13 Março 2011
Neste artigo, a questão ecológica é abordada numa perspectiva pouco comum: a do niilismo moderno, entendido, em geral, como vida sem sentido e, em particular, como falta de um sentido último e transcendente para a vida. A falta de sentido estaria na raiz da falta de respeito e de amor à natureza. Pois, se a vida humana não tem sentido, como o teria a natureza? A crise ecológica seria, pois, um aspecto de uma crise mais ampla e mais profunda: a crise do sentido. Mas de onde provém a crise de sentido? Provém, no fundo, de uma visão secularista do mundo. A verdadeira saída se dá "por cima": consiste em reconhecer a "criaturalidade" das coisas, enquanto dependentes do Criador e possuindo, por isso mesmo, um valor próprio, que o ser humano é chamado a respeitar e de que deve dar conta.
A análise é de Clodovis M. Boff OSM, professor da Pontifícia Faculdade Marianum, de Roma [1], em artigo publicado na revista Perspectiva Teológica, no. 118, set/dez 2010, p. 343-362.
Boff é licenciado em filosofia pelas Faculdades Associadas de Mogi das Cruzes (1970) e doutor em teologia pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica (1976), com a tese intitulada "Teologia e libertação: questões de epistemologia". É professor de "mariologia social" na Pontifícia Faculdade Marianum de Roma (desde 1993) e de teologia sistemática na PUCPR (desde 2002). Suas obras principais são: Teologia e prática: Teologia do político e suas mediações, Petrópolis: Vozes, 1978, 3ª ed.; Teoria do método teológico, Petrópolis: Vozes, 1998, 4ª ed.; Mariologia social: O significado da Virgem para a sociedade, São Paulo: Paulus, 2006, 2ª ed.; O cotidiano de Maria de Nazaré, São Paulo: Salesiana, 2003, 2ª ed.; A regra de Santo Agostinho: Apresentação e comentários, Petrópolis: Vozes 2009.
Eis o artigo.
Introdução
Nesta reflexão, queremos mostrar:
1) que a atual crise ecológica é parte de uma crise maior, que investe toda a civilização moderna e que se pode chamar de crise de sentido ou de "niilismo";
2) que a raiz da crise de sentido está no "secularismo", ou seja, no fato de se viver ut si Deus non daretur (como se Deus não existisse);
3) que a crise ecológica, portanto, só se resolve, pela raiz, equacionando a crise de sentido, ou seja, recuperando a dimensão religiosa ou espiritual da vida.
I. A Crise Ecológica como Dimensão da Crise de Sentido
Crise de sentido: quadro da crise ecológica
A questão ecológica está hoje entre as mais importantes [2]. Porém, a questão mais importante não é propriamente a ecologia, como também não é a pobreza, o feminino, a identidade cultural ou a insegurança, mas é a questão do sentido da vida. Para que viver? Vale a pena viver? O grande problema é a desvalorização da existência, do ser, do mundo. É, em suma, o desamor à vida. Esta questão está na base de todas as outras.
Certo, esta sempre foi a grande pergunta do ser humano, mas hoje ela se mostra muito mais grave. O fato é que se difunde por toda parte o taedium vitae. A existência aparece sem vida, sem cores, desbotada. As pessoas estão ficando com "olhos apagados", segundo a expressão bíblica (Dt 28,65). Se a ecologia da natureza vai mal, vai mais mal ainda a "ecologia do homem" [3]. É o homem que não se sente bem, por isso contagia a natureza com seu mal-estar. Não é só no oikos da natureza que o homem não se sente em casa, mas no oikos de sua alma. É como alguém que mora num palácio, mas tem a alma atormentada.
Esse desamor à vida se mostra nas várias dimensões do relacionamento humano. Vivemos, em verdade, numa cultura antilife no sentido mais amplo do termo. A desvalorização da natureza entra aí como parte e expressão do "niilismo" como a desvalorização geral das coisas. De fato, se minha vida não vale a pena, a vida da natureza vale menos ainda. Se não me amo e estimo, amo e estimo menos ainda o meio ambiente.
Com muita razão João Paulo II, em sua Mensagem do Dia da Paz de 1990, declarou: "A degradação do ambiente é um dos aspectos preocupantes" de uma "crise moral profunda". E especificou: "Se o sentido da pessoa e da vida humana falta, o homem se desinteressa também do outro e da terra" [4].
Consequências da crise de sentido sobre a crise ecológica
Ora, se minha vida não tem sentido, qual é a conclusão mais imediata? É o hedonismo, como viu muito bem S. Paulo: então "comamos e bebamos, porque amanhã morreremos" (1Co 15,32). Aproveitemos a vida que está aí antes que acabe. O consumismo atual é outro nome do hedonismo. Ora, sabemos que, por esgotar a natureza, o consumismo é antiecológico [5]. Mas, que importa? – diz o hedonista, indiferente à sorte do mundo: Après moi le déluge.
Daí se entende o apocaliptismo de muitos grupos ecológicos. Mas, o alarme apocalíptico nem sempre desperta as pessoas para a responsabilidade. Ao contrário, o hedonista sente-se ainda mais incitado ao consumo e ao prazer, pois conclui: "Aproveitemos antes que tudo se acabe". Não foi assim que reagiram sempre as elites frívolas diante das tragédias históricas, como na queda de Roma, durante a "peste negra" ou às vésperas da queda de Berlim em 1945?
Existem mesmo aqueles, que, destituídos de visão transcendente da vida e impelidos por certa "pulsão de morte", sentem um prazer perverso em precipitar a tragédia, no caso, a ecológica. "Pois – pensa o niilista – se tudo se acaba, é como se não existisse. Se a morte leva tudo, então, o mundo que "vá para o diabo". Assim, o argumento imanentista de que "só temos uma vida para viver" nem sempre leva ao cuidado desse nosso habitat. Leva antes ao egoísmo e à indiferença: "Que os outros cuidem dele. Eu não quero nem saber".
O perigo de destruição da terra é hoje tanto maior quanto mais poderosos são os meios de destruição que o homem tem à disposição, como o arsenal atômico e a maquinaria industrial moderna. Porém o perigo não está nesses meios em si, mas no ser humano que faz uso deles. Se o ser humano está com o coração corroído pelo vírus niilista, então temos que nos ocupar em primeiro lugar com ele próprio, buscando libertá-lo dessa doença mortal. É preciso salvar antes de tudo o homem, se queremos salvar o mundo do homem. Pois, se é verdade que a humanidade e sua sobrevivência dependem das condições ambientais, é também verdade que estas dependem muito mais ainda da humanidade e de sua responsabilidade.
O outro lado da medalha: reações positivas em relação à ecologia
É preciso, contudo, reconhecer que a crise de sentido e suas repercussões sobre a natureza são apenas um lado da medalha da situação atual. Esta, de fato, apresenta também um lado positivo. A situação ecológica hoje apresenta um caráter dialético ou agonístico, onde o negativo tem que se enfrentar com o positivo.
De fato, podemos verificar hoje que há uma sensibilidade crescente à problemática da integridade da natureza. Entre os principais agentes da contraofensiva ecológica, temos:
Todas essas instâncias são como barreiras de contenção à onda niilista. Mostram que o amor à vida resiste e, provocado pela crise, se reacende. É preciso, contudo, examinar "em nome de que" todos esses grupos levantam a bandeira ambiental. Suas reações são boas, mas sê-lo-iam também suas razões? Têm consistência? É o que deveremos ainda ver.
II. Raízes da Crise Atual
A atual visão antropocentrista e secularista da natureza
Sabe-se que o antropocentrismo moderno fez do homem, como escreve Descartes, "dono e senhor da natureza". Em vez de Deus, pôs o homem no centro do mundo. É a "revolução copernicana" mencionada por Kant. Ora, a modernidade é, em sua concepção geral, antiecológica. Enquanto dessacralizou a natureza, reduziu-a a material de manipulação. Para ela, o mundo não passa de um monte de objetos de que se pode usar à vontade, um estoque de recursos em benefício do próprio homem.
A montante, porém, dessa mentalidade de dominação está o secularismo ou o a-teísmo. Não existe mais uma instância transcendente ao qual o ser humano possa se sentir vinculado, nem ontologicamente, nem eticamente. O "deus do mundo" é o próprio homem. O antropocentrismo tornou-se antropoteísmo. É daí que deriva o viés niilista do antropocentrismo moderno. De "anjo da guarda" da Criação, o ser humano tornou-se o "satã" da mesma. Se ele não criou o mundo, poderia "descria-lo", ou seja, destruí-lo. Ora, se a modernidade está na raiz do problema ecológico, ela não terá condições de resolver esse problema, a menos que não mude radicalmente de base. Pois fundar a causa ecológica apenas no humanismo, como fez a modernidade, é deixá-la exposta a todas as flutuações de que é passível o ser humano, seja individualmente, seja em associação.
De fato, uma das fraquezas do humanismo moderno é a pretensão de basear o cuidado da natureza em razões meramente racionais, sejam elas técnico-científicas, sejam filosóficas. É a denúncia legítima da chamada "ecologia profunda". Efetivamente, a causa da vida é maior que qualquer racionalidade. As explicações racionais que se aduzem em favor da integridade da natureza não chegam a convencer de todo. Só mesmo uma razão transcendental, como é a da religião, oferece uma base sólida à vida, enquanto apela para uma sanção sagrada e última. Além disso, a religião dá à vida justificações simples e acessíveis, capazes de ampla generalização [6]. Ademais, uma autêntica razão religiosa não exclui a puramente racional (ela não é antirracional), mas a integra e a supera (ela é transracional).
Excurso: equívoco antiecológico cometido em nome do Bíblia
O judeo-cristianismo foi acusado de favorecer o desastre ecológico enquanto teria entregue o mundo ao "domínio" do ser humano, de acordo com o mandato bíblico: "Submetei" a terra e "dominai" sobre todas as criaturas (Gn 1,28) [7]. De fato, houve, na história do cristianismo, muitos equívocos em torno desse mandato.
Mas precisamos esclarecer, que, segundo a mentalidade bíblica, "submeter" e "dominar" se referem ao governo do rei sábio que cuida do bem-estar dos que ele governa [8]. De fato, o livro da Sabedoria fala, sim, que Deus "formou o homem para que dominasse as criaturas", mas no sentido de "governar o mundo com piedade e justiça" (Sb 9,2-3) [9].
Efetivamente, pelo segundo relato da criação do homem, Deus criou o ser humano e o "colocou no jardim de Éden para cultivá-lo e guardá-lo" (Gn 2,15). Ademais, há na Bíblia toda uma legislação feita para proteger a natureza contra a ambição do homem, como veremos melhor mais adiante. Há em particular a instituição do "ano sabático" para permitir que o solo se refaça (cf. Lv 25,1-7) e a do "ano jubilar" para restaurar as relações de propriedade e a liberdade alienada (cf. Lv 25,8-55).
Para a mentalidade bíblica, não é o homem, mas Deus que é dono e senhor do mundo. "Do Senhor é a terra e tudo o que nela habita" (Sl 23,1). "A terra, ele a deu aos filhos dos homens", mas – acrescentemos – a título de intendentes ou mordomos. Tal foi sempre a doutrina da Igreja: só Deus é senhor absoluto das coisas; o homem pode-se dizer senhor delas apenas enquanto participa do senhorio divino, como diz o Sl 8,8: "Vós pusestes tudo sob seus pés" [10].
Ademais, o Magistério recente interveio várias vezes para desfazer o equívoco de que o ser humano é "dono absoluto" da natureza, ensinando que é, antes, o "administrador" responsável da mesma diante de Deus [11].
Alternativa equivocada dos "ecologistas profundos"
A chamada deep ecology, forte nos EUA, na Alemanha e na Escandinávia, contrapõe ao antropocentrismo o biocentrismo ou, melhor ainda, o ecocentrismo [12]. Para ele, não é o homem que está no centro, mas é a própria natureza. Esta é o todo e o homem é parte desse todo.
Por isso, a preocupação da "ecologia profunda" não é apenas com o meio ambiente, mas com o ecossistema, isto é, com a natureza toda, incluindo nela o homem. Mais que ecologia, o que temos aqui é ecologismo. A ecologia não seria somente uma causa entre outras, mas uma filosofia, uma cosmovisão e mesmo uma religião. Aqui não se praticam apenas ciências da natureza, mas "ecosofia". A natureza é assim ressacralizada. Como sagrada, a vida é um valor transcendente e, por isso mesmo, central. É o biocentrismo, posto como alternativa ao antropocentrismo moderno. Daí a crítica radical que faz essa corrente à ciência e à técnica modernas [13].
A verdade é que aqui se sobredetermina ideologicamente a ecologia com significados metafísicos e religiosos. ara o ecocentrismo, a natureza é o grande horizonte ontológico, nada existindo fora desse todo [14]. Na base dessa concepção acha-se um inegável monismo, de tipo naturalista. Dá-se aí uma forte deriva para o panteísmo: natura sive Deus. A natureza seria a nova transcendência. Antes era o homem que estava no centro, agora é a natureza e a vida que ela carrega (vitalismo). Mas não se ganha muito em trocar uma idolatria por outra. Temos aqui outro sucedâneo da religião: no lugar de Deus, põe-se a natureza, sempre uma realidade relativa.
Tanto no biocentrismo, como no antropocentrismo, há o exagero de toda ideologia, que toma o relativo pelo absoluto. Ora, quem superestima o relativo acaba subestimando-o. Como toda ideologia, o ecologismo é ilusório e decepcionante, e por isso niilista, como foram o antropocentrismo, o nacionalismo, o racismo e o classismo. Pois se é certo que a vida é um valor primário, não é, contudo, um valor absoluto.
Para fundar a "ética da responsabilidade" em relação à natureza, o filósofo Hans Jonas coloca o princípio quase autoevidente: "A vida diz "sim’ à vida". Na mesma linha, Albert Schweitzer tinha posto como fundamento de toda a ética a "reverência pela vida", segundo o princípio: "Eu sou uma vida que deseja viver em meio a outras vidas que também desejam viver". Isso é bonito, mas é equívoco. De fato, a vida aparece, em sua imediatez, como um valor autônomo. Contemplando o espetáculo maravilhoso da vida, em sua harmonia, variedade e gratuidade, fica claro que a vida vale em si mesma e não simplesmente para nós, humanos [15].
Contudo, é também verdade, e mais ainda, que a vida não se autofunda. Ela provém de uma fonte transcendente que a mantém em toda a sua força e exuberância. A natureza irrompe (phyo) de um fundo abissal, gerador de tudo, algo como a natura naturans [16]. É preciso mais que a vida para justificar e valorizar a vida. E eis então que se impõe essa Realidade suprema que chamamos o "Deus vivo e verdadeiro" (1Ts 1,9), em particular o "Espírito Santo, senhor e fonte da vida". A natureza viva, incluindo o ser humano, não tem como subsistir por si mesma. Falta-lhe o fundamento fundante. Pretender que possa se firmar em si mesma é não ver que têm pés de barro, bastando um pequeno desvio das leis cósmicas – uma pedrinha rolando da montanha – para fazê-la em pedaços (cf. Dn 2,34.45).
Em suma, o biocentrismo não está em condições de sustar para valer o niilismo ecológico hoje em curso, enquanto fundado sobre o antropocentrismo moderno. A "ecologia profunda" tem razão em postular uma visão religiosa da natureza. Mas sua proposta religiosa se funda em mitos, enquanto a fé cristã se baseia em mistérios, como veremos a seguir.
III. Por uma Ecologia Fundada em Deus Criador
A ecologia entre o antropocentrismo e o ecocentrismo
Só uma ecologia aberta ao Transcendente pode opor-se eficazmente ao niilismo ecológico. Só ela supera os impasses tanto da ecologia antropocentrista quanto da biocentrista, enquanto ambas não só não impedem o niilismo, mas acabam favorecendo-o.
De fato, uma ecologia verdadeiramente religiosa propõe a média ideal entre os dois extremos, diametralmente opostos, das duas visões citadas. Contra o antropocentrismo, ela recusa uma natureza totalmente secularizada, portanto, deixada ao arbítrio do ser humano; e contra o ecocentrismo, ela recusa uma natureza absolutizada, feita fetiche intocável.
Para a fé cristã, especificamente, o centro da realidade não é nem o homem nem a natureza, mas Deus (teocentrismo). Deus é a medida de tudo, tanto do homem como da natureza. Ambos existem por Seu amor e para Sua glória, sendo que em Sua glória eles encontram sua realização plena. Certo, a natureza é anterior aos humanos e maior do que eles. Ela é, de certa forma, nossa mãe. Mas, em última instância, ela é nossa irmã, porque criada por Deus como nós [17].
Mas qual o lugar legítimo do ser humano na Criação? Nem no topo e nem aos pés, mas no meio: entre Deus e o mundo, entre o Criador e a criatura. O Gênesis apresenta uma imagem bem articulada do ser humano. Pelo relato mais antigo da criação do homem (cf. Gn 2,4b-3,24), o ser humano tem origem terráquea. Aí ele aparece como jardineiro da Criação [18]. Mas pelo relato mais recente (cf. Gn 1,1-2,4a), ele tem origem divina. Aí ele surge como imago Dei [19]. Mas em ambos os relatos, o ser humano é visto como superior aos animais e a qualquer outro ser da natureza (cf. Gn 1,26.28; 2,18-19).
É certo que a doutrina cristã, como enfatizaram os Padres da Igreja, professa um indiscutível antropocentrismo: o homem é a coroa da Criação. Mas trata-se de um "antropocentrismo relativo", por estar submetido a Deus e a serviço de seus planos. Tal antropocentrismo é muito diferente do "antropocentrismo absoluto" dos modernos, enquanto reportam tudo ao homem. Se o homem tem um primado irrecusável é apenas em relação à Criação, do qual deve dar conta diante de seu Senhor [20]. Entre Deus e o mundo, o homem surge como gerente ou tutor e mesmo como servo de Deus e de seu desígnio no mundo.
A importância central do ser humano é clara também no Novo Testamento. Para Cristo, uma só pessoa vale mais que todo universo: "Que adianta o homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder sua alma?" (Mc 8,36). Por várias vezes Jesus coloca o ser humano acima das outras criaturas (cf. Mt 10,31; 12,11; Lc 13,15), sem por isso cair no desprezo das mesmas, antes, o Pai cuida delas também (cf. Mt 6,26-30; 10,29). Há, pois, na Criação uma hierarquia, que S. Paulo anuncia assim: "Tudo é vosso, vós sois de Cristo e Cristo é de Deus" (1Co 3,22-23). Se o ser humano goza de alguma superioridade, essa vale como serviço aos demais, como é lei no evangelho: "O maior seja o vosso servo" (Mc 10,43). Isso se aplica também no âmbito da natureza.
Como se vê, o cristianismo se situa na média ideal entre o antropocentrismo e o biocentrismo, sintetizando o que eles têm de verdadeiro:
A ideia bíblica da "criaturalidade"
A ideia que sintetiza os dois aspectos apenas citados é a ideia judeo-cristã de criação. Criação quer dizer justamente ambas as coisas: autonomia operativa e dependência ontológica. Essas duas dimensões são assim articuladas: a criatura depende ontologicamente de seu Criador tanto em sua autonomia, quanto em sua existência. A autonomia da criatura está fundada em Deus (teonomia) e sua existência é participação na do Criador.
Se é assim, devemos dizer que, desligada de Deus, a natureza se desvaloriza até se perder. É como afirmou lapidarmente o Vaticano II: "Sem o Criador, a criatura se esvai" (GS 36; cf. CV 48). Ora, para superar a visão dominante de natureza, que é a moderna, e conferir, assim, um fundamento amplo e sólido à causa ecológica, é preciso recuperar a ideia de "criaturalidade".
Infelizmente, a modernidade, em seu secularismo, não sabe mais o que é a criaturalidade, essa dependência originária e final de Deus, característica da criatura e constitutiva da mesma. Do ponto de vista cristão, a palavra certa para aquilo que se chama "natureza", "cosmos", "mundo" ou "todo", é precisamente "criação". "Criatura" remete, até linguisticamente, a "Criador". E ainda que o Sosein (ser-assim) de uma coisa possa se explicado pela ciência, seu Sein (existência) só pode sê-lo pelo sentimento religioso [21]. Isso foi expresso exemplarmente por Jesus, quando vê a presença da ação amorosa do Pai nos seres da natureza, como o sol, a chuva, os pardais, os lírios do campo. Mas essa é a concepção de toda a Bíblia. Assim, os Salmistas viam o mundo a partir de Deus, como mostra o Salmo 8: "Ó Senhor, nosso Deus, como é admirável vosso nome por toda a terra" [22]. O mesmo ocorre com os Profetas, especialmente Daniel em seu conhecido cântico: "Obras do Senhor, bendizei o Senhor" (Dn 3). É assim também para todos os santos, especialmente S. Francisco, com seu "Cântico das criaturas".
Já para o secularismo moderno, o mundo deixou de ser criação para se reduzir à natureza. Já não possui mais uma relação originante com o que chamamos Deus. Nega sua dependência ontológica em relação a Ele. Perdeu a consciência de seu caráter "criatural". Já não sabe que recebe de uma Fonte última tanto a existência quanto a subsistência ou autonomia. Ora, deixando de se assumirem como criaturas, as realidades do mundo se rebaixam ao nível de simples coisas, objetos entregues à ação discricionária do ser humano. Não falam mais de Deus e para Deus, mas ao homem e de sua potência técnica.
Por certo, criação significa que o mundo e o homem são postos na existência como seres diferentes do próprio Criador e dotados de leis próprias. Mas isso não significa que a autonomia da criatura seja total. É o equívoco da teoria cabalística do zim-zum, hoje muito em voga: Deus se retira para dar lugar ao mundo e ao homem [23]. Essa teoria explica a autonomia própria da criatura, mas não a funda, correndo o risco de transformar a autonomia em autonomismo. É preciso saber que também a autonomia da criatura é dependente, enquanto tal autonomia está fundada em Deus. Pode parecer paradoxal, mas a verdade é que, mesmo enquanto autônomas, as coisas estão suspensas de seu Criador, como o candelabro do teto, como o rio da fonte ou como a claridade diurna do sol.
No conceito de "criação" importa deixar claro que a coisa essencial e primeira é a ideia de "dependência" ou de "fundação". A ideia de autonomia é uma ideia derivada e segunda, sendo que a própria autonomia da criatura é "dependente", portanto, dada ou outorgada pelo Criador. Segundo a Gaudium et Spes, se as coisas têm "fundamento próprio, verdade, bondade, leis e ordem específicas", é que foram "dotadas" de tudo isso pelo Criador (nº 36,2). Nada, pois, da lógica curta do "por um lado... e por outro", mas da dialética vigorosa entre o determinante e o determinado, entre o fundante e o fundado. Efetivamente, o Novo Testamento insiste em quase uma dezena de passos: criação é ato de "fundação" [24].
Tornou-se lugar-comum declarar que a ideia de criação, por ter conferido autonomia às criaturas, secularizou o mundo, liberando-o para sua exploração científica. Mas da secularização ao secularismo é um passo. Esse passo é fatalmente dado quando se esquece que a autonomia das criaturas é relativa (a Deus) e participada (da ação de Deus). Os relatos da criação do Gênesis desmitizaram o mundo, sim, mas só enquanto o "criaturalizaram". Aí as coisas deixaram de ser ídolos, para aparecerem como criaturas. Essa é a verdadeira secularização. Mas a modernidade radicalizou perigosamente essa compreensão quando, não só desmitizou o mundo, mas o "descriaturalizou". Caiu assim pesadamente no secularismo, destituindo o mundo de fundamento (Grund) e deixando-o suspenso sobre o abismo (Abgrund). Assim "desfundado", o mundo desaparece fatalmente no vórtice do niilismo, como a água num tonel sem fundo.
Finalmente, dizer criação é dizer sentido. Pois, criação supõe um ato livre e amoroso de Deus. Este cria não por necessidade, mas por exuberância de bondade. Ele cria para manifestar Seu amor e Sua glória e para que as criaturas participem desse amor e dessa glória. Portanto, Deus nada cria sem uma intencionalidade, sem um plano de sabedoria e bondade. Nada há, pois, na criação que seja por acaso. Tudo tem sentido: tudo vem do amor e vai para a glória.
Dimensão cristológica da ecologia
Se ficarmos, porém, na ideia de Deus Criador, ainda não temos uma teologia ecológica à medida da fé cristã. Pois, sem Cristo, a própria natureza guarda um segredo último, seu mistério mais profundo. Ora, tal mistério é a constituição crística da natureza.
Se com Deus descobrimos a natureza como criação, com Cristo é-nos revelado que ela está envolvida num mistério mais alto, o da salvação. Tal condição se esclarece se levarmos em conta a dupla face do mistério de Cristo, ou seja: sua relação eterna com o Pai (cristologia imanente ou ad intra) e sua relação com o mundo em termos de história da salvação (cristologia econômica ou ad extra). Em ambas as dimensões a Criação se revela como uma realidade "crística".
De fato, começando pela cristologia ad intra, dizer que a Criação é "crística" é dizer que ela traz os "vestígios" da Segunda Pessoa da SS. Trindade. Ora, de acordo com o Novo Testamento, Cristo, em relação ao Pai, traz três nomes: Verbo, Filho e Imagem. Assim,
Vindo agora à dimensão ad extra ou histórico-salvífica da Cristologia, diremos o seguinte:
1º) Já pelo fato da Criação, o mundo carrega as marcas de Cristo, pois "tudo foi feito por Ele e nada foi feito sem Ele" (Jo 1,3). Tudo n’Ele tem sua suprema consistência [25]. Pois, já que a encarnação de Cristo foi pensada antes de toda a criatura, Cristo é o "primogênito de toda a Criação" (Cl 1,15) e seu supremo arquétipo.
2º) Pela encarnação no tempo, a Criação foi, de certo modo, assumida toda em e por Cristo. Assim, ela passou a entrar em sua constituição místico-ontológica. É seu "corpo cósmico". Esse processo, que se chamou de "recapitulação", se prolonga ao longo de toda a evolução. Na santa Eucaristia os elementos "naturais" do pão e do vinho se encontram "transubstanciados" no corpo de Deus [26].
3º) Pelo mistério pascal, "céus e terra", e não somente a humanidade, foram redimidos pelo sangue de Cristo e foram assim pacificados com seu Criador (cf. Ef 1,10; 2,14.16; Cl 1,20). Em Cristo, o mundo inteiro, e não somente o homem, foi reconciliado com Deus (cf. 2Co 5,18-19).
4º) Por fim, pela glorificação de Cristo, a Criação recebe, como o ser humano, uma destinação eterna e bem-aventurada. É por esse destino glorioso que a Criação geme em seu íntimo e espera ansiosamente (cf. Rm 8,18-21). Ora, Cristo ressuscitado representa, ao mesmo tempo, as primícias e a garantia, o modelo e a causa da apoteose escatológica do mundo. Se pela encarnação, Cristo é chamado o "primogênito de toda a Criação", pela ressurreição, Ele leva o título glorioso de "primogênito dentre os mortos" (Cl 1,18; Ap 1,5).
Essa leitura cósmico-ecológica da cristologia retoma uma longa tradição na Igreja, que vem das Cartas aos Efésios e aos Colossenses, passa por Sto. Irineu e sua teologia da "recapitulação", pela ideia do "corpo cósmico" dos Padres, pelo cristocentrismo universal da teologia franciscana, até chegar à mística do cosmos, visto como "meio divino", de Teilhard de Chardin. Como se vê, para além da ideia do Deus criador, é preciso passar à de Deus Redentor, mais concretamente, à de Cristo como princípio recapitulador do mundo e seu pleroma [27].
Precisaríamos ainda falar do Spiritus creator. Pois, sendo Ele o santíssimo Sopro do Pai e do Filho (Filioque), é confessado no Credo de Niceia e Constantinopla como o "Senhor, que dá a vida". Sua missão é consumar a obra da Criação e Redenção, reconduzindo-as à sua fonte derradeira (reditus). Mas não é o caso aqui de desenvolver essa perspectiva, bastando tê-la referido [28].
Concluindo a parte cristológica, digamos que a ecologia precisa da cristologia para se mostrar à altura da fé e de suas exigências, bem como para conferir à sua teoria e prática ecológicas sua "diferença" própria. Assim, fundada no mistério de Cristo, a ecologia cristã ganha em solidez teórica e em força de atração sobre qualquer outra concepção. Só uma "ecologia cristocêntrica" – síntese de teocentrismo e antropocentrismo – pode se propor como autêntica alternativa à limitada "ecologia antropocêntrica" dos modernos. Assim também, a "alta ecologia" cristológica aparece como a superação da equivocada "ecologia profunda" dos neopagãos de hoje.
IV. Saída para o Niilismo Ecológico: Uma Ecologia Fundada em Deus
Para "reamorizar" a natureza de modo profundo e consistente temos que ir à fonte: o Criador. Quanto mais amor houver pelo Criador, mais amor haverá por suas criaturas. É o que sucedia com os santos, em particular com o santo da ecologia. Se S. Francisco, o patrono da ecologia cristã, era "amante das criaturas", era porque se mostrava mais ainda "amante do Criador" [29]. Em contrapartida, a Criação era, para ele, "escada" para o trono de Deus, "espelho claríssimo" de sua bondade [30].
Precisamos hoje de uma ecologia fundada teologicamente. Propomos, a seguir, em escala descendente, os três degraus que permitem revalorizar a ecologia numa ótica cristã: o degrau mais alto é o da espiritualidade, o segundo – médio – é o da ética e o último, mais baixo, é o do agir cotidiano [31].
1. Redescobrir a "criaturalidade" das coisas (nível espiritual ou místico).
Se o afastamento do Criador levou ao desprezo da natureza, a aproximação d’Ele levará certamente ao amor da natureza. De fato, quando abandonamos o Criador, todas as coisas nos abandonam. Pode-se, por isso, dizer que a solução de fundo da questão ecológica é a conversio ad Deum: a volta ao Criador. É preciso reaprender a considerar todas as coisas como "criaturas" de Deus. Como dissemos, "Criação" é o termo verdadeiramente religioso ou teológico com que um cristão fala da natureza, do mundo, do cosmos.
Voltando a Francisco, sabemos que amava as realidades da natureza, não porque fosse um "naturalista", mas porque era "criaturista". Cada coisa era para ele uma criatura. Assim, no que o santo chamou de "Cântico do irmão Sol", ele celebra não diretamente as criaturas, mas "os louvores de Deus" por causa das criaturas. O que ele quer é que seus frades sejam os "jograis de Deus" e não simplesmente cantores das criaturas [32].
É pelo fato de saírem das mãos amorosas de Deus que as coisas são "boas", como repete sete vezes Gn 1 [33]. Tudo no mundo é belo e bom, é maravilhoso e amável. Se há mal no mundo, é porque os seres humanos fazem mau uso das coisas boas, que Deus criou. Assim, a pessoa espiritualizada vê cada coisa revestida de uma "aura sagrada". Para ela, as coisas são "transparentes" ou "diáfanas" da presença do Criador. Nada há aqui de panteísmo, mas, sim, de "panenteísmo": Deus presente nas coisas e as coisas presentes em Deus [34].
Há que afastar com decisão a ideia de um Deus alheio, estranho e até oposto ao mundo. Essa é uma ideia herético-gnóstica, levando ao contemptus saeculi (desprezo da história) e à fuga mundi (fuga do mundo). Por sua parte, o Vaticano II ensina belamente que o cristão "ama as coisas e as recebe... como saindo das mãos de Deus... Usa e frui delas na pobreza e liberdade de espírito" (GS 37,4).
Assim, a relação entre Deus e o mundo segue a dialética da proporção igual e não da proporção inversa. Quanto mais Deus é imanente ao mundo, tanto mais lhe é transcendente; e quanto mais lhe é transcendente, mais lhe é imanente [35]. Deus abraça as coisas em sua ternura e, ao mesmo tempo, as ultrapassa em seu poder. Ele está nelas intimamente e, ao mesmo tempo, as desborda infinitamente. Está profundamente presente nelas e, ao mesmo tempo, imensamente distante.
Retomando Sto. Agostinho, Deus se imanentiza tanto nas coisas que se torna "mais íntimo que seu íntimo" (intimior intimo meo); e as transcende tanto que se torna "mais superior que seu ponto mais alto" (superior summo meo) [36]. Para mostrar dinamicamente a unidade dessas duas dimensões, poder-se-ia falar assim: Deus é tão imanente nas coisas que as transcende por dentro, como uma flecha que as atravessasse; e lhes é tão transcendente que se imanentiza nelas, como seu coração pulsante.
Mas é especialmente nos seres vivos que Deus mostra sua presença e seu poder maravilhoso. Deus é o "amante de todo vivente" (Sb 11,26). A própria vida é um sopro provindo do Criador (cf. Gn 2,7), e um "sopro incorruptível" (Sb 12,1). Quanto, em particular, ao ser humano, ele é, diante de Deus, o "sacerdote do cosmos", como sublinha a teologia oriental [37]. O ser humano louva Deus pelas e com as criaturas. Para Paul Claudel, a Criação precisa do ser humano para se desincumbir de seu dever essencial de confessar a Deus. Em seu louvor, a Criação não passa da primeira letra, sendo capaz apenas de balbuciar "A". Então o ser humano, como sacerdote e rei do cosmos, completa o gemido da Criação e clama: "Ab...ba" [38].
É preciso, pois, redescobrir a espiritualidade da Criação que esteja à altura do desafio ecológico e, mais amplamente, do niilismo. Não se trata, porém, de uma espiritualidade funcional, que se construa, artificialmente "em vista" da causa ecológica. Trata-se, antes, de uma espiritualidade cristã, válida por si mesma, mas que se desdobra, a partir de dentro, a ponto de integrar toda a Criação, ressignificando-a no Deus tri-pessoal.
2. Redescobrir a "justiça ecológica" (nível moral ou ético)
Sabemos de nossos deveres éticos para com os outros e para com Deus. Mas, e a Criação? Existe uma "justiça ecológica"? Há hoje um intenso debate para saber se as coisas da natureza têm direitos e deveres, ou seja, se são realmente sujeito ético e jurídico. Fala-se inclusive num "contrato natural" entre o homem e a natureza, como propõe Michel Serres [39].
Mas toda essa discussão estará mal posta até que fizer a menos do terceiro polo: o Criador. Pois, a verdadeira relação é aqui, como alhures, triangular: homem, natureza e Deus. Quando consideramos as coisas da natureza como criaturas, então temos como responder aos impasses que a questão ecológica levanta. Contra os ecologistas de linha secularista, subtraímos as criaturas ao arbítrio do homem e reconhecemos e respeitamos seu estatuto próprio, a natureza íntima que lhe foi atribuída pelo Criador; e contra os ecologistas "neopanteístas", nós nos proibimos de considerar as realidades naturais como valores autossubsistentes e menos ainda de idolatrá-las, permitindo-nos usar delas para nosso proveito, sempre no respeito de sua índole própria. Portanto, fora de uma perspectiva teológica, mesmo puramente racional, será impossível equacionar corretamente a questão ecológica.
A verdade é que, como criaturas, as coisas não estão, de modo nenhum, destituídas de direitos. Elas são portadoras de uma dignidade intrínseca, portanto, de valores ligados à natureza com que o Criador as dotou. As coisas são boas em si mesmas, ontologicamente. Elas não são boas em razão de serem funcionais ao homem, como pensa o utilitarismo antropológico. Elas não valem pelo uso que o homem faz delas ou pelo valor que lhes atribui, como quer o antropocentrismo. Não, elas valem por sua natureza própria e segundo o lugar que ocupam na Criação, como reconheceu Sto. Agostinho [40]. Portanto, a natureza, em si mesma (embora não por si mesma), tem o direito de subsistir e de viver, de se manter limpa e de gozar de sua harmonia, de ser maximamente poupada do sofrimento e de se desenvolver.
Ora, se as coisas têm valor independentemente do ser humano, podemos, sim, afirmar, que elas são verdadeiramente sujeitos autônomos de direitos. E, sendo a justiça o respeito do direito, deve haver também uma "justiça ecológica". O ser humano tem deveres éticos em relação à natureza. Como imago Dei, o homem é o "pastor da Criação". Está aí para geri-la "em nome de Deus" e segundo sua vontade. Ele não pode fazer dela o que bem entender, como pretendem os "modernos"; mas também não pode ajoelhar-se diante dela, como querem os neopanteístas. Fonte e medida da justiça ecológica não é o homem, nem é a própria natureza, mas Deus, Criador do homem e da natureza.
Há quem proponha uma "nova aliança" com a natureza. Não precisa. O que é preciso é ampliar a perene aliança de Deus com a humanidade e com as demais criaturas, aliança selada com o Decálogo. Este não necessita ser completado com um mandamento especial relativo à ecologia. No mandamento "não matarás" pode caber perfeitamente o cuidado com todo o ser vivo e, mais largamente, de todo ser da natureza. Equivale a "não destruirás as coisas em vão". Também o mandamento geral "amarás a teu próximo como a ti mesmo" pode folgadamente incluir a natureza, enquanto se tornou hoje moralmente "próxima" de nós e de nosso destino biológico.
Quanto ao uso ou disposição da Criação pelo homem, isso também está submetido ao Criador e à sua lei. Isto já ocorria no Paraíso, quando Adão e Eva receberam a permissão de comer de todas as árvores, menos de uma (cf. Gn 2,16-17). Há, pois, limites, no usufruto da natureza por parte do ser humano. Isso leva à crítica moderna do "consumismo", prejudicial não só à natureza, mas ao próprio homem. Daí também a proposta sobre a qual se insiste cada vez mais: a de um "estilo de vida sustentável". João Paulo II falava de um "novo e rigoroso estilo de vida" [41]. Mas já no Novo Testamento temos a admoestação: "Se temos o que comer e vestir, contentemo-nos com isso" (1Tm 6,8). Ninguém hoje pode se eximir da exigência de um modelo sóbrio de consumo. Tal modelo se difunde pelo ensino, mas sobretudo através do exemplo, especialmente no âmbito da famílias [42].
Mas esta posição ético-pessoal não dispensa a pressão propriamente política sobre as autoridades governamentais e sobre os responsáveis das grandes empresas. Estas, em particular, são as maiores responsáveis pela poluição e destruição ecológica (em cerca de 80%). Por outro lado, os governos e as indústrias são as instâncias que têm mais condições, respectivamente políticas e materiais, para obviar à degradação da natureza. A "Declaração do Rio" do Summit da ONU (1992) incluiu, entre seus princípios, o de nº 16: "O poluidor deve assumir os custos da poluição". Em tradução popular: "quem suja, limpe".
Em suma, a conversão a Deus implica numa autêntica conversão às criaturas, inclusive na forma da "conversão ecológica", de acordo com a expressão de João Paulo II [43].
Excurso: o valor próprio das criaturas segundo a Bíblia
O que a razão prova, a Revelação confirma. De fato, quando consultamos a Bíblia, fica claro que as criaturas têm valor próprio, sendo, por isso, portadoras de direitos próprios. Pelo relato sacerdotal da Criação (Gn 1), e isso é confirmado pela teoria da evolução, o ser humano entrou num mundo já constituído e, ademais, um mundo já bom, independentemente de qualquer apreciação humana. Portanto, o ser humano foi precedido por uma série imensa de seres vivos. A natureza é um "dom que nos precede", escreveu Bento XVI [44]. Portanto, para a Bíblia, o ser humano não é o "apreciador" que pretendia Nietzsche [45]. De resto, foi justamente quando desejou sê-lo, pretendendo determinar o bem e o mal, é que entrou no mundo o pecado e com ele toda desarmonia.
Além disso, há, segundo a Bíblia, a aliança do Criador com todas as criaturas, e não só com o homem: é a chamada "aliança noaica" (cf. Gn 9,9-11). Sendo que tudo é obra de Deus, a ele finalmente tudo pertence: "toda a vida me pertence" (Ez 18,4). Para o Antigo Testamento, as criaturas são portadoras de direitos. Elas têm, por exemplo, direito ao descanso do sábado (Ex 20,10; 23,12). A terra igualmente tem esse direito no "ano sabático" (Ex 23,11; Lv 25,4-5). O ser humano tem o dever de tratar bem os animais. "O justo cuida da vida dos animais, mas as entranhas dos maus são cruéis" (Pv 12,10; cf. 27,23). O homem está obrigado a proteger as criaturas e poupá-las do sofrimento e da morte [46]. No Novo Testamento, Jesus ensina que o Pai cuida dos pássaros e das flores (cf. Mt 7,26-30; Lc 12,24), e isso não em vista do homem, mas pelo amor singular que Ele nutre por cada criatura: "Nenhum passarinho cai por terra sem que meu Pai saiba" (Mt 10,29).
Portanto, o pensamento bíblico não tem dificuldade em reconhecer direitos à natureza criada. Para ele, o valor moral das coisas tem um fundamento estritamente teológico. O mundo é bom "aos olhos de Deus" (ponto de vista teocêntrico) e não simplesmente "aos olhos do homem" (ponto de vista antropocêntrico).
3. Por uma nova admiração pela natureza (nível estético ou poético).
Precisamos, por fim, de uma nova forma, agora mais consciente, do "romantismo eterno" que habita a alma humana e que nos faz comungar com a natureza numa irmandade universal sob o olhar do Criador. Importa recuperar olhos de crianças, de poetas e de santos para voltar a contemplar a Criação com um olhar maravilhado. Sto. Inácio, já velho, em Roma, saía para o jardim e, batendo de leve nas flores, como a censurá-las, dizia-lhes: "Falai baixo: já vos ouço" [47].
Convém finalmente advertir contra uma tentação que volta hoje a assediar o coração do ser humano: a de levar a veneração pelas criaturas a ponto de divinizá-las. Essa tentação foi denunciada, com estilo, pelo livro da Sabedoria. "São insensatos os que desconheceram a Deus... Tomaram por deuses, regentes do mundo, o fogo, o vento, o ar agitável, a esfera estrelada, a água impetuosa, os astros dos céus. Se tomaram essas coisas por deuses, encantados por sua beleza, deviam saber quanto seu Senhor prevalece sobre elas, porque é o Criador da beleza que fez estas coisas" (Sb 13,1-3). Igualmente, Jó confessa o quanto a beleza do mundo o atraía, mas declara que resistiu a endeusá-la: "Quando via o sol brilhar e a lua levantar-se em seu esplendor, jamais meu coração se deixou seduzir em segredo e minha mão se deixou levar à boca para um beijo... pois assim teria renegado ao Deus supremo" (Jó 31,26-28).
A honra da criatura só é verdadeira quando corresponde à sua dignidade própria. Ora, vimos que criatura quer dizer, certamente, autonomia, mas, ao mesmo tempo, participação na beleza e bondade, poder e sabedoria do Criador.
Conclusão: retomando nossa posição essencial
Só redescobrindo o Criador redescobriremos as criaturas e seu valor, e lhes daremos um fundamento derradeiro. Sem isso, a natureza continuará balançando, tal como um edifício sem alicerce, como nos extremos opostos do antropocentrismo moderno e do ecocentrismo panteísta. Ao contrário, assentada sobre uma base religiosa, a causa ecológica gozará de uma garantia transcendente e sagrada.
De fato, quando pomos Deus como medida de tudo, inclusive da natureza, então esta fica protegida das duas ameaças evocadas: do homem e de seu arbítrio, assim como da própria natureza e de suas seduções. Com Deus, crido e experimentado, fica eficazmente afastada a perspectiva do niilismo, da falta final de sentido, que está na raiz da crise ecológica.
É impelidos por sua fé no Criador e Pai que os cristãos se comprometem em favor das criaturas. Junto com os seguidores de outras religiões, eles são chamados a lutar por uma ecologia que esteja sempre aberta ao Transcendente. Combatendo ao lado de outros promotores da causa ecológica, cuidarão para não ocultar e menos ainda sacrificar sua identidade espiritual. Pois se isso sucedesse, seriam como o sal que perdeu o vigor: "não serviria mais para nada, senão para ser jogado fora e pisado pelos homens", como advertiu o Mestre (Mt 5,13).
Hoje descobrimos que a fé é "sal da terra" também no plano ecológico: sal que preserva a terra da corrupção e que lhe devolve o gosto do sentido.
Notas:
1. Contato: Rua Pedro Eloy de Souza, 4 (Bairro Alto) - 82820-130 Curitiba – PR
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2. Para toda essa problemática, cf. L. BOFF, Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, Rio de Janeiro: Sextante, 2004; ID., Ecologia, mundialização e espiritualidade, Rio de Janeiro: Record, 2008; ID., A opção terra: a solução para a terra não cai do céu, Rio de Janeiro: Record, 2009. Nesses livros indica-se uma extensa bibliografia.
3. Cf. BENTO XVI, Caritas in Veritate (= CV), 51.
4. Cit. in D. HERVIEU-LÉGER (org.), Religion et écologie, Paris: Cerf, 1993, p. 237.
5. Cf. BENTO XVI, CV 51.
6. Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 1, a. 1; II-II, q. 2, a. 4: as vantagens das verdades reveladas sobre as meramente racionais é que são mais fáceis, mais comuns e mais seguras.
7. Cf. também Gn 1,26: "Façamos o homem... que ele submeta os peixes do mar...."; Gn 9,2: "Sereis causa de temor e espanto para todos os animais da terra"; Sir 17,2-4. Um dos primeiros críticos das raízes judeo-cristãs da crise ecológica: L. WHITE Jr., "The Historical Roots of Our Ecological Crisis", Science (1967/nº 155) 1203-1207 (reeditado em 1973).
8. É o que lembra o PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, no documento sobre a Reforma Agrária (1977), ap. L. GARMUS, "Ecologia nos documentos da Igreja católica", Revista Eclesiástica Brasileira 69 (2009) 861-884, aqui p. 874.
9. Texto lembrado em GS 34,1. E a Oração Eucarística nº 4 se pauta por tal sentido quando diz que o homem foi criado "para que dominasse toda a criatura", mas "servindo a vós, seu Criador".
10. Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, II-II, q. 66, a. 1, toda: não é o homem, mas Deus que é dono das coisas quanto à sua natureza; o homem não pode nada contra isso, pois não foi ele que as criou; ele só pode algo apenas quanto ao uso das criaturas.
11. Cf. PAULO VI, Discurso na FAO (1970), onde diz: o homem, ao longo dos milênios, "aprendeu a submeter a natureza e a dominar a terra... Agora soou a hora de ele dominar seu próprio domínio"; JOÃO PAULO II, Redemptoris Hominis (1979), nº 26: o homem é "senhor" e "guarda" da natureza e não "desfrutador" e "destruidor"; Solicitudo Rei Socialis (1987), nº 26: "Domínio" "não é poder absoluto" de "usar e abusar"; Centesimus Annus (1991), nº 36-38: O homem se relaciona com a Criação a partir de uma "doação originária" das coisas da parte de Deus, de um "destino anterior" dado por Deus à terra; Christifideles Laici (1988), nº 43; Documento de Santo Domingo, nº 171, etc.
12. Cf. L. FERRY, A nova ordem ecológica, São Paulo: Difel, 2009 (orig. franc. 1992). Esse autor dá uma visão honesta do debate atual entre os ecologistas "modernos" e os ecologistas "profundos", embora o autor se ponha na fileira dos primeiros contra os segundos.
13. Bento XVI adverte sobre o perigo de fetichizar assim a criatura como se fosse um tabu intocável: CV 48.
14. Aí se confunde totalidade e Infinito (E. Levinas), o to pãn e o Transcendente. Já Sto. AGOSTINHO dizia: o pan é o máximo do que se vê, enquanto que Deus é o máximo do que não se vê: Conf., X, 6; e L. WITTGENSTEIN: o mundo é totalidade, mas limitada; intuir o limite do mundo é o místico: Tractatus, 6.45.
15. Há que reconhecer, por um lado, que vida e morte formam uma unidade dialética na natureza. No processo evolutivo, vale o princípio do struggle for life, correspondendo ao mors tua vita mea; por outro, é segundo o princípio da struggle que há evolução pela "seleção dos mais aptos", o que leva ao surgimento de formas de vida superiores. Seja como for, no processo dialético ou agonístico da evolução, a vida, em geral, acaba triunfando sobre a morte, a ordem sobre a desordem, a beleza sobre o caos.
16. Não a de Spinoza, mas a de Sto. Tomás: Suma Teológica, I-II, q. 85, a. 6, c.
17. É o que lembra G.K. CHESTERTON contra todos os panteísmos em Ortodoxia, São Paulo: Mundo cristão, 2008, p. 186. S. Francisco o entendeu quando, no "Cântico do irmão Sol", chamou à matre terra nostra sorella (v. 9).
18. Séc. X: relato javista.
19. Séc. VI: relato sacerdotal.
20. A ideia do ser humano como gerente aparece também nos evangelhos: Mt 21,33-43: os lavradores homicidas; Mt 25,14-30: os talentos; Lc 16,1-9: o administrador infiel.
21. "O místico não é como é o mundo, mas o fato de existir": L. WITTGENSTEIN, Tractatus logico-philosophicus (1921), proposição 6.44.
22. Cf. também os Sl 35,7; 104,31; e 145,9.
23. Cf. G. SCHOLEM, As grandes correntes da mística judaica, São Paulo: Perspectiva, 1972, pp. 247-289.
24. Cf. Mt 13,35; 25,43; Lc 11,50; Jo 17,24; Ef 1,4; Hb 4,3; 9,26; 1Pd 1,20; Ap 13,8; 17,8.
25. Cf. Cl 1,17: "Tudo n’Ele (Cristo) subsiste"; 1Co 8,6: "Por quem (Cristo) tudo existe".
26. Cf. K. GOLSER (teólogo e bispo de Bolzano), "Homo oecologicus", Il Regno-attualità (2009/nº 2) 54-60.
27. Notemos que a dimensão cristológica da Criação não passou por alto a S. Francisco. Este via em todas as criaturas as marcas do Criador, mas privilegiava as criaturas que faziam pensar em Cristo, como, por exemplo, os cordeiros e as ovelhas (por causa de Cristo, Cordeiro de Deus), as pedras ("andava com respeito encima das pedras, pensando n’Aquele que foi chamado de Pedra"), mesmo os vermes (pois no Salmo 21, Cristo sofredor foi comparado a um verme). Cf. CELANO, Vida I, nº 77-80; e Vida II, nº 165.
28. Cf. J. MOLTMANN, Deus na criação: Doutrina ecológica da criação, Petrópolis: Vozes, 1993. Aí se dá destaque à dimensão pneumatológica da questão.
29. Cf. CELANO, Vida I, nº 80-81. S. Francisco foi declarado patrono da ecologia por João Paulo II em 1979.
30. Cf. CELANO, Vida I, nº 165.
31. Para a "escada do sentido" em três degraus, cf. Cl. BOFF, O livro do sentido, parte III, cap. 1 (em preparação).
32. Legenda perugina, nº 43.
33. Cf. Gn 1,4.10.12.18.21.25: 6 vezes: "bom"; mais o v. 31: "muito bom", no final de tudo, com o ser humano junto.
34. "Panenteísmo": palavra cunhada por Karl Christian Krause († 1832) e retomada por A. N. Whitehead († 1947).
35. Foi K. RAHNER que destacou que, em Deus, transcendência e imanência "crescem na mesma medida e não em proporção inversa": Curso fundamental da fé, São Paulo: Paulus, 1989, p. 100.
36. Conf., III,6,11.
37. Cf. I. ZIZIOULAS, Il creato come eucaristia: approccio teologico al problema dell’ecologia, Magnano: Ed. Qiqajon, 1994.
38. Ap. A. FRANK-DUQUESNE, Cosmos et Gloire, Paris: J. Vrin, 1947, p. XII.
39. Cf. Le contrat naturel, Paris: Flammarion, 1990 (trad. port. O contrato natural, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991).
40. De Civitate Dei, XI, 16.
41. Discurso à Pontifícia Academia de Ciências, em 1992: ap. GARMUS, "Ecologia nos documentos da Igreja católica", p. 870.
42. O próprio vegetarianismo, que cresce mundo afora, é uma medida eficaz para se contrapor à entropia ecológica que representa a criação do gado para carne.
43. Catequese de 17 de janeiro de 2001.
44. BENTO XVI, CV 48.
45. Cf. Assim falou Zaratustra, parte I, cap. "Os mil objetivos e o único objetivo".
46. Ver leis como: levantar um boi ou um asno caído, mesmo se pertence a outros: Dt. 22,4; poupar a passarinha-mãe ao apanhar filhotes no ninho: Dt 22,6-7; não pôr focinheira no boi que trabalha, impedindo-o de comer: Dt 25,4; não sacrificar no mesmo dia um animal com sua cria: Lv 22,28; "não cozinhar um cabrito no leite de sua mãe": Ex 23,19; 34,26; Dt 14,21; poupar as árvores no cerco de uma cidade: Dt 20,19, etc.
47. Sto. AFONSO DE LIGÓRIO conta algo de parecido a propósito de "um eremita", que parece ter sido S. Simão Salo: A prática do amor a Jesus Cristo, Aparecida: Santuário, 1996, 7ª ed., pp. 13-14.
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Ecologia na ótica do niilismo: Por uma ecologia aberta ao Transcendente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU