Por: Cesar Sanson | 05 Abril 2016
Rever Constituição de 1988. Cortar recursos obrigatórios para Saúde e Educação. Reduzir benefícios previdenciários. Privatizar tudo. Retomar alinhamento com EUA. Análise revela: programa do vice é delícia das elites. O comentário é de Fernando Marcelino, militante do MTST\PR, mestre em Ciência Política e Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), em artigo publicado por OutrasPalavras, 04-04-2016.
Eis o artigo.
Está em marcha no Brasil hoje um golpe de Estado parlamentar-judicial-midiático tocado a toque de caixa pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, acusado de receber mais de 5 milhões de dólares em propinas da Petrobrás.
A manobra golpista consiste em destituir Dilma por um impeachment, alçando ao poder o vice-presidente Michel Temer do PMDB sem qualquer tipo de consulta popular. Este golpe ganha corpo num contexto de fraqueza do governo Dilma, envolta de um ambiente internacional de baixo crescimento, forte rejeição das classes médias tradicionais, bombardeamento negativo diário da mídia monopolista sem qualquer política de comunicação popular, articulação de setores do Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal para destituir o PT e o governo, e muitas concessões aos oposicionistas, seja para acalmá-los ou porque não existe um projeto bem delineado de desenvolvimento no campo que governa o país desde 2003.
Frente à forte crise política no Brasil e o pedido de impeachment encaminhado por Eduardo Cunha na Câmara, o vice-presidente Michel Temer pulou do barco do governo após a reeleição de Dilma e desde então vem organizando junto com setores políticos e econômicos da elite conservadora um projeto para o seu governo no caso de impeachment da presidente Dilma. Governo Temer então tutelado por Serra, Eliseu Padilha, Armínio Fraga, Nelson Jobim, Sarney, Caiado, Gilmar Mendes, Eduardo Cunha (se der) com apoio dos Marinhos, Frias, Mesquistas, Cunhas Pereiras, entre outros. A direita política, federações empresariais (FIEP, FIESP, FIRJAN), Associações Comerciais reacionárias, entidades como OAB, com setores do STF, Judiciários Estaduais, Ministério Público, Polícia Federal e ONG’s liberal-fascistas estão dentro deste balaio golpista. As Forças Armadas parecem ser contra uma “solução militar”, mas podem dar apoio se o golpe institucional for bem sucedido.
Michel Temer assumirá de forma interina a Presidência da República caso Dilma seja afastada do cargo durante o julgamento do impeachment. Para isso ocorrer, são necessários 342 votos na Câmara, equivalente a dois terços dos deputados, o que deve ser decidido em abril, e o apoio de 41 dos 81 senadores, em votação prevista para maio. O Senado teria então mais 180 dias para julgar se a presidente cometeu crime de responsabilidade. Caso o resultado do julgamento no Senado seja negativo para a petista, Temer assumiria definitivamente a Presidência. Se Dilma for inocentada na última votação do Senado, ela reassume o governo ao final do processo e o peemedebista retorna à condição de vice. O que é certo é que este golpe parlamentar for bem sucedido, os golpistas organizam um novo governo de coalizão com os partidos neoliberais – o PSDB, o DEM, o PPS, o SED e demais consortes de oportunismo político.
No dia 29 de outubro de 2015 foi lançado o programa “Uma Ponte para o Futuro”, uma peça inicial do “programa pós-impeachment” do governo Temer [1]. O documento apresenta-se propondo “a buscar a união dos brasileiros de boa vontade” porque “o país clama por pacificação, pois o aprofundamento das divisões e a disseminação do ódio e dos ressentimentos estão inviabilizando os consensos políticos sem os quais nossas crises se tornarão cada vez maiores”.
Conforme o programa, todas suas propostas constituem uma “necessidade”, “um quase consenso no país”. Quanto ao retrato da realidade atual, o documento expõe o seguinte:
“O Brasil encontra-se em uma situação de grave risco. Após alguns anos de queda da taxa de crescimento, chegamos à profunda recessão que se iniciou em 2014 e deve continuar em 2016. Dadas as condições em que estamos vivendo, tudo parece se encaminhar para um longo período de estagnação, ou mesmo queda da renda per capita. O Estado brasileiro vive uma severa crise fiscal, com déficits nominais de 6% do PIB em 2014 e de inéditos 9% em 2015, e uma despesa pública que cresce acima da renda nacional, resultando em uma trajetória de crescimento insustentável da dívida pública que se aproxima de 70% do PIB, e deve continuar a se elevar, a menos que reformas estruturais sejam feitas para conter o crescimento da despesa”.
Diante deste cenário descrito, o programa “Uma Ponte para o Futuro” faz diversas sugestões em diferentes áreas. Em primeiro lugar, o programa Temer propõe a construção de uma trajetória de equilíbrio fiscal duradouro, com superávit e redução progressiva do endividamento público. Para isso seria preciso construir um equilíbrio fiscal por meio de corte dos gastos públicos.
“Nos últimos anos é possível dizer que o Governo Federal cometeu excessos, seja criando novos programas, seja ampliando os antigos, ou mesmo admitindo novos servidores ou assumindo investimentos acima da capacidade fiscal do Estado. A situação hoje poderia certamente estar menos crítica”.
Isso é, gastou-se muito com o povo. Essa é a origem da crise para o PMDB. E ainda dizem que isso não é apenas culpa dos governos do PT, mas da própria Constituição de 1988.
Conforme o documento, o atual “problema fiscal” decorre das despesas públicas que “têm crescido sistematicamente acima do crescimento do PIB, a partir da Constituição de 1988. Em parte estes aumentos se devem a novos encargos atribuídos ao Estado pela Constituição, muitos deles positivos e virtuosos, na área da saúde, da educação e na assistência social. Nestes casos, o aumento das despesas públicas foi uma escolha política correta e que melhorou nossa sociedade. Mas esta mesma Constituição e legislações posteriores criaram dispositivos que tornaram muito difícil a administração do orçamento e isto contribuiu para a desastrosa situação em que hoje vivemos. Foram criadas despesas obrigatórias que têm que ser feitas mesmo nas situações de grande desequilíbrio entre receitas e despesas, e, ao mesmo tempo, indexaram-se rendas e benefícios de vários segmentos, o que tornou impossíveis ações de ajuste, quando necessários”.
O documento critica também o ajuste fiscal do segundo governo Dilma, pois “acaba se concentrando numa parcela mínima do orçamento, o que torna o ajuste mais difícil e menos efetivo. Esta é uma das razões principais porque as despesas públicas tem crescido sistematicamente acima do PIB. Enquanto as receitas também cresciam neste ritmo, a situação parecia controlada”. Sintomaticamente os verdadeiros “problemas fiscais” não merecem nem uma linha do programa Temer. Nada sobre os gastos com pagamentos de juros da dívida da ordem de R$ 311,5 bi, desonerações tributárias excessivas que alcançaram R$ 104 bi e a baixa arrecadação devido à “greve de investimentos” de diversos setores do empresariado pelo menos desde 2012. Estes problemas fiscais se agravaram em 2015 com a política monetária e fiscal do plano de austeridade do governo.
Apesar disso, o programa Temer uma série de medidas para combater o “descontrole fiscal” pelos “excessivos gastos públicos”. As principais são:
A implantação do orçamento inteiramente impositivo, o que faria com que o governo funcionasse na prática como um semi-parlamentarismo. Trata-se do “Orçamento com base zero”, que significa que a “cada ano todos os programas estatais serão avaliados por um comitê independente, que poderá sugerir a continuação ou o fim do programa, de acordo com os seus custos e benefícios. Hoje os programas e projetos tendem a se eternizar, mesmo quando há uma mudança completa das condições”. O documento afirma que “o Brasil gasta muito com políticas”. A conseqüência desta medida será minguar ou acabar com os programa sociais que custam ao governo, como o Minha Casa, Minha Vida, Bolsa Família, Mais Médicos, Fies, Pontos de Cultura, Seguro-desemprego, Pronatec, Ciência sem Fronteiras, etc. Concentrar os programas sociais apenas nos mais miseráveis, os 10% mais pobres, que vivem com menos de 1 dólar por dia.
Novo regime orçamentário, com o fim de todas as vinculações de receitas, o que seria o fim de todo o modelo de financiamento da Educação e da Saúde Pública brasileiras. Segundo o documento, “quando a indexação é pelo salário mínimo, como é o caso dos benefícios sociais, a distorção se torna mais grave, pois assegura a ele um aumento real, com prejuízo para todos os demais itens do orçamento público, que terão necessariamente que ceder espaço para este aumento. Com o fim dos reajustes automáticos, o Parlamento arbitrará, em nome da sociedade, os diversos reajustes conforme as condições gerais da economia e das finanças públicas. Em contrapartida a este novo regime, novas legislações procurarão exterminar de vez os resíduos de indexação de contratos no mundo privado e no setor financeiro”. O objetivo desta proposta é reduzir os gastos sociais em assistência, saúde e educação.
Fim da política de valorização do salário mínimo. Segundo o documento, “é indispensável que se elimine a indexação de qualquer benefício ao valor do salário mínimo. O salário mínimo não é um indexador de rendas, mas um instrumento próprio do mercado de trabalho. Os benefícios previdenciários dependem das finanças públicas e não devem ter ganhos reais atrelados ao crescimento do PIB, apenas a proteção do seu poder de compra”. O objetivo claro desta proposta é diminuir os salários, quebrando a regra atual de reajuste do salário mínimo. O salário mínimo, que se valorizou em termos reais mais que 70% nos últimos anos, voltará a comprar cada vez menos. O objetivo desta medida é a revisão dos ajustes do salário mínimo para baixo, visto que parte da grande burguesia acredita que esta medida vem levando à deterioração dos lucros. Não gostam de investir em tecnologia, gostam de mão-de-obra quanto mais precarizada melhor. Mais uma medida atrasada, de profunda insensibilidade social, pois afronta os 90% dos assalariados brasileiros ganham até três salários mínimos e foram beneficiados com a sua valorização. Além do salário mínimo, o programa Temer propõe que se elimine a indexação de qualquer benefício, inclusive aposentadorias e auxílios a pessoas deficientes, ao valor do salário mínimo.
Ataque aos direitos trabalhistas. Na visão do programa de Temer, todos os direitos trabalhistas são custos empresariais que devem ser reduzidos para que sobrem recursos para serem acumulados. Pretende-se aprovar legislação que permita que o que for acordado entre patrões e empregados se sobreponha aos direitos trabalhistas estabelecidos. É evidente que diante da ameaça de demissão os trabalhadores e as trabalhadoras farão acordos aceitando perdas de direitos. É o fim da CLT ao permitir que o acordado prevaleça sobre o legislado, configurando retirada de direitos de milhões de trabalhadores.
Reforma na Previdência Social. O programa acentua que a crise fiscal está profundamente relacionada a previdência social. “Diferentemente de quase todos os demais países do mundo, nós tornamos norma constitucional a maioria das regras de acesso e gozo dos benefícios previdenciários, tornando muito difícil a sua adaptação às mudanças demográficas. Nós deixamos de fazer as reformas necessárias decorrentes do envelhecimento da população nos anos 1990 e 2000, ao contrário de muitos países, e hoje pagamos o preço de uma grave crise fiscal. O resultado é um desequilíbrio crônico e crescente. Em 2015 a diferença ou déficit entre as receitas e as despesas no regime geral do INSS está em 82 bilhões de reais. No orçamento para o ano que vem esta diferença salta para 125 bilhões. As projeções para o futuro são cada vez piores”. A solução apontada é a adoção da idade mínima para aposentadorias, que não seja inferior a 65 anos para os homens e a 60 anos para as mulheres, com previsão da idade mínima aumentar dependendo dos dados demográficos. E o fim da indexação de qualquer benefício previdenciário ao valor do salário mínimo. O objetivo do programa é elucidar a visão da burguesia rentista que considera que a Previdência Social gasta demais. Assim eles querem economizar recursos do governo para que sobre dinheiro para que possam transferir para empresários oferecendo-lhes desonerações, subsídios ou pagando montantes estratosféricos de juros aos rentistas detentores de títulos da dívida do governo.
Não usar mais o FGTS como fonte de recursos a “fundo perdido” para subsidiar e financiar o programa Minha Casa, Minha Vida, o que levaria a um desemprego em massa na indústria da construção civil e menor acesso popular à casa própria
“Intervenção no SUS” com redução dos repasses orçamentários para o Ministério da Saúde.
Reforma Tributária. O programa Temer propõe realizar um vasto esforço de simplificação, reduzindo o número de impostos e unificando a legislação do ICMS, com a transferência da cobrança para o Estado de destino; desoneração das exportações e dos investimentos. Isso é: em nada mudar o caráter regressivo da tributação, um dos fatores de reprodução das profundas desigualdades sociais no país. A reforma tributária sugerida pelo documento não ataca o problema da regressividade do sistema e suas injustiças. Querem continuar poupando os ricos, milionários, banqueiros e multinacionais. O documento também propõe a “racionalização dos procedimentos burocráticos” com ênfase nos licenciamentos ambientais que podem ser efetivos sem ser necessariamente complexos e demorados.
Privatizações. O programa defende que o desenvolvimento deve ser centrado na iniciativa privada, por meio de “transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos”. Entenda-se: Fim do Regime de Partilha e o controle da Petrobras do Pré-Sal. Venda de ativos da Caixa Econômica e Banco do Brasil. Aprovação do “Estatuto das estatais” para limitar a capacidade do governo usar as estatais para fazer políticas de interesse público e forçá-las à privatização.
Política e Comércio Internacional. Nesta área, o programa Temer defende uma maior abertura comercial e busca de acordos regionais de comércio com ou sem a companhia do Mercosul. Em demonstração de subserviência, insinua sustar o projeto do BRICS, submetendo o país às parcerias transatlânticas e transpacíficas lideradas pelos EUA, as quais dão privilégio aos investidores estrangeiros, agredindo a soberania, a proteção socioambiental brasileira. Isso é, regredir nos acordos do Mercosul em benefício de acordos que os EUA estão propondo na Ásia e no Atlântico Norte. Na entrevista de Moreira Franco, levanta-se também a proposta de restrição aos subsídios da política industrial e de comércio exterior brasileira com o objetivo de acabar com as políticas que visam desenvolver e impedir maior desindustrialização do Brasil.
O programa “pós-impeachment” do governo Temer tem objetivos claros e alinhados aos setores mais atrasados da sociedade brasileira. Trata-se de um programa voltado para o setor privado, o que atinge direta e imediatamente aqueles e aquelas que mais necessitam do Estado, de políticas públicas e programas sociais.
O documento ataca frontalmente a capacidade do Estado de intervir na atividade econômica e seus inerentes ciclos, e no compromisso constitucional de combate a ainda enorme desigualdade social. Acredita-se nos dogmas econômicos mais infantis, aqueles mesmos que criaram fortes crises econômicas, políticas e sociais nos Estados Unidos e na Europa.
Até o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em entrevista ao jornal Valor Econômico de 20/01/2016 considerou o programa Temer “excessivamente liberal do ponto de vista econômico”. Seu liberalismo rasteiro lembra as ideias de ONG’s de direita como Vem para Rua, Endireita Brasil, Movimento Brasil Livre, e outros liberais fundamentalistas e imbecilizados. O programa reflete a forma negativa com que os programas sociais são vistos por expressiva parte da classe média e mídias conservadoras. Não seria exagero dizer que jamais foi tentado no Brasil um programa tão liberal, nem pelos militares e nem por nenhum presidente eleito, nem mesmo Collor ou FHC.
A Ponte para o Futuro na verdade é uma Ponte para o Passado. Retrocede não apenas nas conquistas dos governos liderados pelo PT desde 2003, mas nos direitos da Constituição de 1988 e conquistas da “Era Vargas”, que nem FHC conseguiu destruir completamente. A Ponte para o Futuro, proposta do governo Temer, é o fim da Nova República. Com ele vamos voltar aos tempos da República Velha (1889-1930), uma Nova República Velha. O pior de tudo é que realmente para os setores sociais golpistas estas medidas constituem um “um quase consenso”, porém não no país, mas para as classes altas e médias.
Nota:
[1] Em 27 de março de 2016, o jornal O Estado de São Paulo publicou novas propostas complementares ao documento Uma Ponte para o Futuro, na entrevista de Moreira Franco.
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Temer e sua Ponte para o Passado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU