15 Janeiro 2008
“Juntos sofreram perseguições por ocasião do golpe militar; juntos ajudaram-se reciprocamente a vencer as dificuldades do exílio; juntos formaram as Comissões de Justiça e Paz e os Centros de Direitos Humanos para combater os desmandos da ditadura; juntos marcharam pelas Diretas-Já; juntos estiveram na criação e fortalecimento das CEBs, das Pastorais Sociais, e mais especificamente, da Pastoral de Fé e Política”, lembra Plínio de Arruda Sampaio (PSOL-SP), referindo-se aos cristãos brasileiros, em especial os formadores da Teologia da Libertação. Depois de décadas de união e, seis anos de governo Lula ocorreu a “primeira fissura nessa unidade: um grupo dos cristãos sociais apóia Lula e outro grupo o combate tenazmente”, constata..
“Podemos considerar essa divergência uma catástrofe, um escândalo, um pecado?”, questiona. E em seguida dispara: “Claro que não. Na esfera da política, a regra é a divergência e isto não tem por que afetar a unidade dos cristãos”.
No artigo a seguir, Sampaio propõe a reflexão: “Quem de nós não se sentiu questionado pelo gesto do bispo? Quem não se viu obrigado a fazer uma revisão da sua própria militância a fim de ver se está realizando as tarefas e correndo os riscos inerentes à construção do Reino?”, lembrando a greve de fome de D. Cappio, no último mês. E conclui: “Agora que o profeta foi calado, fica-nos o desafio de não deixar que seu sacrifício seja esquecido. Está aí uma boa ocasião para que nós - apoiadores e opositores de Lula - nos disponhamos a dialogar, a fim de aplainar nossas diferenças”.
Sampaio é militante político brasileiro filiado ao PSOL. Formado em Direito, trabalhou como promotor público e participou da Ação Popular. Em 1962, foi eleito deputado federal pelo Partido Democrata Cristão e tornou-se relator do projeto de Reforma Agrária que integrava as Reformas de Base do governo João Goulart.
Eis o artigo.
“Porque os corpos dos animais, cujo sangue o sumo sacerdote carrega no Santuário para expiação do pecado, são queimados fora do acampamento. Foi por isso que Jesus, para santificar o povo por seu próprio sangue, sofreu do lado de fora da porta”. (São Paulo. Hebreus. 13, 11:12).
"O balanço do ano de 2007 e as perspectivas de 2008 não se resolvem sem a decifração do mistério profundo que emana das águas do rio São Francisco. Muito abaixo da crosta, abaixo das águas represadas e até dos aqüíferos mais profundos: há uma fonte de água limpa que insiste em jorrar. Entroncamento, esquina da história, o gesto de Dom Cappio, o radical sereno, é um divisor de águas". Leo Lince, militante marxista.
A. Unidade e Divisão na Igreja
1. Se divergências internas comprometessem a unidade da Igreja, ela teria sucumbido já nos seus primeiros cinqüenta anos, na polêmica relativa ao batismo dos gentios. Mas esta foi só a primeira. As divergências continuaram e continuam vivas no seio da Igreja Católica. Muitas remontam a Constantino (séc. IV), explodiram na Reforma (séc. XV) e acirraram-se com a Revolução Francesa (séc. XVIII). Desta última surgiu, sessenta anos depois, uma corrente de católicos que existe até hoje: os "cristãos sociais" – cristãos cuja vida de fé foi fortemente influenciada por gente como Ozanan, Lacordaire, Keteler, Sturzo; em seguida por Maritain, Lebret, Cardjn, Mounier, Lubac, Lombardi, Congar; e, mais recentemente, pelos grandes autores da Teologia da Libertação.
Na metade do século passado, essa visão de Igreja difundiu-se no Brasil através principalmente do apostolado de Dom Helder Câmara, Alceu de Amoroso Lima, dos padres Dominicanos, dos jovens da JUC (Juventude Universitária Católica). Os cristãos que participam da Pastoral de Fé e Política são herdeiros dessa história.
2. Caracterizam-se por um modo específico de participar na construção do Reino de Deus anunciado pelo Cristo como a grande Boa Nova que Ele trouxe para a humanidade.
O Reino de Deus abrange todas as dimensões do ser humano. A particularidade do carisma dos cristãos sociais consiste na dimensão que escolheram (sem prejuízo das demais) como centro principal do seu testemunho: a implantação de estruturas sociais justas e respeitadoras da dignidade do homem. Isto os obriga a intervir diretamente na política, a fim de transformar estruturas de exploração e dominação.
3. É importante assinalar que a política tem uma lógica interna, um dinamismo próprio, implica um certo modo de vida, impõe regras e condições aos que buscam intervir na sua dinâmica. Por isso, a intervenção nesse plano provoca uma tensão permanente na vida espiritual dos cristãos sociais: por um lado, para serem eficazes, precisam obedecer a essa lógica e essas condições; por outro lado, não podem se submeter inteiramente a elas sem frustrar seu testemunho de fé.
4. Os cristãos sociais brasileiros constituem um grupo muito unido no interior da Igreja brasileira. Juntos trabalharam sob a batuta de Dom Helder, na preparação da intervenção dos padres conciliares brasileiros na discussão do esquema XIII (base da Populorum Progressio) do Concilio Vaticano II; juntos sofreram perseguições por ocasião do golpe militar; juntos ajudaram-se reciprocamente a vencer as dificuldades do exílio; juntos formaram as Comissões de Justiça e Paz e os Centros de Direitos Humanos para combater os desmandos da ditadura; juntos marcharam pelas Diretas-Já; juntos estiveram na criação e fortalecimento das CEBs, das Pastorais Sociais, e mais especificamente, da Pastoral de Fé e Política.
Nesse contexto, o apoio não oficial, mas efetivo, através do engajamento político de seus membros no PT e nas campanhas de Lula, foi um processo natural: todos consideravam aquele caminho adequado para corrigir os horrores da sociedade capitalista e para possibilitar a plena participação do povo nas decisões do estado brasileiro.
5. Os seis anos de governo Lula causaram a primeira fissura nessa unidade: um grupo dos cristãos sociais apóia Lula e outro grupo o combate tenazmente.
Podemos considerar essa divergência uma catástrofe, um escândalo, um pecado? Claro que não. Na esfera da política, a regra é a divergência e isto não tem porquê afetar a unidade dos cristãos.
A opção cristã é compatível com diferentes opções políticas, pela simples razão de que a todas transcende, e a nenhuma se acorrenta. Basta que a proposta política respeite a dignidade da pessoa humana para que possa ser aceita pelo cristão.
Obviamente, a unidade é melhor do que a divisão, sobretudo considerando o poderio das estruturas adversas e o reduzido número dos cristãos sociais. Contudo, diante do governo Lula, a unidade só tem sentido se formos capazes de travar um diálogo sobre nossas divergências, sem escamotear as dificuldades. Em outras palavras: se formos capazes de debater o tema sem intransigências e sem faltar à caridade.
Um debate deste tipo não pode se perder na desqualificação dos que pensam diferentemente e nem na atribuição de motivos menores aos que não comungam das mesmas posições. Pelo contrário, funda-se no pressuposto de que os contendores agem com reta intenção e que estão dispostos a revisar posições equivocadas, se forem convencidos pelos argumentos do debate.
Isto posto podemos entrar em matéria.
B. Os erros atribuídos aos críticos do governo
Os opositores do governo Lula têm recebido as seguintes críticas: irrealismo, elitismo, ressentimento, moralismo, e até neo-lacerdismo. As três últimas são apreciações subjetivas, que fogem ao espírito com que este debate deve ser travado e por isso, não serão respondidas.
1. Duas visões contraditórias da conjuntura no interior da Pastoral de Fé e Política
Antes de analisar as críticas de irrealismo e elitismo, convém estabelecer claramente as diferenças de visão sobre a conjuntura brasileira atual, porque elas estão na raiz das divergências.
Entendem os cristãos favoráveis a Lula que a sua vitória inaugurou, já pela figura do personagem (um retirante que chegou à presidência), já pela política que está executando, uma nova conjuntura, cuja essência é um processo lento, mas efetivo, de integração das grandes massas populares nas estruturas econômicas e políticas da nação. Tanto é assim, aduzem que, apesar da lentidão de alguns avanços, o povo apóia maciçamente o presidente.
Na defesa da política presidencial, assinalam ainda os apoiadores de Lula que, se ele andar mais depressa do que está andando, há risco de retrocesso. Afirmam que, só os irrealistas e os de má vontade não conseguem ver as transformações sociais que estão ocorrendo na base da sociedade. Essa visão da conjuntura parece-nos completamente equivocada.
O processo em marcha consiste na perda acelerada do controle nacional sobre a economia; na perda, também acelerada, dos valores culturais que fundamentam o sentimento de identidade nacional; na deterioração, igualmente acelerada, do meio ambiente; e, para culminar, na esgarçadura do tecido moral do estado.
A imagem que acode à mente, diante dos fatos estarrecedores estampados diariamente nos jornais é o de uma guerra civil não declarada dos setores integrados no sistema capitalista contra a população pobre, dele marginalizada.
2. Propostas dos opositores ao governo Lula
A primeira crítica ao governo Lula é que ele, não somente deixa de enfrentar essa conjuntura dramática, como procura escamoteá-la com medidas que esconde das massas a verdadeira situação do país, estimulando assim, comportamentos que reforçam a sua passividade.
Para chamar essas propostas de irrealistas, como elas têm sido chamadas, seria necessário que se demonstrasse: a) que a conjuntura não é dramática; e b) que as medidas que os opositores sugerem para enfrentá-la provocariam retrocesso.
a) Quanto ao caráter dramático da conjuntura não há necessidade de muito esforço para reunir evidências. Acaso não é dramática a situação das populações periféricas nas medias e grandes cidades, sujeitas a viver em meio à guerra aberta entre as polícias corruptas e o crime organizado? Que dizer do tratamento dado aos presos; do descalabro em que se encontra a maioria dos hospitais e do abandono das escolas públicas? A corrupção que levou quase todo o primeiro escalão do governo a ser denunciado pelo Ministério Público não configura uma dramática deterioração moral do estado?
Se estes poucos exemplos, destacados de uma série enorme de horrores, que enchem diariamente as páginas dos jornais, não configurarem uma situação dramática, é porque as palavras perderam completamente seu significado.
Quanto tempo levará, mantendo-se o ritmo do governo Lula, para evitar que mulheres sejam encerradas em celas de presos masculinos? Quando os trabalhadores que vivem nas favelas do Rio de Janeiro e nas periferias de São Paulo poderão transitar tranqüilamente sem o risco de serem atingidos por uma bala perdida? Quantas gerações de alunos serão prejudicadas pela deterioração da rede escolar pública?
Não pode ser, portanto, pelo lado do exagero na caracterização da conjuntura e na urgência em enfrentá-la que pode prosperar a critica de irrealismo aos opositores do presidente.
b) Será então a acusação de irrealismo fundada no caráter das medidas propostas? É o que se examinará a seguir.
I) Lula faz muito pouco no plano da redução da desigualdade, apesar de ter todas as condições para realizar uma reforma agrária; fortalecer a agricultura camponesa; e melhorar substancialmente o ensino público - três das propostas de seus opositores.
Não o faz. Por quê? Porque as ações para romper a dinâmica perversa da desigualdade requerem uma quantidade de recursos que o estado brasileiro só terá condições de reunir se tomar a decisão de postergar o pagamento da dívida pública. No entanto, para o governo, a quantia destinada a fazer esse pagamento é sagrada, intocável, a ponto de ser retirada do montante dos recursos arrecadados antes mesmo da formulação do orçamento. Ora, a quantia que sobra depois desse corte prévio é insuficiente para quebrar a dinâmica que gera desigualdade.
No tocante à reforma agrária e à agricultura camponesa, o governo fez ainda pior: reduziu os insuficientes aportes que havia inicialmente alocado e passou a estimular o maior adversário da população rural: o agronegócio. Com isso, procura conseguir grandes saldos na balança comercial de modo a favorecer a entrada de capital estrangeiro no país.
II) Em relação à ecologia e à democratização da mídia, as soluções sugeridas por seus opositores (proibição dos transgênicos, do desmatamento da Amazônia, da expansão da soja no cerrado), nada têm de irrealistas, pois constituem simplesmente o cumprimento de dispositivos da Constituição. Sua efetivação não exige grandes gastos e depende unicamente de decisões unilaterais do estado brasileiro. O único que se requer é disposição para enfrentar grupos econômicos poderosos. Aí está o problema: Lula não tem coragem de enfrentá-los. Se tivesse, duas coisas poderiam acontecer: impor a esses grupos uma disciplina favorável ao povo; ou sofrer uma derrota no Congresso. Mas até neste caso o povo sairia ganhando, pois a derrota contribuiria mais para conscientizar a massa de seus direitos do que a evidência da capitulação do governo brasileiro diante dos poderosos.
III) Combater a corrupção política também não exige gastos e sim atitudes. Se cumprir a lei não for considerado um comportamento irrealista, a atitude correta de Lula diante dos parlamentares que chantageiam o governo, seria a recusa peremptória a usar os mesmos métodos da cultura política tradicional.
Como o governo lida com um Congresso corrupto, surgiria o que erradamente se classifica como um problema de "governabilidade": o governo não conseguiria aprovar seus projetos. Seria muito mais salutar se, para superar essa dificuldade, Lula, em vez do "mensalão", decidisse fazer aquilo que os cristãos sociais consideram fundamental para o avanço democrático: convocar o povo para participar do debate sobre os seus projetos.
Alguém acredita que os senadores derrotariam a CPMF se Lula tivesse reunido um milhão de pessoas em Brasília, para explicar-lhes porque esse imposto é necessário ao país?
Por que não seguiu, desde o início, esse caminho de governabilidade? Porque a presença da massa na rua, fora dos tradicionais comícios eleitorais, reduz o poder da classe dominante. Para não contrariar a classe dominante, Lula não quer mais arregimentar as massas contra o sistema capitalista.
Claro está que se Lula tivesse optado pelo caminho aqui sugerido, a tensão política seria bem maior. Mas inferir daí, como tem sido feito, o risco de golpe de estado contra o presidente não tem fundamento, nem na linha atual da política externa norte-americana (sem cujo assentimento não há golpe possível no continente), nem na política interna (Forças Armadas sem legitimidade para sustentar um regime de exceção).
Parece evidente, diante dessa realidade que não há nenhum irrealismo, voluntarismo, ou pressa injustificada nas medidas propostas e, conseqüentemente, nas criticas a Lula por não tê-las adotado.
3. Crítica aos "feitos" do governo Lula, apregoados pelos seus apoiadores.
Os defensores de Lula têm propalado os seguintes avanços do seu governo em favor do povo: I) estabilização da economia e volta do crescimento; II) aumento da oferta de emprego; III) redução na desigualdade de renda; IV) atenção aos bolsões de pobreza; V) aumento das oportunidades aos jovens; VI) política externa independente.
I) Louvar a contenção do ritmo inflacionário e a volta do crescimento, sem discutir a forma como se conseguiu esse resultado, escamoteia o problema.
A inflação está baixa, mas isto não significa estabilidade da moeda brasileira, porque não foi removido nenhum dos fatores da sua vulnerabilidade diante dos movimentos do capital financeiro internacional: o aumento do passivo externo e a total mobilidade do capital que entra no país.
Por isso, é mais correto dizer que a inflação está sendo contida. E contida por meio de uma política extremamente comprometedora do futuro da nação, uma vez que a estabilidade do real deve-se à entrada maciça de capital estrangeiro nas bolsas de valores. Isto está acontecendo em decorrência de três fatores: dos baixos juros da economia norte-americana; dos altos juros pagos pelo Brasil; e dos enormes favores que o governo concede ao capital financeiro.
A maré financeira atual favorece a entrada de dinheiro estrangeiro, mas, apesar das advertências feitas até por seus correligionários, o governo não tomou medidas para evitar o "efeito manada", caso a conjuntura vire subitamente.
Este tipo de controle da inflação freia o crescimento e o faz depender dos investimentos estrangeiros, ou seja, de uma variável fora do controle nacional.
Quanto à retomada do crescimento econômico, é preciso desmistificar desde logo, esse tipo de argumento. Evidentemente crescer é melhor do que não crescer. Mas, como Celso Furtado demonstrou, há quarenta anos atrás, é uma ilusão pensar que o crescimento por si só melhora substancialmente a vida do povo, se não se modificar o padrão perverso de distribuição de renda.
Além disso, precisa ficar bem claro, para que o nosso povo deixe de viver de ilusões, que as taxas de crescimento da nossa economia respondem muito mais a movimentos externos do capital, sobre os quais não temos controle algum, do que às virtudes das políticas econômicas dos diferentes governos.
Isto posto, convém acrescentar que uma taxa de 5% de crescimento não zera o enorme déficit social e, dado o padrão de distribuição de renda, não é suficiente para gerar empregos para a totalidade da juventude que chega à idade de trabalho.
Além do mais, o crescimento baseado nos investimentos estrangeiros é outra forma de contrair dívida, pois o capital investido gera lucros que retornam aos países de origem, sem esquecer também que, quanto mais a produção cai nas mãos de empresas estrangeiras, menor é a margem de controle dos brasileiros sobre os rumos da sua economia.
Por tudo isso, o verdadeiro debate sobre o desempenho econômico do governo não pode se limitar a uma exposição de cifras estatísticas, mas ao exame dos graves defeitos da política econômica seguida pelo governo ao ver-se obrigado a reagir diante de movimentos da economia mundial.
II) Com relação do crescimento do emprego, cabe perguntar: que tipo de emprego? A propaganda governamental, exaltando os "empregos com carteira assinada", só pode enganar quem não está procurando emprego, pois estes sabem que a expressão não tem mais o significado que tinha durante a era Vargas e até os anos setenta.
Agora - mercê das reformas introduzidas na legislação trabalhista - "carteira assinada" pode significar (e significa para a maioria dos jovens que entram nesse mercado) emprego, precário, sub-remunerado, não muito diferente do trabalho informal, o qual continua grassando impunemente.
III) A propaganda que se faz a respeito da redução das diferenças de renda entre os estratos mais altos e mais baixos da pirâmide de distribuição de renda baseia-se inteiramente em manipulações estatísticas (que consideram apenas a renda do trabalho e excluem a renda financeira) que já foram desmascaradas por técnicos de um órgão federal insuspeito: o Ipea.
As principais medidas para acelerar esse ritmo - a reforma agrária, o fortalecimento da agricultura camponesa, e a recuperação da rede escolar foram substituídas por programas de pequenos financiamentos a pessoas de renda pouco acima da linha de pobreza absoluta.
Tais programas, no geral, são linhas de crédito subsidiado a pequenos empreendedores; aposentados; consumidores de classe média baixa; e jovens que desejam seguir cursos universitários. Esses programas têm grande efeito de propaganda e reduzido impacto estrutural.
Veja-se, para dar um só exemplo, o Prouni. Esse programa inflamou a imaginação de toda uma juventude excluída do ensino superior, mas, na verdade, não se trata de uma solução para o problema do caráter excludente do nosso sistema de ensino, e sim de um expediente de efeito imediato e frustrantes resultados.
Em vez de jogar recursos suficientes para aumentar as vagas das universidades públicas (e criar cursos suplementares para suprir as notórias deficiências de formação intelectual dos alunos da rede estatal), o estado transfere recursos para faculdades privadas que - com raríssimas exceções - são rendosos negócios e não centros de formação universitária.
V) O carro-chefe da propaganda do governo é o aumento do gasto assistencial. Comparado com os minúsculos gastos do governo FHC, houve, de fato, um aumento nos últimos cinco anos.
O gasto assistencial, isoladamente, não soluciona o problema a inserção social da multidão de miseráveis que o capitalismo foi deixando pelo caminho ao longo da sua história. No início do governo tentou-se timidamente articular o esforço assistencial com programas estruturantes. Mas as duas principais iniciativas - crédito subsidiado ao pequeno produtor e compra antecipada - não obstante os resultados muito positivos que apresentaram, foram incapazes de superar os obstáculos opostos pela burocracia estatal e pela barreira da comercialização.
Como os recursos injetados pelo governo foram insuficientes para vencer o círculo vicioso que bloqueia o desenvolvimento da agricultura camponesa, o aumento das verbas assistenciais está servindo para reforçar traços indesejáveis da cultura tradicional da massa (enquanto "sujeitos monetários sem dinheiro") sem ajudá-las a tomar consciência de sua dignidade e de seus direitos.
Pergunte-se aos movimentos populares se o Bolsa Família serviu para mobilizar ou para desmobilizar as massas?
VI) Outro ponto positivo que o governo assinala é o seu desempenho no plano internacional. Convém, antes de examinar este aspecto, considerar as reais margens de ação do nosso país nesse plano.
A dura realidade é que estamos, e sempre estivemos sobre a tutela dos Estados Unidos no plano internacional - realidade que não deve ser ocultada do povo brasileiro, a fim de não estimular ilusórios sentimentos de autonomia e de protagonismo. Evidentemente, essa tutela apresenta brechas, mas sempre que o State Department fecha a questão, só resta às nações subdesenvolvidas o constrangimento de encontrar desculpas para obedecer.
Nesse contexto, para fazer justiça aos dois hábeis operadores, que Lula teve o mérito de colocar e sustentar no Itamaraty, pode-se dizer que procuraram aproveitar as brechas e tiveram que aceitar o inevitável. Por exemplo: o Itamaraty desenvolveu uma estratégia eficaz para congelar a Alca, mas não pôde deixar de apoiar o Mercosul, que não passa de uma plataforma para driblar políticas de proteção das indústrias nacionais, a fim favorecer as indústrias multinacionais.
Nas questões em que o State Department fechou questão: envio de tropas brasileiras ao Haiti e condenação de Cuba na Comissão de Direitos Humanos da ONU, por exemplo, o Itamaraty foi obrigado a aceitar caladamente.
Apesar da limitação estrutural da diplomacia brasileira, o apoio a Chávez, Evo Morales e Rafael Correa; a articulação dos países subdesenvolvidos na OMC - foram pontos positivos que devem ser reconhecidos.
4. Apoio da massa popular a Lula
Este fato é apontado pelos apoiadores do presidente como o melhor indicador do acerto da sua política: a massa estaria enxergando benefícios que olhos "elitistas" não conseguem ver.
Trata-se de uma afirmação problemática, feita de forma categórica, em terreno escorregadio no qual as relações de causa e efeito são de difícil verificação. O apoio popular nunca foi aceito pelos cientistas políticos como o critério definidor do bom governo. Se assim fosse, os governos de Hitler e Mussolini teriam de ser considerados bons, porque ambos desfrutaram enorme popularidade antes que suas políticas revelassem seu verdadeiro caráter.
Sem dúvida, os beneficiários do Bolsa Família têm motivos para apoiar o presidente, inclusive porque não têm consciência de que esse benefício não compensa, nem de longe, os direitos que lhes são negados. Entretanto, o que é intrigante no caso de Lula é que o apoio popular vai além dos beneficiários diretos do Bolsa Família - setores, como os Sem Terra, por exemplo, que não têm razão alguma para apoiá-lo, são majoritariamente lulistas.
Os cientistas apresentam diferentes explicações para o fenômeno, precisamente, porque não conseguem ver uma clara relação de causa e efeito entre o apoio e os benefícios concretamente recebidos.
A explicação aparentemente mais correta é a que se fundamenta no efeito da "cultura do favor". Em uma sociedade na qual massa das pessoas livres pobres ("sujeitos monetários sem dinheiro", na expressão de Roberto Schwarz) sempre foi, desde a colônia, muito grande, a "cultura do favor" adquire peso político e leva as massas populares a uma fidelidade muito grande com as figuras políticas que identificam como do seu lado. A gratidão das 11 milhões de famílias do Bolsa Família e o efeito de demonstração desse programa nos escalões logo acima na pirâmide social explicam essa fidelidade a Lula bem mais do que supostas transformações sociais que os pobres conseguem ver, mas o "elitismo" dos letrados não conseguem captar.
D. Fora das portas da cidade
É preciso finalizar com a análise do episódio que acirrou as divergências no seio da comunidade Fé e Política: o jejum de Dom Cappio.
Trata-se, antes de tudo, de um ato voltado principalmente para a Igreja. Destinou-se a chamar a atenção dos cristãos para a terrível situação em que vivem os pobres em nosso país. Insere-se, portanto, plenamente, na tarefa de construção do Reino de Deus que Jesus Cristo veio inaugurar.
Se o bispo tivesse mobilizado duzentos militantes da CPT, MAB, MST e outras organizações populares do campo para ocupar o canteiro de obras do projeto de transposição das águas do Rio São Francisco (o que lhe seria bem fácil) seu gesto caracterizaria tipicamente um ato de desobediência civil - atitude que dezenas de padres e bispos já realizaram (legitima e reiteradamente) ao longo destes anos. Seria um ato político, voltado diretamente contra o poder do estado.
Mas ele não agiu assim. Vestiu o hábito de franciscano e foi rezar e jejuar em uma capela distante, a fim de falar aos cristãos - conservadores, progressistas, lulistas e anti-lulistas - para os quais essa simbologia tem sentido.
Não estamos diante da linguagem da força, que é linguagem da política (legítima quando voltada para objetivo justo e contida dentro de limites legais), mas diante da linguagem da fé - dessa força misteriosa, em que se conjugam o histórico e o transcendente.
No seu livro Fuori dal Campo, Raniero La Valle mostrou que o profeta, para se fazer ouvir, precisa, muitas vezes, sair fora dos muros da cidade. Jesus foi crucificado fora dos muros de Jerusalém.
O projeto da transposição das águas não é o primeiro grande investimento que o estado faz na região e sabemos que nenhum deles beneficiou efetivamente a população pobre. Esta não é uma opinião técnica, mas uma constatação que qualquer leigo em matéria hidráulica pode fazer e que padres, freiras, bispos e militantes da Pastoral de Fé e Política vêm fazendo ao longo de muitos anos.
Fiel à Opção Preferencial pelos Pobres, Dom Cappio saiu na defesa dos que não têm voz no plano da política nacional.
Fê-lo dentro dos limites permitidos? Claro que não. Mas é precisamente aí que está a profecia. Incontáveis requerimentos, discursos, atos públicos, protestos foram feitos dentro dos limites. Debalde. Sem falar nos governos, pouquíssimos dentro da nossa Igreja - e até dentro da Pastoral de Fé e Política - tomaram atitudes efetivas para exigir uma discussão mais ampla da problemática obra.
Tal como os convidados do banquete, a que alude a conhecida parábola do Cristo, estávamos demais ocupados com as nossas agendas. O sacrifício do bispo mostrou-nos que é preciso sempre deixar margem para poder dar atenção à vítima da parábola do Bom Samaritano.
Em situações limites, nas quais o grau de alienação é muito grande, somente um fato impactante pode tirar a comunidade da letargia em que se encontra. Quem de nós não se sentiu questionado pelo gesto do bispo? Quem não se viu obrigado a fazer uma revisão da sua própria militância a fim de ver se está realizando as tarefas e correndo os riscos inerentes à construção do Reino?
Claro está que esse exame de consciência às vezes nos machuca. Mas não devemos criticar o bispo. Devemos nos criticar.
6. Agora que o profeta foi calado, fica-nos o desafio de não deixar que seu sacrifício seja esquecido. Está aí uma boa ocasião para que nós - apoiadores e opositores de Lula - nos disponhamos a dialogar, a fim de aplainar nossas diferenças.
O diálogo poderia começar diante da seguinte proposta: nós consideramos indispensável abrir um grande debate nacional sobre o bem social e econômico de uma obra que requer enormes recursos e que causará severo impacto no meio ambiente e na condição social das populações atingidas. Por isso, vamos exigir do governo que paralise as obras até que uma nova rodada de audiências seja realizada no Congresso, a fim de fixar responsabilidades a respeito de uma decisão que mudará a fisionomia, social, econômica e política de uma extensa região brasileira. Perguntamos: vocês concordam ou discordam dessa proposta? Se discordam, com que argumentos?
Para ler mais:
A biografia de Lula e a transposição da maldição. O poder cega, constata Leonardo Boff
`Dai a César o que é de César...` Fé e Política em discussão. Artigo de Luiz Alberto Gómez de Souza
Carta aberta de Cláudio Fonteles a Gilberto Carvalho
O que está em jogo entre dom Cappio e o Governo?
O bispo é intransigente? A carta de um frei carmelita a Patrus
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A greve de fome de D. Cappio. Um debate necessário. Artigo de Plínio de Arruda Sampaio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU