06 Janeiro 2016
"Ainda falta muito, todavia, para a interpretação e a aplicação da lei reconhecer a sua própria insuficiência para solucionar problemas dessa gravidade social e não preferir supri-la com afirmação de pura autoridade, como acontece na maioria das execuções de decisões liminares em ações possessórias carregadas de violência. Ou seja, tanto a lei, como a sentença e o ato administrativo só chegam ali para punir os efeitos da injustiça social, sem jamais conseguirem remover as suas causas", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
Tem qualquer sentido fazer-se uma pergunta dessas? Não deveria fazer-se um questionamento invertido, de como a gente da favela se comporta em obediência às leis, às sentenças e aos atos normativos das administrações públicas? – Mesmo nos limites de uma resumida opinião sobre assunto que envolve a vida e a casa de milhões de pessoas pobres, no Brasil e mundo, aqui se pretende sugerir que essa realidade também “julga” leis, sentenças e atos administrativos.
Excluir de cogitação leis e direitos relativos a esses espaços de terra, não se deixar impressionar por contradições visíveis presentes na intepretação e aplicação da lei sobre eles e os sujeitos de direitos ali abrigados, servem de exemplo da possibilidade de a gente pobre favelada “julgar” a lei, a administração pública e o Poder Judiciário, quando, em vez de sujeito de direito, é vítima de cada uma dessas autoridades.
Antes do mais, as favelas comprovam uma ocupação de espaço de terra por multidão de gente pobre sem liberdade de escolha por falta de capacidade econômica para pagar outro onde morar, seja por compra, aluguel, permuta ou outra espécie de quitação de valor. Muito raramente uma necessidade ao nível da sobrevivência como essa é levada em consideração nos juízos de autoridade sobre conflitos relacionados com a terra, embora a erradicação da pobreza e o direito de moradia figurem, a primeira como um dos objetivos fundamentais da República (art. 3º, inciso III) e o segundo, como um dos direitos humanos fundamentais (artigo 6º), ambos da Constituição Federal. Tanto essa como o Estatuto da Cidade, por outro lado, exigem bastante da propriedade privada a obrigação de ela não servir de barreira contrária a tal direito pelo descumprimento da sua função social.
Em segundo lugar, existem contradições típicas de intepretação jurídica do tratamento dispensado a esse espaço físico favela pelo Poder Público, aí incluído o Judiciário, já na sua identificação como “clandestino”, em assimilado e até culturalmente inconsciente preconceito, característicos de toda a distância injustificada da realidade, que esse Poder conserva.
Clandestina, como se sabe, é aquela situação de uma determinada coisa como escondida, fora da visão pública e, por via lógica de consequência, infringente de lei. A realidade da favela, porém – até pela feiura, amontoado desordenado de barracos, casas de papelão e lata, “gatos” utilizados para servir-se de luz, água ligada de qualquer jeito, vias estreitas de acesso às moradias, sarjetas fétidas e lixo, além da companhia de ratos e insetos – de clandestina não tem nada.
Tudo quanto há de injustiça numa realidade pobre como essa está muito bem estudado num livro recente de Raquel Rolnik, “A guerra dos lugares. A colonização da terra e da moradia na era das finanças” (São Paulo: 2015, Boitempo Editorial). Ela é apresentada por Flavio Villaça como professora da faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, especializada em política habitacional, planejamento e gestão da terra urbana. Foi relatora especial para o Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU, de 2008 até maio de 2014, diretora de planejamento da cidade de São Paulo (1989-1992), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades do Brasil (2003-2007) e Coordenadora de Urbanismo do Instituto Polis (1997-2002).
Sob um currículo dessa expressão, são de suas práticas e estudos algumas observações quase sempre ignoradas pelas leis, pelos atos administrativos e pelas sentenças. Sobre a causa do cada vez maior estreitamento do espaço de terra urbana para famílias pobres, sua advertência é muito clara:
“Em tempos de capitalismo financeirizado, em que a extração de renda sobrepõe-se ao mais-valor do capital produtivo, terras urbanas e rurais tonaram-se ativos altamente disputados. Isso tem produzido consequências dramáticas, especialmente – mas não exclusivamente – nas economias emergentes. As dinâmicas que acompanham a liberalização dos mercados de terras estão aumentando a pressão do mercado sobre os territórios controlados por comunidades de baixa renda. Isso ocorre num contexto global em que a terra urbanizada não está disponível para os grupos mais pobres. Comunidades ficam, então, sob a constante ameaça de espoliação de seus ativos territoriais.” {...} “As políticas de planejamento, administração e gestão da terra – inclusive das terras públicas – têm enorme impacto na construção da matriz segurança/insegurança. No entanto, assim como nas políticas habitacionais, a propriedade privada individual ganhou hegemonia sobre todas as outras formas de reforma e administração fundiária no mundo.”
Além de demonstrar como essa estratégia não está dando resultado, ela agrava um “pluralismo de conflitos”, mantendo o povo pobre favelado numa paradoxal “transitoriedade permanente”, na precisa observação da autora. Essa é a razão de ela reclamar com sobradas razões:
“Ao tratar dos assentamentos populares das cidades ao redor do mundo, a categoria “ilegal” não deve – e não pode – ser absolutizada. Em vários casos, a maioria dos habitantes vivem em sistemas de posse que podem ser considerados como paralegais, semilegais ou quase legais, tolerados ou legitimados por leis costumeiras ou pelo simples uso ou tradição, reconhecidos ou simplesmente ignorados pelas autoridades.”
Não se pode negar a existência crescente, particularmente em alguns tribunais do país e algumas administrações públicas, de colocarem a questão toda das favelas, dos cortiços, dos loteamentos considerados “irregulares” nesse outro patamar aconselhado pela Raquel.
Ainda falta muito, todavia, para a interpretação e a aplicação da lei reconhecer a sua própria insuficiência para solucionar problemas dessa gravidade social e não preferir supri-la com afirmação de pura autoridade, como acontece na maioria das execuções de decisões liminares em ações possessórias carregadas de violência. Ou seja, tanto a lei, como a sentença e o ato administrativo só chegam ali para punir os efeitos da injustiça social, sem jamais conseguirem remover as suas causas.
Quantos juristas ficarão escandalizados com posses de terra identificadas como “paralegais, semilegais ou quase legais”. É por não ter coragem e ousadia, como essas da Raquel, que a tradição doutrinária do passado, ainda vigente na intepretação e aplicação das leis sobre posse, continua ignorando existir, ao lado da classificação civilista desse tipo de sujeição de coisas, (dos tipos posse objetiva, subjetiva, justa, injusta, de boa ou de má fé, nova ou velha...) um outro tipo de posse, uma posse necessária, material, concreta, indispensável à vida, como a exercida por pessoas sem outro teto, numa favela, ou sem terra num acampamento rural.
A leitura dessa obra da Raquel, assim, faria muito bem a legisladoras/es, autoridades da administração pública e juízas/es, se não pelo dito aqui, pelo testemunho de David Harvey sobre ela, registrado na contracapa do livro:
“Uma denúncia devastadora da incapacidade dos nossos sistemas político e econômico atuais de oferecer abrigo decente em condições de vida dignas para a maioria dos cidadãos do planeta. Como relatora especial para o Direito à Moradia Adequada da ONU, Raquel Rolnik adquiriu um cabedal incrível de experiência global relativa a questões de moradia, ora materializado neste livro. É uma obra fantástica, que articula e entrelaça de forma admirável o debate teórico e um rol impressionante de testemunhos pessoais colhidos em primeira mão ao redor do mundo.”
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O que as favelas revelam sobre leis, juízas/es e administrações públicas? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU