20 Abril 2016
"Tudo isso quer nos informar que a busca de 'paz interior' como condição preponderante para o alcance da concórdia no país, bem como a defesa de uma 'ética genérica' que quer ver todos os corruptos investigados e presos numa clara posição apolítica não serão capazes oferecer a nação um caminho concreto que nos ajudará a enfrentar a urgente crise que atravessamos", escreve Felipe Rocha, professor, teólogo e doutor em Antropologia da Religião pela Escola Doutoral de Teologia e Ciências da Religião de Strasbourg.
Eis o artigo.
Na atual conjuntura percebemos alguns movimentos interessantes de pessoas bem-intencionadas. De um lado existem uns que buscam refugiar-se na oração e nas preces, afirmando que a busca pela paz e pela concórdia perpassa pelo interior humano. Não raro, encontramos tais indivíduos fazendo citações de importantes místicos do ocidente e do oriente que enfatizaram a busca pela serenidade e pela tranquilidade para desde esse espaço sagrado agir com decência e coerência no mundo.
Por outro lado encontramos não poucos que pensam na necessidade de serem imparciais. Esses se valem de princípios éticos importantes que parecem estabelecer uma pretensa moralidade na ação e, assim, defendem que todos os partidos políticos estão corrompidos e que, portanto, todos os acusados ou mesmo todos os políticos são corruptos. Assim, o que é mais importante é combater a corrupção independentemente de quem o faça ou dos meios que são utilizados.
Olhando para essas duas posições que não raro partem de pessoas religiosas ou de buscadores espirituais não-religiosos muitos dos quais que se identificam com o cristianismo, com o budismo e com o hinduísmo, percebo que há uma espécie de boa intenção, porém, igualmente um certo desvio de propósito que pode ser perigoso para o bem-estar dos seres vivos que compartilham esse enorme espaço geográfico que chamamos de Brasil. E gostaria de afirmar que esses são equívocos tanto místicos quanto éticos que precisam ser reparados adequadamente.
Embora a olho nu pareça que as duas posições são no mínimo elogiáveis e que deveriam constituir a ideal ação na circunstância que presenciamos, posso afirmar que tais posicionamentos são questionáveis, pois baseiam-se em concepções genéricas que trarão poucos benefícios palpáveis.
Vejo que ambos os grupos defendem sua própria liberdade de pensamento e em nome dessa liberdade seja ela ética ou espiritual definem que os demais cidadãos não têm direito de questioná-las nesse sentido. Confirmo que a liberdade é uma condição fundamental tanto para a mística e espiritualidade quanto para a construção ética, porém, há de se fazer uma necessária distinção entre as muitas liberdades que podem se configurar em uma caminhada seja ela ética ou espiritual.
Recordando Thomas Merton, místico e ativista social cristão, é bom refletir a exemplo que a “perda da liberdade está na sujeição à tirania do automatismo, seja por obedecermos aos caprichos de nossa vontade própria, ou aos cegos ditames do despotismo, do convencionalismo, da rotina ou da mera inércia coletiva”.
Assim, há de se perguntar: Até que ponto aqueles que defendem a “paz interior” como passo preponderante para harmonização do país acabam pelo seu silêncio sendo omissos diante dos “ditames do despotismo”? Pode haver real paz quando a arbitrariedade e o absolutismo governista instalam-se em um país numa clara afronta as liberdades fundamentais que conferem dignidade e compaixão aos cidadãos marginalizados? É possível concretizar a transcendência enquanto “chumbo grosso” é lançado em outros? Ou não seria justamente um coração desperto e um amor feroz que nos levaria a ação? A mística cristã-judia Simone Weil nos recorda que “não basta ser santo: é necessária a santidade que o momento presente exige, uma santidade nova”.
Por outro lado, uma ética mal fundamentada pode ser uma aberração no que tange a verdadeira liberdade que associa-se sempre a obediência espiritual ou íntima e ao cuidado com o outro. Uma determinada perspectiva ética pode levar ao convencionalismo e resultar em um contrato social e político que prejudique a alteridade de uma população, principalmente quando o espaço geográfico que ocupamos (no nosso caso o Brasil) influencia aquilo que pensamos ser ou não ético.
É claro que quando pensamos em nosso país lamentamos o fato de a corrupção existir, porém, a corrupção é um dado estrutural do sistema e não apenas do governo e abrange uma série de relações institucionais econômicas, empresariais e financeiras que não raro são esquecidas por aqueles que se posicionam contra a corrupção. Não é possível combater a corrupção sem uma séria revisão dessas relações já que nenhum governo específico poderá promover a corrupção sem que haja uma cadeia importante de instituições não-estatais que dela faça parte.
Porém, o que mais é interessante é a observação de Umberto Eco quando disse que a “dimensão ética começa quando entra em cena o outro”. Assim, não há verdadeira ética sem pressupormos há existência de uma realidade social concreta. Estou certo que qualquer decisão ética feita fora de uma profunda análise social é falha já que desconsidera o todo estruturado do qual fazem parte uma diversidade de seres humanos. É ainda importante sinalizar a essas pessoas que em nome da ética afirmam defender investigações pouco rigorosas, um tanto midiáticas e parciais que sua ânsia pela “verdade” pode leva-las a uma severa misericórdia, “pois quanto mais nos debatemos no esforço de sermos verídicos, tanto mais descobrimos nossa falsidade” como tão bem sinalizou Merton.
Tudo isso quer nos informar que a busca de “paz interior” como condição preponderante para o alcance da concórdia no país, bem como a defesa de uma “ética genérica” que quer ver todos os corruptos investigados e presos numa clara posição apolítica não serão capazes oferecer a nação um caminho concreto que nos ajudará a enfrentar a urgente crise que atravessamos.
Ao contrário dessas duas crenças populares cada vez mais difundidas em virtude do desgaste político atual, posso afirmar que tomar uma posição, pensar em um lado, nunca foi tão importante para realinharmos o destino brasileiro, nosso caminho coletivo. Não é hora buscarmos um “paraíso transcendente” que nos leve para longe dos conflitos ou mesmo de defender uma espécie de ética comum e apolítica que quer realizar uma limpeza utópica nas bases partidárias! Esse é o momento ideal para escolhermos um lado, pois como disse o mestre Jesus “quem comigo não ajunta, espalha”.
Para ambos os lados, seja dos buscadores da paz interior que se silenciam como para os defensores da ética no espírito da “cadeia para todos”, gostaria de lembra-los de Ramon Panikkar, místico e escritor contemporâneo que afirmou que “a vida espiritual e a vida política não são ofícios, são dimensões irrenunciáveis de cada um de nós”.
Por fim, não há como estar em cima do muro, nesse momento não há quem seja neutro, simplesmente por que o muro pertence aqueles que pelo barbarismo e em nome de uma revolução sem conteúdo estão dispostos a reduzir os direitos das massas populares.
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Em cima do muro? – Mística, Ética e Crise Política Brasileira (IHU/Adital) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU