Por: Jonas | 05 Outubro 2012
“Embora a reprodução heterossexual seja a base biológica das sociedades humanas, a cultura heterossexual não é mais do que uma construção entre outras e, nesse sentido, não pode se apresentar como modelo único e universal”. Essa é a opinião do ativista francês Louis-Georges Tin, em fragmento do livro “La invención de la cultura heterosexual” (Cuenco de Plata, 2012), publicado pelo jornal Página/12, 04-10-2012 . A tradução é do Cepat.
Eis o texto.
Mesmo se fosse possível explicar o caráter heterossexual da reprodução biológica, torna-se difícil explicar o caráter heterossexual da organização social. Uma vez terminada a cópula, aparentemente não há necessidade alguma de que o casal perdure. Isto é o que efetivamente acontece com a maioria dos mamíferos, que se separam de imediato, tal como demonstram os estudos de etologia. Inclusive, entre os primatas, que muitas vezes vivem em sociedade, é errôneo ver um rudimento de heterossexualidade como base da organização social. É claro que a reprodução biológica é heterossexuada, porém, de uma maneira muito mais complexa, a vida social se baseia em relações de dominação, rivalidade, cooperação e funcionalidade, bastante rigorosas: o casal heterossexual raras vezes constitui a célula básica da organização grupal.
Além disso, nem todas as sociedades humanas são heterossexuais. Na Grécia clássica - exemplo ilustre, mas não único -, percebe-se claramente que não se trata de uma sociedade heterossexual, embora entre os gregos, como em todas as partes, a reprodução biológica fosse heterossexuada. E isso não implica, necessariamente, de que se trate de uma sociedade homossexual, sendo a iniciação pederasta uma prática muito diferente da homossexualidade, da forma como a concebemos na atualidade. Na realidade, a questão da orientação homo ou heterossexual, de todos os modos, é um conceito inapropriado.
Se a prática heterossexual é universal, a cultura heterossexual não. As culturas humanas não são necessariamente heterossexuais; nem sempre conferem primazia simbólica ao par homem-mulher e ao amor em suas representações culturais, literárias ou artísticas.
Em muitas sociedades, por mais que as práticas heterossexuais sejam habituais, não são exaltadas como o amor, e muito menos como a paixão. Evidentemente, constituem uma exigência social objetiva que estrutura os vínculos sociais da sexualidade, vínculos onde em geral se exerce a dominação masculina e praticamente não se sublimam. O desejo do homem em relação à mulher é percebido como necessário, porém, ao mesmo tempo, acessório. Estas práticas heterossexuais não conseguem ser valorizadas, o que explica o exíguo lugar que se confere ao amor nessas civilizações.
Na realidade, a importância concedida ao amor, ou mais precisamente à heterossexualidade amorosa, parece ser algo próprio de nossas sociedades ocidentais. John Boswell (Les unions de même sexe dans l´Europe antique et médiévale, París, Fayard, 1996) escreveu: “Pouquíssimas civilizações, antigas ou que ficaram à margem da industrialização, estariam dispostas a admitir o que ninguém no Ocidente ousaria refutar: que o homem existe para amar uma mulher e a mulher para amar um homem. A maioria dos seres humanos, em todas as partes e em todas as épocas, teria julgado como estreita esta medida de valor”.
Embora a reprodução heterossexual seja a base biológica das sociedades humanas, a cultura heterossexual não é mais do que uma construção entre outras e, nesse sentido, não pode se apresentar como modelo único e universal. Por isso, convém questionar a partir de qual momento, como e por que nossa sociedade começou a exaltar o casal heterossexual. Questionar-se sobre as origens do dispositivo sociossexual no qual vivemos.
Heterossociais
A cultura heterossexual aparece no Ocidente, em inícios do século XII, graças à sociedade de corte. Em épocas anteriores, o par homem-mulher não era um objeto central, nem especialmente digno de interesse. A partir do século XII, o casal passa a ser um tema recorrente nos textos e representações artísticas. É objeto de numerosos discursos, muitas vezes eufóricos; não deixa de ser analisado, cantado, celebrado, exaltado. Constitui em si mesmo um objeto cultural, e inclusive um objeto de culto.
O surgimento de uma ética cortês no Ocidente favoreceu o auge de uma cultura do par homem-mulher, enquanto que as amizades masculinas, que tiveram seu momento de glória nas lendas heroicas, começaram progressivamente a ser consideradas como suspeitosas, questionadas, rejeitadas. É essa passagem da antiga cultura – que chamo homossocial – à cultura heterossexual moderna, o que se deve examinar. Esta substituição foi longa, complexa e difícil. Nota-se o auge da cultura heterossexual, com maior nitidez, nas resistências suscitadas, que se cristalizam nos discursos cavalheirescos.
Talvez, a mais notória resistência tenha sido a dos homens de guerra e da nobreza em geral, ou seja, do segundo estamento da sociedade do Antigo Regime. Até então, a cultura feudal tinha se baseado num universo exclusivamente masculino. Os homens, e especialmente os homens de guerra, muitas vezes viviam num mundo distante daquele das mulheres. Esses cavaleiros estavam destinados a cultivar uma ética da coragem individual e da submissão leal à ordem feudal: a ética do vassalo. A exaltação da vida grupal, as campanhas militares e a experiência do perigo compartilhado, criavam laços de proximidade. Essas amizades viris costumavam se converter em relações apaixonadas, que comprometiam os dois cavalheiros até a morte. Estas eram expressas em termos muito fortes, que implicavam uma ternura mesclada com a força militar, inconcebível para os atuais dispositivos sociossexuais.
Georges Duby (Dames Du XIIe sciècle, París, Gallimard, 1995) escreveu: “Na cavalaria do século XII – como no seio da Igreja - , o amor normal, o amor que leva a se esquecer de si mesmo, a se exceder no feito pela glória de um amigo, é homossexual. Não quero dizer que deva forçosamente terminar em conivência carnal. Porém, diz principalmente sobre o amor entre homens, fortalecido pelos valores da fidelidade e serviço adquiridos da moral do vassalo, naqueles que se supõe repousar a ordem e a paz, e disto os moralistas obtiveram o novo fervor, que os teólogos introduziram a palavra “amor”. Ao contrário, quando os homens da Igreja se interessavam pelas relações entre o homem e a mulher - e era uma de suas principais preocupações, já que nessa época se esmeravam por edificar uma ética do matrimônio -, demonstravam uma extrema prudência. Já que nesse caso o sexo forçosamente interfere, e o sexo é pecado.
Na sociedade feudal o “amor normal” se dá entre homens; portanto, é um “amor homossexual”, embora isso não implique necessariamente uma “conivência carnal”, razão pela qual preferimos falar aqui de “homossociabilidade”, este termo descarta qualquer confusão.
Quatro características sociais permitem descrever ou explicar esta cultura da amizade entre os homens. Em primeiro lugar, trata-se de uma sociedade homossocial, onde as mulheres ficam à margem e contam muito pouco: daí que, a priori, quase não possam despertar nenhum tipo de paixão; caso contrário, seria estranho. Nessas condições, antes do surgimento da literatura cortês, os afetos e amores somente podiam se desenvolver dentro de um quadro masculino. A sociedade feudal exalta a “virtus”, ou seja, os valores masculinos e, fundamentalmente, a “proece”, que mais do que a simples “proeza” indica as qualidades morais e físicas que permitem acedê-la. Instiga a permanente emulação que, em seu ponto culminante, exacerba as rivalidades como também as afinidades. Os cavaleiros são motivados a despertar a admiração de seus pares; tanto nos combates, como no castelo, vivem juntos, comem juntos, dormem juntos, às vezes até na mesma cama, e esta promiscuidade favorece as mais impetuosas paixões.
Em segundo lugar, esses amores masculinos estão associados ao caráter propriamente global ou orgânico da sociedade medieval. As amizades de hoje em dia, numa sociedade individualista, são vividas como relações eminentemente particulares; na sociedade medieval, que é global, orgânica ou holística, muitas vezes a amizade é, por sua vez, uma relação privada e pública, e goza de um reconhecimento social, cultural, e inclusive oficial. Em outras palavras, embora as amizades medievais sejam uma expressão do coração, também são a formulação não escrita de um contrato. Tal dispositivo explica a fé jurada, as mulheres prometidas ou trocadas, os juramentos que muitas vezes são pronunciados diante de testemunhas e outros tantos elementos que articulam a relação entre homens dentro do vínculo social em geral. É o que também explica que a amizade possa ser imposta como mandato.
Em terceiro lugar, os amores masculinos, na ordem feudal, frequentemente estão associados com o poder e os laços da vassalagem. A presença permanente desses cavaleiros na corte, esses jovens solteiros, é necessária para defender as terras do soberano, seu ducado ou seu reino, contudo, também pode se tornar uma fonte de conflitos, desordens e turbulências. Em tais condições, o culto à amizade constitui um meio de regulação social que permite reforçar os vínculos entre os soldados, fazer surgir o espírito corporativo e criar um tipo de fundamento social semelhante ao do célebre batalhão dos amantes, o batalhão de Tebas.
O fato das amizades masculinas responderem às características de uma sociedade feudal, global e homossocial, não deve menosprezar a intensidade dos afetos descritos. Inclusive, imposta pelo monarca, não significa que a amizade é menos autêntica; constitui um desses raros momentos de ternura, num mundo onde a brutalidade com frequência é a norma. O herói não pode conter as lágrimas quando teme por seu camarada; esse jovem galhardo se desaba quando seu amigo morre; nossos cavaleiros se abraçam e se beijam, frequentemente na boca, e muitas vezes passam a noite juntos. Não cabe questionar a respeito de sua sexualidade: tudo era perfeitamente natural aos olhos de seus contemporâneos. Essas amizades são – e essa é a quarta propriedade saliente neste caso – profundamente sentimentais.
Fin’amor
A partir do século XII, graças aos trovadores e menestréis, o amor cortês se torna um tema recorrente na sociedade medieval. Instaura uma relação assimétrica em que a mulher se torna, por assim dizer, ama e senhora de seu amante. Contudo, de modo geral, as coações sociais, o marido ou o malvado, proíbem qualquer relação verdadeira, e a frustração amorosa é sublimada por meio de fantasias requintadas, conscientes e refinadas. Em sua forma absoluta, o amor cortês desemboca no fin’amor [amor cortês], o amor perfeito, regulado por códigos precisos e rigorosos. É uma relação livre e forçosamente adúltera: amar ao esposo é amar por dever, mas amar um amante é amar por amor. Por isso, o amante está submetido a testes de iniciação, à prova, que finalizarão no orgasmo que a dama dará ou talvez não, já que alguns consideram que o fin’amor deve permanecer casto e puro.
O amor cortês dá lugar a uma eflorescência lírica em que o poeta canta seus versos ao som de instrumentos. E, enquanto giravam, as mulheres cantavam e contavam seus amores de maneira galante; a lírica occitana invade as regiões do norte. Leonor de Aquitânia e sua filha Marie aclimatam os novos costumes, nas cortes da Inglaterra e Champagne. A partir do século XII, a cultura do amor invade a França e se expandirá por toda a Europa.
Habituados com a lógica da cultura heterossexual, que percebem como natural, os comentaristas encontram dificuldades no momento de avaliar a revolução que o amor cortês introduziu na sociedade medieval: o de suplantar as amizades masculinas pelos amores heterossexuais. A emergência e o auge da cultura heterossexual no Ocidente colocam numa posição difícil os homens de guerra. Presos entre a ética cavalheiresca que instiga à guerra – universo masculino – e a ética que instiga o amor – universo feminino – eles se veem obrigados a responder, simultaneamente, duas ordens cominatórias e contraditórias. De agora para frente, seu universo homossocial deve contemporizar com a cultura heterossexual.
Assim, os relatos de Chrétien de Troyes (1135-1183) procuram responder de maneira dialética. Erec e Enide, o primeiro desses relatos, teve um grande sucesso. Erec, filho do rei Lac, casa-se com Enide. Ele a deseja muito, talvez exageradamente. Deixa de lado os torneios e se compraz nas delícias conjugais. Então, é criticado por sua “récréantise”, ou seja, essa indolência, esse amor, essa deferência permanente por sua esposa: em outras palavras, é questionada a sua virilidade.
A própria Enide chega a lamentar que Erec, por causa dela, tenha abandonado a glória cavalheiresca, causando grande desonra para ambos. Ela se lamenta no silêncio da noite, fala em voz alta e Erec a ouve. Ferido em seu orgulho, decide partir em busca de grandes feitos, para reconquistar a estima de sua esposa e demonstrar a todos que sua eminente valentia cavalheiresca não fica atrás de sua dignidade cortês.
Este relato demonstra a recuperação analógica, por parte da cultura heterossexual, dos procedimentos literários ou culturais próprios da tradição homossocial. Outro feito destacável é que, ao tomar a decisão de partir, Erec muda completamente de atitude para com sua esposa: ele, que até esse momento era seu humilde servidor, dali em diante a trata como uma criada. Ele que adorava falar de amor com ela, agora se proíbe. A partir de então, passa a dominá-la, tratando-a com brusquidão. Para provar sua valentia de cavaleiro, abandona a atitude cortês, o que demonstra o quanto é difícil conciliar a antiga tradição cavalheiresca com a nova cultura cortês.
Mau negócio
Cortejadas, celebradas, exaltadas, a partir do século XII, as mulheres viram realçado o seu status simbólico, e pode-se pensar que a cultura heterossexual foi para elas a oportunidade de um novo avanço. Porém, esta valorização simbólica não implicou necessariamente numa melhora concreta, mas muito pelo contrário. Embora os séculos XII e XIII tenham sido períodos de idealização do feminino, também reforçaram as normas e o controle sobre as mulheres.
A caça às bruxas não foi mais do que um caso extremo, que atestava este novo rigor. Em definitivo, ocorre como se o discurso sobre a mulher - o que é e, sobretudo, o que deve ser - implicasse em enaltecer uma imagem fantasiada do sexo feminino, daí o castigo às mulheres que demonstraram se afastar muito desse ideal tirânico. A outra face da idealização era a demonização: a carga cada vez mais pesada da coação social. As mulheres eram infligidas a se conformar com a imagem que os homens almejavam do segundo sexo. Nesse sentido, a promoção simbólica da mulher nas obras culturais, não foi necessariamente um bom negócio para elas na realidade social.
É útil destacar que em muitos aspectos a cortesia é enganosa. De fato, a dama exposta à admiração dos cavaleiros e à celebração dos trovadores corresponde a uma lógica totalmente feudal. A presença constante de todos esses soldados na corte era uma necessidade para o soberano, que os tinha a seu serviço e os associava à sua pessoa; contudo, também era uma fonte de distúrbios e desordens. A frustração sexual e social aguçava esses jovens solteiros, mas a beleza e o prestígio da dama os mantinham na linha. Domesticava, acalmava e os refinava por meio de pequenos favores da dama: uma olhada, uma atenção, talvez uma pequena delicadeza, porém nada mais.
O amor dos cavaleiros pela dama, na sociedade cortês, cumpria exatamente a mesma função que as amizades masculinas nos castelos de antes. Nos dois casos, essa disposição dos espíritos e corpos, essas amizades e amores, tinham como objetivo fortalecer a autoridade do soberano. Inicialmente, a cultura homossocial, e depois a cultura heterossexual, estavam ao serviço do poder. Esta homologia funcional explica como dois paradigmas, aparentemente tão opostos, puderam finalmente suceder-se com tanta rapidez. Nesse sentido, assim como não se deve subestimar o conflito manifesto entre as tradições homossociais de outrora e a nova cultura heterossexual, também não convém sobrevalorizá-lo no que diz respeito às mulheres e seu status social.
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“A cultura heterossexual não é mais do que uma construção entre outras”, afirma Louis-Georges Tin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU