira instância com acesso a uma chave-mestra pode ser típico de países como a China, Coreia do Norte e Arábia Saudita, não de um país democrático.
Mas qual o limite da privacidade? O caso Panama Papers mostrou que as denúncias vazadas podem ser essenciais para o público.
A luta é por preservar a privacidade dos usuários e aumentar a transparência dos governantes e do poder público. São lutas que coexistem. Tem que lutar pela privacidade do cidadão e pela transparência do poder. Não se pode falar em privacidade do poder público. A privacidade serve para o cidadão, não para o político.
E a política? Você já falou algumas vezes que o Facebook não é lugar para discutir política.
É importante criar plataformas que tenham um design visando a fins públicos. Uma das coisas em que tenho trabalhado é nas questões das tecnologias cívicas para gerar um debate político amplo. Acho que estamos ainda na infância destas tecnologias. Assim como a indústria da música foi transformada, a política também vai ser. O Marco Civil foi construído em um processo de sete anos que criou uma lei sofisticada e complexa. Estamos na tentativa de criar uma agenda positiva para a internet brasileira. A agenda do Congresso é negativa, trata a rede como um antro e só quer saber de criminalização.
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A Internet brasileira está sob ataque - Instituto Humanitas Unisinos - IHU