17 Julho 2011
As pessoas começaram a andar com dificuldade ao amanhecer, mais de mil a cada dia, exaustas, doentes e famintas, se materializando do ar do deserto para ocupar seus lugares nos portões do maior campo de refugiados do mundo, aqui no norte do Quênia.
Elas estão fugindo de uma das piores secas na Somália em 60 anos e muitas caminharam por semanas, em meio a uma paisagem anárquica, repleta de bandidos e militantes, mas pouca comida.
Quando chegam aqui, muitas mal conseguem permanecer em pé, conversar ou engolir. Algumas mães até mesmo chegam com os corpos murchos de bebês amarrados em suas costas.
A reportagem é de Jeffrey Gettleman, publicada pelo jornal The New York Times e reproduzida pelo Portal Uol, 18-07-2011.
Abdio Ali Elmoi agarra seu filho, Mustapha, cujos olhos estão fechando. Seu rosto está marcado pelo pesar. Ela já perdeu três filhos para a "gaajo", ou fome, uma palavra comum por aqui.
"Eu caminhei o dia todo e a noite toda", ela sussurrou, mal conseguindo falar. "De onde venho, não há comida."
A Somália está novamente vertendo miséria por suas fronteiras e novamente as ações humanas estão agravando ainda mais este desastre natural.
Os militantes islâmicos que controlam o sul da Somália forçaram a saída das organizações ocidentais de ajuda humanitária no ano passado, removendo a única rede de segurança quando o solo estava secando e a seca se aproximava. Apenas agora, quando a escala da catástrofe está se tornando clara, com quase 3 milhões de somalis passando por necessidade urgente e mais de 10 milhões correndo risco no ressecado Chifre da África, é que os militantes cederam e convidaram os grupos de ajuda a retornarem. Mas poucos estão vindo, devido às complicações e riscos de lidar com um grupo brutal, que é alinhado à Al Qaeda e transformou a Somália em um ponto focal das preocupações americanas com o terrorismo.
Os somalis não estão esperando. Dezenas de milhares, possivelmente centenas de milhares, estão fugindo para o Quênia e para a Etiópia em busca de ajuda, mas o governo queniano diz que está sobrecarregado e tem impedido que a Organização das Nações Unidas abra um novo campo em Dadaab, de US$ 15 milhões, que possa absorver o afluxo.
Tudo está instalado para receber mais 40 mil refugiados – novas torres de água, novas latrinas, novos blocos de escritórios e fileiras perfeitamente retas de novas casas de tijolos, que parecem robustas o suficiente para uma pessoa viver ali por anos. Mas é precisamente isso o que os quenianos temem.
Até 380 mil pessoas já vivem na amálgama de campos que compõem Dadaab (a ideia inicial era receber 90 mil) e os quenianos temem que os somalis continuarão vindo para cá e nunca mais voltarão para casa, dada a turbulência perene no país deles desde o colapso do governo central em 1991.
"Pessoalmente, eu fiz o que podia", disse Gerald Otieno Kajwang, o ministro da imigração do Quênia. "Mas os números que estão chegando são grandes demais e ameaçam nossa segurança."
O governo queniano tem enfrentado intensa pressão para a abertura do novo campo, com várias autoridades ocidentais de ajuda humanitária argumentando que os quenianos estão apenas tentando extrair mais dinheiro dos aliados ocidentais antes de cederem. Na sexta-feira, as autoridades quenianas indicaram que o campo seria aberto em breve, mas a demora tem mantido milhares de refugiados nos arredores de Dadaab, no deserto, cada vez mais longe de hospitais, água limpa ou latrinas, muitos com crianças doentes encolhidas sob árvores.
"É chocante", disse Alexandra Lopoukhine, uma porta-voz da CARE, um grupo de ajuda humanitária que trabalha em Dadaab.
Aqueles que conseguem chegar a um dos poucos hospitais nos campos podem ter uma chance. A ala pediátrica na seção Dagahaley é um purgatório iluminado com lâmpadas fluorescentes. Dezenas de crianças murchas permanecem deitadas sobre cobertores de lã – os enfermeiros dizem que provavelmente menos da metade sobreviverá – com sua pele flácida, seus olhos vítreos, suas cabeças grandes demais para seus corpos. Muitos têm sondas presas a ambos os lados de seus crânios.
"Colapso vascular", explicou um médico queniano. "Nós não conseguimos encontrar uma veia em nenhum outro lugar."
Isak Abdi Saney, um agricultor destituído, está à espera da morte. Ele levanta gentilmente a camisa de seu filho de 6 meses. Todas as costelas estão à mostra, sob uma pele tão translúcida quanto papel de arroz. Cada respiração parece como se pudesse ser sua última.
"Nós não sabemos se ele está morto ou vivo, então apenas continuamos observando ele aqui", diz Isak, fazendo escuta no minúsculo peito de seu filho.
Isak caminhou por 20 dias da Somália até aqui. O que ele encontrou foi o que tantos outros refugiados descreveram: pilhas de animais mortos, aldeias vazias, pessoas morrendo de fome, uma trilha ininterrupta de corpos de sua aldeia até o campo.
"Não resta mais nada lá", ele disse.
Outro refugiado falou de sua aldeia em termos semelhantes: "Não resta nada vivo".
Como é muito difícil e perigoso para forasteiros visitarem as áreas controladas pelo grupo militante Shabab, é difícil avaliar quão profunda é a seca. A Somália parece estar perpetuamente no limiar. Com uma economia arrasada, sem um governo central que funcione e com a ajuda humanitária bloqueada, inúmeros somalis morrem de fome a cada ano.
Mas segundo um programa de monitoramento da fome financiado pelos Estados Unidos, "no último ano, o Leste do Chifre da África experimentou fracas estações de chuva consecutivas, resultando em um dos anos mais secos desde 1950-1951 em muitas zonas pastoris".
Os anos de conflito –e aumentos recentes nos preços dos alimentos– esgotaram a capacidade da Somália de suportar as adversidades. Milhares de pessoas estão deixando áreas rurais relativamente tranquilas para buscar refúgio em Mogadício, a capital crivada de balas da Somália, que tem experimentado há anos um êxodo em massa devido aos combates entre o governo fraco e os militantes islâmicos.
A rota para Dadaab, que fica a cerca de 80 quilômetros dentro da fronteira do Quênia, é especialmente perigosa, serpenteando por um dos ambientes mais inóspitos do mundo. Os refugiados são roubados, estuprados e mortos por vários grupos armados que assolam a área. A maioria chega aqui sem nenhum centavo e desmoralizada. Muitos pais dizem que enterraram seus filhos no caminho.
Alguns morrem próximos de finalmente conseguirem ajuda. Diante da área de recepção do campo, há dezenas de sepulturas recém-cavadas.
Jovens antes orgulhosos se veem sentados no chão de terra, aguardando para serem registrados. A vida de refugiado é humilhante, especialmente em uma cultura que preza a independência. O primeiro passo é abrir caminho em meio a uma multidão para conseguir um copo de farinha e alguns biscoitos de glicose. Então vem o registro, dar as impressões digitais duas vezes, ser fotografado, catalogado. Funcionários do governo queniano andam rapidamente de um lado para outro, usando máscaras cirúrgicas azuis e camisas-polo que dizem "Os Refugiados São Pessoas Reais".
Os refugiados somalis costumam não ser autorizados a trabalhar no Quênia e sem permissão especial nem mesmo podem sair do campo. Dadaab é um depósito de pessoas, onde ficam armazenadas por anos. Trabalhadores de ajuda humanitária preveem que os números aqui podem chegar a meio milhão, espalhados por quilômetros de mata de arbustos.
"Eu nunca imaginei que perderia todo meu gado", disse Abdi Farah Hassan, que parecia visivelmente desconfortável na fila para ser fotografado. "Eu nunca imaginei que seria um refugiado."
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Somalis são perseguidos pela miséria enquanto tentam fugir da fome - Instituto Humanitas Unisinos - IHU