Por: Jonas | 07 Dezembro 2012
“Faz sentido falar da infância do Filho eterno de Deus compartilhando nossa encarnação, no seio de uma mulher, nosso nascimento e nossos primeiros passos? Os relatos de Natal são algo mais do que “contos de natal”?” Estas são questões levantadas pelo teólogo espanhol Olegario González de Cardenal, para chamar a atenção a respeito da infância de Jesus. O artigo é publicado na Revista de Prensa, 01-12-2012. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Nas últimas décadas, quando ocorreram colóquios sobre o cristianismo entre filósofos ou cientistas, de um lado, e teólogos do outro; os primeiros sempre queriam estabelecer o diálogo com Ratzinger, não com outros teólogos mais liberais ou expoentes da última moda teológica.
Sabiam que, no caso dele, estavam diante de alguém que levava a sério os artigos rígidos do Credo cristão. O cristianismo possui três ou quatro afirmações nas quais consiste e que sem elas perece. Estas precisam ser apresentadas aos não cristãos com delicadeza, mas sem rodeios. Seria uma traição oferecer-lhes apenas os aspectos da vida cristã que podem lhes agradar.
Não se trata de propor apenas o fato isolado da cruz, que então seria insuportável; mas também de não guardar silêncio sobre ela e sobre aqueles artigos do Credo que entram em choque com a mentalidade dominante. Sendo verdade que a religião é uma vogal e a história é uma consoante, e que unindo as duas se formam as sílabas, poderíamos dizer que unindo os fatos e experiências em torno de Jesus, com a experiência e esperança de cada geração, teríamos a consonância sintática que é a fé cristã. Consonância de testemunho e de razão, de inteligência e de liberdade, de amor e de esperança.
Bento XVI acaba de publicar “A infância de Jesus", último volume de sua trilogia sobre Jesus Cristo. T. S. Eliot começa e termina o segundo de seus Quatro Quartetos com esta afirmação que já encontramos nos pré-socráticos e no Novo Testamento: “Em meu começo está meu fim. Em meu fim está meu começo”.
Ratzinger encerrava o segundo volume de sua obra falando do fim: a ressurreição. Os evangelistas descreveram o início (infância) de Jesus a partir de seu final (ressurreição). Quando tiveram a experiência de que aquele que os homens tinham crucificado, Deus havia ressuscitado, foi inevitável que eles se perguntassem sobre o sentido de tudo o que tinham vivido com Jesus e, sobretudo, pensassem em quem era e de onde vinha para que Deus tivesse atuado desta forma com ele. E inicia-se um processo de releitura do vivido, até chegar ao próprio nascimento de Jesus.
Uma convicção anima todo o processo: a unidade pessoal do sujeito. Deus não incorporou sua ação, repentinamente, em alguém sem qualificação para tal missão e sem uma relação especial com Ele. Aquele que ressuscitou é o mesmo que morreu na cruz, que pregou o Reino, que nasceu em Belém. E concluem: este a quem Deus ressuscitou é seu Filho. Aquele que nasce em Belém é o próprio Filho encarnado.
Os Evangelhos nascem de três fontes, sem as quais não são inteligíveis: a memória viva das palavras e dos fatos de Jesus, a experiência da Igreja que nasce e cresce, a releitura do Antigo Testamento, feita a partir da convicção de que o anúncio antecipado, do Messias prometido por Deus, cumpriu-se em Cristo. Não são biografias no sentido científico moderno do termo. Levam em conta os fatos relatados, já que ainda perduram testemunhas que podem acreditar ou desacreditar o que os evangelistas e Paulo narram.
Eles escrevem não a partir da suspeita, mas da confiança, com a alegria de saber que carregam entre suas mãos vasilhas de barro, um tesouro que oferecem aos demais. Estes três elementos precisam ser levados em conta no momento de ler os Evangelhos e na hora de utilizá-los como fonte para o conhecimento de Jesus.
Em seu livro, Ratzinger escreve utilizando estes critérios. Entretanto, é algo sério dedicar um livro ao estudo da infância de Jesus? A infância não é uma mera passagem para a juventude e maturidade? Faz sentido falar da infância do Filho eterno de Deus compartilhando nossa encarnação, no seio de uma mulher, nosso nascimento e nossos primeiros passos? Os relatos de Natal são algo mais do que “contos de natal”? Os Dickens como literatos e os Schleiermacher como filósofos, não os desmistificaram para sempre?
Reduzi-los a mito ou mera poesia é a eterna tentação do homem, diante da condescendência divina. Eles suscitaram tanta poesia e tanta música porque são muito mais do que isso. Não nos atrevemos a acreditar que Deus, sendo bom de verdade, queira compartilhar o destino conosco, que seja Emanuel. O Deus cristão não é simplesmente o deus dos deístas, motor imóvel ou relojoeiro que de uma vez para sempre deu corda ao mundo. O que os Evangelhos afirmam, e Ratzinger repete, é que Deus se inseriu no mundo, que é a sua criação, e que atua por meio dela, colaborando com o homem e sendo homem.
A dignidade da natureza não se completa enfrentando Deus, o seu criador, a partir de uma hipotética autonomia, mas lhe servindo para realizar seu desígnio salvífico. E este é o sentido do milagre. Deus se insere no mundo para ajudar o homem. Assim, entende-se a encarnação como nova criação do Espírito, fazendo surgir a humanidade de Jesus no seio de Maria, da mesma forma que no Gênesis vemos surgir tudo do nada, pela força do Espírito. Desta forma, também se entende a ressurreição como antecipação, ao coração da história, da recriação gloriosa do final. Concepção virginal, encarnação e ressurreição completam, assim, o milagre original que é a criação: Deus se dando em seu amor e liberdade até o extremo da carne.
Atrever-se a falar de forma absolutamente séria da infância de Jesus, é se atrever a falar absolutamente sério de Deus feito homem, do homem menino em seu desvalimento e da nova forma de ser pessoa a partir dessa nova criação em Cristo. Tanto o Oratório de Natal de Bach (1723), os Vinte olhares sobre o Menino Jesus de Messiaen (1944), como a Infância de Jesus de Berlioz (1854), não nasceram da ingenuidade.
Para o último, nós espanhóis devemos especial agradecimento. Ouvindo-lhe, o filósofo García Morente, alma da Faculdade de Filosofia na nova Cidade Universitária (Madri), viveu o que chama “O fato extraordinário” – sua conversão. Ele escreve: “Ouvia uma composição de Berlioz, intitulada ‘A infância de Jesus’. Provocou um efeito fulminante em minha alma. Esse é Deus, esse é o verdadeiro Deus, Deus vivo; essa é a Providência viva - disse para mim mesmo -. Esse é o Deus que entende os homens, que vive com os homens, que sofre com eles, que lhes dá alento e os lhes traz a salvação”.
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De Bach e Berlioz a Ratzinger. Artigo do teólogo Olegario González de Cardenal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU