02 Mai 2011
Tanto João Paulo II quanto Bento XVI foram influenciados pelas raízes cristãs da Europa e pelas lutas contra o totalitarismo do continente no século XX. Mas, no primeiro de uma série de artigos que marca a beatificação do Papa polonês neste fim de semana, o pensamento muito diferente dos dois é comparado por Fergus Kerr, OP, editor da revista dominicana New Blackfriars, em artigo publicado na revista The Tablet, 30-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Os Papas influenciam seus sucessores teologicamente e, em caso afirmativo, em que medida? Nos séculos passados, muitos não viram a necessidade de escrever sobre teologia; poucos tinham o talento para isso. O Papa João Paulo II e o Papa Bento XVI, um "intelectual", o outro "acadêmico", foram professores universitários de sucesso. Dificilmente poderiam ter seguido trajetórias mais diferentes.
Em 1951, Karol Wojtyla voltou à Universidade Jagiellonian, em Cracóvia, para completar um segundo doutorado, desta vez em filosofia, sobre a possibilidade de construir a ética cristã com base no pensamento de Max Scheler (1874-1928), famoso por sua fenomenologia do amor. Uma vez qualificado, Wojtyla lecionou ética social na universidade, viajando diariamente para fazer o mesmo em Lublin, mesmo depois de 1958, quando ele se tornou arcebispo de Cracóvia.
Em 1969, com o livro intitulado The Acting Person na versão posterior em inglês, ele fez uma importante contribuição para a filosofia. Uma maneira de abordar esse livro é vê-lo como mais um esforço para superar a concepção cartesiana da autoconsciência, em grande parte na mesma linha de The Self as Agent (1957), de John Macmurray, ou Thought and Action, de Stuart Hampshire (1970).
Muito mais tarde, em Cruzando o Limiar da Esperança (1994), João Paulo II repetiu essa crítica a Descartes, "que dividiu o pensamento da existência": "Quão diferente da abordagem de São Tomás, para quem não é o pensamento que determina a existência, mas sim a existência que determina o pensamento". "Somos agentes, não espectadores autoencapsulados".
Além disso, no entanto, com a Dra. Wanda Póltawska, uma psiquiatra de Cracóvia, Wojtyla havia criado o Instituto da Família, para educar os leigos sobre ética sexual. Em Amor e Responsabilidade (1960), ele afirma que nem a procriação nem o prazer sozinhos podem justificar a relação sexual: ao contrário, rejeitando tanto "utilitaristas" como Freud, que se concentram no prazer, quanto "rigoristas" como os puritanos, que limitam a atividade sexual à procriação, Wojtyla esboça uma alta doutrina da relação sexual como autodoação mútua.
Em comparação, as publicações do professor Joseph Ratzinger nunca foram tão ambiciosas. Ele recebeu seu doutorado em teologia em 1953, em Munique, com uma tese sobre os conceitos de "povo" e de "casa" de Deus em Santo Agostinho. Como Karol Wojtyla, ele também rompeu, aparentemente sem escrúpulos, com o neoescolasticismo obrigatório.
Tendo decidido por uma carreira acadêmica, Ratzinger escreveu a dissertação exigida para o pós-doutorado sobre a teologia da história de São Boaventura, distanciando-se, assim, ainda mais do neotomismo rotineiro. De fato, como ele recordou, a dissertação teve que ser revisada para eliminar as tendências supostamente "modernistas" que haviam sido suspeitas por um examinador, Michael Schmaus (1897-1993), o teólogo mais eminente de Munique na época.
Ratzinger se mudou em 1969 para a nova universidade de Regensburg, na sua Baviera natal. Em 1977, com a sua nomeação como arcebispo de Munique, as suas duas décadas como professor universitário encerraram. Antes ainda dos 50 anos, ele já tinha uma série de publicações com o seu nome, mas não a obra-prima com a qual, sem dúvida, um professor de teologia sonha. Mas havia outros textos vindo por aí.
As encíclicas
Cabe aos papas escrever encíclicas. João Paulo II publicou 14. A primeira, Redemptor Hominis (1979), centrada quase programaticamente sobre a importância da pessoa humana: ela continuava as preocupações de The Acting Person, embora em um estilo completamente diferente.
Em 1981, João Paulo II comemorou a Rerum Novarum, a encíclica famosa sobre justiça social do Papa Leão XIII, com uma margem ao que ele disse sobre o conflito entre trabalho e capital e sobre os direitos dos trabalhadores, sem dúvida refletindo sua própria experiência inicial. Em 1987, ele comemorou a Populorum Progressio do Papa Paulo VI com outra forte declaração sobre as preocupações sociais e políticas da Igreja. Em 1991, ele novamente comemorou a Rerum Novarum. Nestas e em várias intervenções relacionadas, o Papa da Polônia não hesitou em denunciar o capitalismo liberal do Ocidente com tanta força como ele atacou o totalitarismo da Europa Oriental.
Sem dúvida, quem quer que fosse o Papa, em algum momento, elogiaria o ecumenismo: com a Ut unum sint (1995), porém, João Paulo II, reconhecendo explicitamente o obstáculo que o papado constitui para muitos cristãos, ortodoxos e protestantes convidou a todos para ajudá-lo a remodelar o ministério petrino para servir como um foco para uma futura reunião.
Mais uma vez, preocupações pastorais poderiam inspirar qualquer Papa a examinar a saúde da teologia moral e da filosofia em geral. Mas, com a Veritatis Splendor (1993) e a Fides et Ratio (1998), a oposição de João Paulo II ao que ele considerava como utilitarismo em algumas teologias morais católicas e sua insistência sobre o lugar da razão e, portanto, da própria filosofia em todas as religiões refletem a mente do professor de ética social.
A "teologia do corpo" de Wojtyla
Em sua "teologia do corpo", no entanto, João Paulo II abriu novos caminhos. No que poderíamos chamar de uma antropologia cristã da diferença e da complementaridade sexual, ele inaugurou o que muitos comentaristas, principalmente na América do Norte, consideram como uma mudança revolucionária na doutrina e na sensibilidade católicas.
Segundo George Weigel, por exemplo, é "um pouco de uma bomba-relógio teológica, algo que vai explodir dentro da Igreja, em algum ponto indeterminado no futuro, com um efeito tremendo, remodelando a forma como os católicos pensam sobre a nossa corporeidade como homem e como mulher, nossa sexualidade, nossa relação uns com os outros, nossa relação com Deus – até mesmo o próprio Deus" (veja o seu prefácio à Theology of the Body Explained de Christopher West [2003] – uma exposição inestimável).
Claro que isso remonta às preocupações de Amor e Responsabilidade. O arcebispo de Cracóvia (parece agora) teve uma influência decisiva sobre o Papa Paulo VI quando, em sua encíclica Humanae Vitae (1968), reafirmou a crença católica na ligação inseparável entre a relação conjugal e a procriação, renovando assim a condenação como imoral de todas as formas de controle de natalidade, exceto o método rítmico [a chamada "tabelinha"].
Uma vez que muitos católicos não foram e continuam não sendo convencidos por esses argumentos, que vêm essencialmente da ética da lei natural, parece que, logo após ter sido eleito Papa, João Paulo II decidiu proceder para uma teologia da diferença de gênero, que confirmaria que a contracepção em um casamento cristão é pecado. Em 129 discursos às suas audiências gerais semanais, entre 1979 e 1984, João Paulo II desenvolveu essa "teologia do corpo". Se o casamento havia sido uma reflexão tardia na teologia católica, agora ele é o centro criativo.
Para apresentar essa argumentação profunda e complexa de forma muito simples, podemos dizer o seguinte: o ser humano existe sempre como macho ou fêmea (Gênesis 1,27). A unidade de Cristo e da Igreja é o "grande mistério", exemplificado tipologicamente na "uma só carne" do casal original, Adão e Eva, e novamente em qualquer união conjugal autêntica (Efésios 5,31-32). O marido ama a sua esposa como Cristo ama a sua noiva, a Igreja – dando-se por ela (Efésios 5,25). A noção de autodoação mútua é fundamental.
A comunhão conjugal se torna a principal analogia de todos os tipos de relacionamento. Considerando que, na teologia clássica, incluindo São Tomás de Aquino, diz-se que fomos criados à imagem de Deus por causa da nossa racionalidade, o dado essencial para João Paulo II é a diferença sexual: "... homem e mulher os criou". A racionalidade passa a ser, agora, comunicação, comunhão. A união das naturezas divina e humana em Cristo torna-se um matrimônio do céu e da terra. Como o ato de autodoação de Jesus aos comunicantes receptivos, a celebração eucarística é encarada como análoga à união conjugal. A narrativa da história da salvação, podemos dizer, vai do casal original do Jardim do Éden à descida à cidade santa, "... que descia do céu, de junto de Deus, pronta como esposa que se enfeitou para o seu marido" (Apocalipse 21,2).
A teologia da diferença de gênero
Nesses e em outros casos, a imagem de Cristo como noivo abre caminho para explorar a totalidade da realidade como uma demonstração da relação entre criatura e Criador, alma e Salvador, Igreja e Cristo. Claro que isso toma imagens e temas familiares da espiritualidade antiga e moderna, mas a teologia de João Paulo II do corpo exibe uma coerência e força sem precedentes.
Essa teologia tem profundas implicações sociais e políticas, como João Paulo II insistiu muitas vezes. Uma vez que a diferença sexual é fundamental, e a conjugalidade é a expressão mais completa da complementaridade, os efeitos de longo prazo da contracepção artificial devem ser destrutivos da humanidade autêntica. O testemunho dos casais católicos deve ser radicalmente contracultural.
Se a relação nupcial pode ser considerada como a chave interpretativa para se repensar quase toda a doutrina cristã, João Paulo II certamente deixou um legado teológico que mal começou a impingir a sensibilidade e o pensamento da maioria dos católicos.
Em 1981, o Papa João Paulo II nomeou o cardeal Ratzinger como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Quando os arquivos do Vaticano forem abertos no futuro, pode tornar-se possível medir o quão unidos os dois foram teologicamente. A suposta frieza do cardeal Ratzinger com relação ao encontro inter-religioso de Assis, em 1986, pode marcar uma certa hesitação com relação ao entusiasmo de João Paulo II pelo diálogo inter-religioso.
Mais uma vez, em 1987, a encíclica Sollicitudo Rei Socialis, que condenou o capitalismo mais ferozmente do que o comunismo, foi lido por alguns analistas como menos negativa com relação à teologia da libertação do que as políticas da Congregação para a Doutrina da Fé sob o cardeal Ratzinger. Parece improvável, entretanto, que durante os 24 anos em que Ratzinger chefiou a Congregação ele tenha autorizado quaisquer políticas que diferissem de forma significativa do que João Paulo II, estava disposto a endossar.
O perfil teológico de Ratzinger
Mesmo nos poucos anos desde que foi eleito, o Papa Bento XVI estabeleceu um perfil teológico que é diferente do seu antecessor. Não há nenhuma razão para pensar que ele se distanciou deliberadamente, para escapar da sombra de um pensador tão dinâmico e inovador. Suas iniciativas (como as de João Paulo II) muitas vezes remetem aos seus interesses anteriores. Com a sua preocupação pela liturgia, não é nenhuma surpresa que ele tenha ordenado o uso do rito antigo e outras medidas.
Durante décadas, os teólogos profissionais se preocuparam com a integração histórico-crítica dos estudos bíblicos com o dogma católico: o estudo de Bento sobre Jesus parece ser o que um professor poderia tentar em sua aposentadoria, no entanto, dadas as previsíveis reações negativas entre os teólogos profissionais, ele teve coragem.
As três encíclicas de Bento XVI traçam um rumo mais distintivo. A segunda metade de Deus Caritas Est (2006) supostamente deriva de anotações deixadas incompletas por João Paulo II. Na primeira metade, no entanto, ela coloca as formas de amor conhecidas na filosofia grega (especialmente o eros) em relação com o amor cristão (ágape).
Embora, é claro, mantendo os dois separados, Bento XVI se afasta completamente do longa tradição cristã de condenar toda forma do "erótico". Tendo considerado o amor, ele se dirige, na Spe Salvi (2007), à esperança e à fé: a encíclica abre com a história de Josefina Bakhita, nascida no Sudão, uma escrava convertida do paganismo pela esperança da redenção. Em Caritas in Veritate (2009), o Papa Bento parte da encíclica Populorum Progressio (1967), do Papa Paulo VI, reafirmando vigorosamente a Doutrina Social da Igreja.
Foi dada mais atenção ao discurso que ele fez em Regensburg, em 2006: sua alusão ao desprezo de um imperador bizantino medieval pelo Islã desencadeou protestos em todo o mundo muçulmano. Mas o ponto central foi insistir no lugar do raciocínio sobre a busca de Deus e na compatibilidade entre a filosofia grega pagã e a fé cristã.
Em sua Fides et Ratio, João Paulo II havia estendido a sua perspectiva para muito além da Grécia antiga: no entanto, totalmente "europeus" em suas raízes, ambos os Papas insistiram em manter a união entre Jerusalém e Atenas, à qual o Ocidente deve a sua cultura e civilização. Continua sendo possível, no entanto, que a inovadora teologia de João Paulo II sobre o corpo possa conter um futuro ainda imprevisivelmente exigente.
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A visão de Wojtyla - Instituto Humanitas Unisinos - IHU