Por: MpvM | 24 Abril 2020
“A liturgia deste terceiro domingo da páscoa nos convida a louvar a Deus que nos assumiu como filhas e filhos pela ressurreição de Jesus Cristo (cf. Oração do dia)
Essa nova realidade para o ser humano só é possível considerando que Jesus é o cumpridor e realizador da promessa de Deus para o seu povo. Promessa feita aos pais da fé e proclamada sem fim pelos profetas. É neste sentido que a liturgia de hoje se situa: apresentar o ressuscitado como aquele para o qual convergem as expectativas do povo do antigo testamento e aquele no qual contemplamos a esperança realizada.”
A reflexão é de Tânia da Silva Mayer, leiga. Ela possui graduação em Teologia (2012) e é mestra em Teologia Sistemática (2015) pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE/BH. É editora de textos da Comissão de Publicações do Vicariato Episcopal para a Ação Pastoral, da Arquidiocese de Belo Horizonte e articulista no Portal Dom Total. Assessora paróquias, comunidades e grupos, com formação teológica e litúrgica, em Belo Horizonte e demais cidades.
Leituras bíblicas
1ª leitura: At 2,14.22-33
Salmo: Sl 15
2ª leitura: 1Pd 1, 17-21
Evangelho: Lc 24, 13-35
A liturgia deste terceiro domingo da Páscoa nos convida a louvar a Deus que nos assumiu como filhas e filhos pela ressurreição de Jesus Cristo (cf. Oração do dia). O que aconteceu com Jesus acarretou sérias consequências para toda a humanidade: Por meio dele, por seu precioso sangue, alcançamos a fé em Deus. Nisso consiste nossa esperança (cf. 2ª leitura) enquanto aguardamos a ressurreição definitiva (cf. Oração do dia).
Essa nova realidade para o ser humano só é possível considerando que Jesus é o cumpridor e realizador da promessa de Deus para o seu povo. Promessa feita aos pais da fé e proclamada sem fim pelos profetas. É neste sentido que a liturgia de hoje se situa: apresentar o ressuscitado como aquele para o qual convergem as expectativas do povo do antigo testamento e aquele no qual contemplamos a esperança realizada.
No coração da liturgia da palavra está a narrativa do Evangelho de Lucas (Lc 24, 13-35) sobre os discípulos de Emaús. A narrativa, específica da obra lucana, é uma verdadeira catequese para a comunidade cristã pós-pascal. Ao entardecer do primeiro dia da semana, dois discípulos retornam de Jerusalém para Emaús depois de terem presenciado a crucificação de Jesus Cristo. Depois de ouvirem o testemunho das mulheres que haviam ido ao túmulo na madrugada daquele dia e voltaram dizendo terem-no encontrado aberto e vazio, eles retornam para a casa com o rosto triste e abatido. Vão conversando pelo caminho sobre todas as coisas que aconteceram. Um peregrino se aproxima deles. Os leitores sabem que se trata de Jesus ressuscitado, mas os dois o desconhecem. Lucas afirma que “estavam como que cegos” (v.16). Aproximando deles, Jesus lhes faz uma pergunta que permite recordarem para si mesmos o que havia acontecido desde que começaram a seguir o mestre até o ocorrido dos últimos dias, que culminou com a esperança e a expectativa frustradas. Eles indagam o peregrino ser o único em Jerusalém a não saber dos fatos que marcaram a vida de todos.
Jesus não hesitou denunciar a lentidão dos discípulos para crer no que os profetas anunciaram. E faz com eles uma catequese que retoma a crucificação à luz do que a lei e os profetas anunciaram a respeito do messias esperado por Israel, em como ele devia sofrer e morrer para ser glorificado por Deus. A conversa desenvolvida no caminho vai sendo concluída quando os discípulos se aproximavam de casa. Jesus faz que seguiria adiante, mas é convidado a ficar com eles, porque já estava anoitecendo. Acedendo ao convite, ele entra e se senta à mesa, abençoa o pão e o partilha com eles. Nesse momento, Lucas apresenta o desfecho do clima criado pelo desconhecimento de Jesus pelos discípulos. Agora os olhos deles se abrem e podem reconhecer o mestre, mas agora o ressuscitado já não está mais ali. Então eles afirmam que o coração ardia no peito enquanto o peregrino falava da Escritura ao longo do caminho. A tristeza é transformada em alegria, a desesperança em esperança. Não há motivos para guardarem para si essa revelação. Voltam para Jerusalém, para a companhia dos onze, e deles recebem o testemunho: “realmente o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!” (v.34). Só aí é que também podem dar testemunho do que lhes aconteceu no caminho e de como reconheceram Jesus na partilha do pão.
A Escritura ocupa um lugar central para a transformação que acontece com os discípulos que caminham para Emaús entristecidos e abatidos. Estão cegos porque a tragicidade da morte do mestre de suas vidas os impedia de ler os fatos presentes à luz da tradição que ensinou que o messias sofreria para entrar na glória. Por essa razão, a catequese de Jesus retoma o antigo testamento e faz com que vejam para além das expectativas que carregavam a respeito da figura de messias pelo qual esperavam. A esperança de Israel se convergia para um messias libertador que instauraria uma nova ordem política, social e econômica. Não é assim o messianismo de Jesus. Precisamente, ele aponta o caminho para a transformação dos corações, a única capaz de operar verdadeira revolução ética na vida das pessoas e das sociedades. Por isso, a catequese do ressuscitado revisita a Escritura nos pontos em que ela fundamenta a existência do Filho de Deus, para fazê-los compreender e experimentar que o Senhor ressuscitado é aquele no qual se cumpre definitivamente a aliança de Deus com o povo.
É nesse sentido que a liturgia da Palavra de hoje apresenta na primeira leitura (At 2,14.22-33) o discurso de Pedro à multidão após o dom do Espírito Santo. É preciso entender que, assim como Jesus procede com os discípulos de Emaús, Pedro não se ocupa de oferecer um resumo do que compreende a existência de Jesus Cristo convertida a Deus e às pessoas, mas ele oportuniza um mergulho dos presentes no mistério pascal. Recorrendo também à tradição sapiencial do antigo testamento, apresenta Jesus na estirpe da Davi, mas como o primeiro a ser ressuscitado, tal como advertiram os antigos.
Na cena de Emaús, o passeio pelas Escrituras vai aos poucos abrindo os olhos e a inteligência do coração dos discípulos. E será no contexto familiar que ao partir o pão os olhos se abrirão. Lucas não está preocupado em dizer que Jesus realiza uma ceia eucarística com os dois, mas é insistente em dizer que é na comunhão das vidas, expressa na comunhão do pão, que a ressurreição se torna visível e já não pode mais ser dominada pelos desejos no jogo das relações. É por isso que, ao comungarem da vida do peregrino-Jesus-ressuscitado, os olhos vendo já não podem mais ver a ressurreição, simplesmente porque outro sentido já foi acessado, o do coração que se abre para além da dor e da tristeza.
Os tempos que estamos vivendo nos deixam especialmente abatidos e com o rosto entristecido. Os sinais de morte e a morte de tantas pessoas nos fazem perder a esperança e caminhar cabisbaixos ao longo dos dias em que estamos trancafiados em nossas casas, impedidos de nos reunirmos em comunidades para celebrar a palavra e a eucaristia. Por essa razão, estamos ainda mais condicionados a não percebermos a ressurreição acontecendo em nosso dia a dia ou ao nosso lado. A narrativa lucana nos ensina quatro coisas.
• A primeira afirma que é preciso ler a vida, os sinais de nosso tempo. A alienação da realidade vivida é um grave tapume para os olhos da fé. É preciso saber o que e como vivemos individual e coletivamente.
• O segundo ensinamento da obra lucana diz respeito à abertura para ouvir mais uma vez a palavra de Deus, a fim de que o mergulho no mistério que ela apresenta possa reacender em nós a fé e a esperança que nos permite olhar de outra maneira para o momento vivido.
• Uma terceira coisa a ser observada é a perspectiva da partilha. Somente quando somos capazes de nos envolvermos verdadeiramente com os outros – conforme o código bíblico, comer e beber juntos – é que nossos olhos podem ver os sinais do novo que estão à nossa volta, porque já não somos estranhos e indiferentes.
• O quarto ensinamento afirma que a comunidade de fé tem uma importante missão de nos recordar a força da vida que teima em vencer a morte.
Por essa razão e só por essa é que a Igreja não deixa de anunciar ao mundo que é Páscoa, mesmo em tempos de pandemia. Precisamente, a missão das cristãs e dos cristãos consiste em recordar sempre a quem está abatido e desanimado que a vida vencerá a morte, porque Deus não nos reservou nada menos que a vida nova adquirida “pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro sem mancha nem defeito” (cf. segunda Leitura).
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3º Domingo da Páscoa - Ano A - O Ressuscitado caminha conosco e nos dá a vida! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU