25 Mai 2008
Há poucos dias o Secretário de Estado, Cardeal Tarcisio Bertone, com a aprovação de Bento XVI, enviou uma carta aos bispos do mundo inteiro, reafirmando que as normas estabelecidas pela Congregação para a Educação Católica na Instrução sobre os critérios de discernimento vocacional em relação com as pessoas de tendências homossexuais antes de sua admissão ao seminário e às ordens sagradas de 4 de novembro de 2005, é de aplicação universal e não tem exceção. Para ler a notícia clica aqui.
Timothy Radcliffe, teólogo inglês e ex-superior geral da Ordem dos Pregadores, ou seja, dos Freis Dominicanos, escreveu um artigo na revista The Tablet, 26-11-2005, por ocasião da publicação da referida instrução.
Eis o artigo.
O documento do Vaticano tão longamente esperado sobre a homossexualidade no sacerdócio, que deve ser publicado na próxima semana, vazou substancialmente. Aqui o antigo Mestre dos Dominicanos avalia o que ele pode dizer sobre homens gays e sua compatibilidade com a ordenação
Duas semanas atrás, eu estava na Nova Escócia, orientando um retiro com os bispos e padres do Canadá oriental. Um padre enviou um pedaço de papel com uma pergunta, pois ficava muito envergonhado para fazê-la publicamente: “Esse documento sobre a admissão de gays para o sacerdócio significará que não serei mais bem-vindo? Significará que pessoas como eu serão padres de segunda classe?” Ouvi essa mesma pergunta de uma forma ou de outra de padres através do mundo inteiro. O documento do Vaticano sobre homossexualidade e sacerdócio, é o foco de intensa ansiedade, o que é motivo para termos de prestar atenção ao que ele diz exatamente.
Há dois princípios para guardar na memória: primeiro, devemos dar-lhe uma interpretação tão positiva quanto possível. Não é o caso de exagerar, buscando uma interpretação particularmente positiva para o documento, mas de tentar discernir quais são as verdadeiras intenções dos autores. Nossa mídia está cheia de acusação, e este documento será denunciado como outro ataque aos gays. Essa denúncia também ocorre dentro da Igreja. A Congregação para a Doutrina da Fé tem freqüentemente dado interpretações tendenciosas para os escritos dos teólogos. Os teólogos, por sua vez, dão a interpretação mais negativa possível para os documentos do Vaticano. Nada de bom pode vir de Roma! Como uma Igreja, temos de achar outra forma de ouvir-nos uns aos outros, que realmente preste atenção ao que é dito. Justiça e honestidade exigem isso.
Segundo, uma vocação é um chamado de Deus. É verdade que, como o documento diz, é recebida por meio da Igreja, na Igreja e para o serviço da Igreja, mas é Deus quem chama. Tendo trabalhado com bispos e padres, diocesanos e religiosos em todo o mundo, eu não tenho dúvidas que Deus chama, sim, homossexuais para o sacerdócio, e eles estão entre os mais dedicados e impressionantes padres que conheci. Assim, nenhum padre que é convicto de sua vocação deveria sentir que esse documento o classifica como um padre defeituoso. E podemos presumir que Deus continuará a chamar tanto homossexuais quanto heterossexuais para o sacerdócio porque a Igreja necessita dos dons de ambos.
A Igreja tem um direito e um dever de aplicar cuidadosamente o discernimento na admissão dos seminaristas. Quando o documento diz que isso se tornou mais urgente pela situação corrente, então presumivelmente está pensando na crise do abuso sexual que estremeceu a Igreja no Oeste. Assim há duas questões: esse documento provê bons critérios para discernir quem tem uma vocação? E ele ajudará referir-se à crise do abuso sexual?
O documento insiste que um candidato ao seminário deve alcançar uma maturidade efetiva que lhe permitirá relacionar-se apropriadamente com homens e mulheres, desenvolvendo nele um verdadeiro senso de paternidade espiritual para com a comunidade eclesiástica que lhe será confiada. Vamos deixar de lado, no momento, a questão da paternidade espiritual e focar na maturidade afetiva. O que isso significa?
O documento afirma que a Igreja ”não pode admitir para o Seminário ou para o Clero os que são ativamente homossexuais, têm profundas tendências homossexuais, ou apóiem a assim chamada cultura gay”. O primeiro critério é retidão. O mesmo pode ser dito daqueles que são ativamente heterossexuais. O segundo necessita de esclarecimento.
O que é que significa uma tendência homossexual profunda? O contra-exemplo dado pelo documento é de alguém que passa por uma fase temporária de atração homossexual, e afirma que o seminarista deve tê-la superado pelo menos três anos antes da ordenação para o diaconato. Isso não abrangeria todos os casos de seminaristas que estão refletindo sobre sua vocação à luz desse documento.
Poderia também ser interpretado como ter uma orientação homossexual permanente. Mas isso pode não estar correto uma vez que, como eu disse, há muitos padres excelentes que são gays e que claramente têm uma vocação vinda de Deus. Talvez possa ser mais bem compreendido significando alguém cuja orientação sexual é tão fundamental para sua autopercepção que seja obsessiva, dominando sua imaginação. Isso realmente colocaria a pergunta se ele poderia viver feliz como um padre celibatário. Mas qualquer heterossexual que fosse focado assim em sua sexualidade teria problemas também. O que importa, invés da orientação, é a maturidade sexual.
Então há o item sobre o apoio à cultura gay. É certo que seminaristas ou padres não deveriam ir a bares gays e que os seminários não deveriam desenvolver uma subcultura gay. Isso seria reconhecer como central para suas vidas o que não é fundamental. Os seminaristas deveriam aprender a sentir-se confortável com qualquer que fosse sua orientação sexual, ser contentes com a essência que Deus lhes deu, mas qualquer tipo de subcultura sexual, gay ou hetero, seria subversiva ao celibato.
Mas apoiar uma cultura gay significa somente isso? Como diz o documento, a Igreja deve opor-se à discriminação injusta contra homossexuais, do mesmo modo que ela o faz contra a discriminação racial. Isso significa que todos os padres devem estar preparados para apoiar as pessoas gays, se elas sofrerem opressão, e serem vistos dando-lhes apoio. É claro que isso levanta assuntos complexos. Opor-se ao casamento gay será visto por algumas pessoas como discriminação, enquanto no ensinamento Católico oficial não o é. Se alguém vier a ser envolvido em qualquer oposição à discriminação, então ele é responsável por ser mal compreendido. É um risco que se deve correr algumas vezes.
Finalmente, há a questão da paternidade espiritual. Esse não é um conceito com que estou familiarizado. Somente os heterossexuais podem oferecê-la? Essa é a visão do Bispo para as forças armadas norte-americanas, o qual disse recentemente: “Nós não queremos que nossas pessoas pensem, como nossa cultura está dizendo agora, que não há realmente diferença se a pessoa é gay ou hetero, é homossexual ou heterossexual. Nós achamos que, para nossa vocação, há uma diferença, e nossas pessoas esperam ter um sacerdócio masculino que estabeleça um modelo forte do papel de masculinidade”. Não posso acreditar que isso é o que o documento pretende. Há pouca evidência de Cristianismo muscular no Vaticano. Se o papel de padre fosse ser um modelo de masculinidade, então ele seria relevante para menos que metade da congregação, e poder-se-ia argumentar então que mulheres também deveriam ser ordenadas como modelos do papel da feminilidade. Eu presumo que a “paternidade espiritual” é, acima de tudo, exercitada por meio do cuidado das pessoas e a pregação de uma palavra fértil vivificante, mas não tem nenhuma conexão com orientação sexual.
É extremamente urgente que formemos padres que sejam “afetivamente maduros”, e capazes de relacionarem-se facilmente com homens e mulheres. Esse documento tenta identificar critérios que ajudem a discernir essa maturidade, e aponta para assuntos que são inegavelmente importantes. Esses critérios necessitam ser aplicados igualmente para todos os candidatos, independentemente de sua orientação sexual.
Nossa sociedade freqüentemente dá a impressão de que heterossexuais e homossexuais são virtualmente duas espécies do ser humano. Mas o sentimento humano é complexo e padrões de desejo mudam e evoluem. Eu conheci padres que pensavam ser gays quando tinham 30 anos, e então descobriam que não o eram, e vice-versa. Se devemos formar padres que viverão seu celibato proveitosamente, então eles devem sentir-se à vontade com eles próprios, em toda sua complexidade emocional, sem serem iludidos em pensar que isso seja o centro de nossa identidade. Isso é o Cristo. “Ainda não aparece o que seremos, mas quando ele aparecer, deveremos ser como ele, pois deveremos vê-lo como ele o é” (I João 3:2).
Nossa sociedade é obcecada pelo sexo, e a Igreja deve oferecer um modelo são, mas não compulsivo, de aceitação da sexualidade. O Catecismo do Concílio de Trento ensinou que padres deveriam falar sobre sexo com moderação e não com prolixidade. Deveríamos estar mais atentos a quem os seminaristas estão inclinados a odiar do que a quem eles amam. Racismo, misoginia e homofobia todos seriam sinais de que alguém não poderia ser um bom modelo de Cristo.
O documento conclui urgindo os seminaristas a serem verdadeiros para com seus diretores espirituais. Mentir não corresponderia ao espírito da verdade, da lealdade e da disponibilidade que devem caracterizar a personalidade de alguém que se considera chamado para servir a Cristo e a sua Igreja no sacerdócio ministerial. Isso é de fundamental importância. Mas os critérios desse documento são interpretados em sentido estreito para significar que ninguém que é gay pode ser ordenado, então alguns seminaristas encontrar-se-iam em uma situação impossível. Se eles falarem abertamente, então não podem ser aceitos.
Se eles não o fizerem, então estão falhando em transparência. O perigo é que os mais honestos podem então partir e os menos confiáveis ficar, e assim formaríamos um sacerdócio que seria imaturo, constrangido consigo mesmo, e mais sujeitos a continuar a abusar. É, então, mais importante que esses critérios não sejam interpretados de uma maneira que induzam as pessoas para a dissimulação. Isso impediria ativamente a formação de padres que são afetivamente maduros.
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Gays podem ser padres? Um artigo de Timothy Radcliffe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU