15 Setembro 2012
O que resta da "traição" se a ação do apóstolo é lida do ponto de vista do combatente? Ele pertence a uma seita nacionalista e espera que Jesus se ponha à frente desse movimento, mas o Messias busca outro caminho.
A opinião é de Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, 06-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O caso de Judas ou, melhor, o mistério de Judas que vendeu Jesus por trinta moedas de prata e depois se enforcou, enquanto o céu explodia sulcado por raios, e a terra tremia, e o Cristo sobre a cruz expirava a alma mortal antes de ressurgir transfigurado: assim se conclui a história terrena do Deus encarnado e se abre a da nova religião e da Igreja que há dois mil anos a representa.
O personagem de Judas, o zelota, é um dos pontos centrais dessa história, e Gustavo Zagrebelsky fez bem em relembrá-lo com ampla documentação teológica e literária no seu artigo do dia 29 de agosto no nosso jornal. As fontes e as interpretações por ele referidas são numerosas, do livro de Bento XVI sobre Jesus ao Evangelho de Judas, passando por Thomas Mann do Doutor Fausto, a Borges e a muitos outros teólogos, escritores e pensadores.
Fez bem porque o traidor, o revolucionário, o instrumento de Deus, o pecador designado e até mesmo necessário, a sua punição que marca o máximo de incoerência da divindade e do destino são temas sempre recorrentes e ainda mais na nossa modernidade agitada por contradições ao mesmo tempo dilacerantes e não resolvíveis, riqueza e desespero da época em que vivemos.
Às inúmeras citações de Zagrebelsky, eu acrescento uma que sintetiza de modo exemplar os termos do problema e o enigma que ele contém. São dois versos de um soneto de Gioacchino Belli, escrito em defesa dos judeus acusados há séculos de deicídio: "Se Cristo viera para morrer / alguém tinha que trucidá-lo".
Se a nossa vida é dominada pelo destino, isto é, já está escrita, o enigma representado por Judas é insolúvel. Ou, melhor, sanciona não a punibilidade e a irrelevância das obras a fins de salvação no reino dos céus. Deus já decidiu tudo antes ainda que tudo aconteça; decidiu também como dispensar a graça, e será a graça que permitirá que as almas escolhidas se comprazam na luz do Senhor.
É verdade que, juntamente com a graça reservada aos escolhidos, o Deus cristão deu a todos a liberdade de decidir seus próprios comportamentos. Deus, obviamente, já sabe qual será a decisão, mas permite que os filhos de Adão a tomam assumindo a sua responsabilidade.
Atenção: não Adão. Adão havia recebido a ordem de não comer os frutos da árvore. Ele não tinha liberdade de escolha. Transgrediu cedendo à tentação de Eva e da serpente. Foi expulso pelos anjos e pulou para a história juntamente com a sua companheira; de maravilhoso animal, tornou-se pessoa dotada de pensamento com tudo o que se seguiu a isso, começando por Caim e Abel.
O Gênesis conta dessa forma. O Deus cristão é diferente quase em tudo do Deus bíblico, mas aceita o incipit, assim como aceita o decálogo mosaico como fundamento da moral, embora a pregação evangélica modifique profundamente as tábuas do Sinai.
Então: Adão como Judas ou, melhor, Judas como Adão? Dois escolhidos para se tornarem instrumento necessário ao desígnio divino? Quem pode dizer – entre aqueles que acreditam no Deus cristão – se esses selecionados foram punidos ou acolhidos na graça do Deus misericordioso? Adão seguramente sim: o Filho de Deus se torna filho do homem justamente para assumir sobre si o pecado cometido à origem dos tempos e restaurar a aliança de Deus com as suas criaturas. Sob a condição de que deixem de pecar. Como podem cumprir essa condição? Os Evangelhos o dizem, ao relatar o Sermão da Montanha: escolhendo a "caridade" como cânone principal da nova moral. A caridade, isto é, o amor ao próximo, o amor pelos outros é o único modo de amar o Deus cristão infinitamente misericordioso.
Mas Judas não tem amor pelos outros. Judas tem uma visão "política", pertence a uma seita nacionalista, quer expulsar os romanos, despreza os membros do Sinédrio, espera que Jesus se ponha à frente desse movimento.
Quando vê que o suposto Messias busca todo um outro caminho, então o trai. Não há caridade na alma política de Judas. Por isso é punível e talvez punido.
* * *
Aqui chegamos ao ponto. Um ponto de extrema atualidade, que pode ser analisado a partir de diversas angulações: a do crente cristão, a do não crente e a da política.
Sobre o crente já se falou. Ele certamente não pode penetrar nos mistérios divinos, mas que Judas é punível não há dúvida nenhuma para ele, e a doutrina da Igreja o confirma.
A visão política introduz uma variante de grande importância, isto é, a autonomia da política, e aqui o discurso se refere tanto aos crentes quanto aos não crentes. Para estes últimos, Judas traiu uma relação de amizade profunda e portanto é moralmente desqualificável; mas não cometeu nenhum crime, pois denunciou às autoridades religiosas e civis um subversivo que está perturbando a paz pública. Desse ponto de vista, portanto, Judas é uma espécie de "arrependido" que acusa um terrorista.
Mas qual é, ao contrário, a posição dos teóricos da autonomia da política?
A política, para os pensadores que fundaram a filosofia como ciência do saber, está e deve estar no topo da atividade humana, porque se refere às regras de convivência da sociedade, o que se chama de bem comum.
A visão do bem comum deve levar em conta muitos fatores: a história de um país, o seu estágio de desenvolvimento cultural e econômico, os seus pontos fortes e vulneráveis, os seus países vizinhos. A avaliação desses elementos é obviamente subjetiva, de modo que a política tem como fim declarado a conquista do poder para implementar essa visão do bem comum.
Visto à distância (muito à distância), o bem comum lembra a "caridade", isto é, o amor pelos outros; mas a caridade não precisa do poder, ela é e deve ser o conteúdo de uma vida. O bem comum, ao invés, tem a conquista do poder como objetivo irrenunciável. E portanto a luta entre as diversas visões. Esta é a característica permanente da autonomia da política.
Desse ponto de vista, Judas não é um traidor e nem mesmo um "arrependido" que denuncia um subversivo, mas sim um "zelota" que tem uma visão clara do que é o bem comum do povo de Israel para a sua parte, assim como os "essênios" tinha uma visão própria e as tantas outros seitas que, naquela época de presságios, pululavam na Palestina.
Julgado como combatente político, nas ações de Judas não há nada de condenável, até porque ele não está totalmente seguro de que queria condenação à morte do "mestre". Ele provavelmente queria que estourasse um escândalo, que o processo que lhe foi tentado mobilizasse as várias seitas políticas; que se formasse uma opinião pública, que em parte, de fato, se formou no momento de escolher a liberdade entre Jesus e Barrabás.
Deve-se notar que o Sinédrio não queria processar Jesus, muito menos Herodes ou Pilatos. No fim, foi o procurador romano que rompeu os deferimentos: interrogou-lhe, fez com que ele fosse supliciado, submeteu-o ao referendo popular e convidou (ordenou) o Sinédrio a confirmar a condenação.
Assim foi, e foram os legionários romanos que a executaram. O poder romano, substancialmente, saiu fortalecido. Pouca coisa. Naquele momento, forças bem outras estavam em movimento nas regiões do Oriente Médio, e Roma já era um império do qual a Palestina era um pequeno embora importante elemento.
No entanto, a condenação de Jesus foi para o zelota Judas um fiasco colossal. Talvez justamente por isso ele se enforcou, se as fontes que o relatam dizem a verdade.
* * *
Concluirei observando que a Igreja foi ao longo dos séculos e ainda é uma instituição que tem – ou deveria ter – em sua base a pregação de Jesus e dos seus apóstolos, mas como instituição atua na política e não se submete a ninguém na luta pela conquista do poder.
Naturalmente, para implementar a sua visão do bem comum, ela utiliza uma categoria dupla: a pastoralidade e a temporalidade, a Igreja pregante e missionária e a Igreja militante e político. A instituição é a caixa, a pastoralidade, o conteúdo; mas muitas vezes aconteceu que a caixa, isto é, a política se tornou o fim e sufocou o conteúdo.
Zagrebelsky escreve em certo ponto que, provavelmente, há um Judas, isto é, um potencial traidor em cada um de nós, é o nosso "duplo" que contrasta com a autenticidade da pessoa. Eu também chego a uma conclusão semelhante, mas por outro caminho: cada um de nós ama a si mesmo e é perfeitamente fisiológico que isso ocorra, mas também ama os outros, o seu próximo. A nossa vida individual e social nasce da contínua dialética entre essas duas polaridades. Hoje, estamos passando por uma fase em que o amor de si predomina, e as regras do bem comum jazem esquecidas em algum porão sujo.
Façamos o possível para reativá-las, principalmente para os filhos e os netos que esperam no futuro.
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Judas e a autonomia da política - Instituto Humanitas Unisinos - IHU