10 Setembro 2012
"A verdade histórica a ser relatada sobre um passado que nos envergonha, as responsabilidades públicas e privadas, individuais e coletivas que o planejaram e o executaram, é uma condição elementar de justiça, não só a retributiva, tantas vezes confundida com a vingança", afirma Jacques Távora Alfonsin, membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e membro da Comissão Estadual da Verdade.
Eis o artigo.
A Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul, depois de algumas reuniões informais e preparatórias, realiza a sua primeira sessão oficial durante esta semana, coincidentemente com outra do Conselhão, na qual figura como pauta principal a política pública da educação neste Estado, sabidamente um direito humano fundamental dos mais violados durante a ditadura.
Embora ninguém ignore os limites de poder sob os quais a lei balizou os trabalhos da Comissão Nacional e, por via de consequência, das estaduais - as vítimas da violação de direitos praticada pela ditadura ou seus familiares reclamam muito disso, com toda a razão - essa parece ser a hora de enfrentar-se tal desafio, quanto mais não seja para não reduzir a zero o quanto elas possam e devam fazer.
Se o trabalho é muito grande e complexo, se o número de integrantes das Comissões é muito pequeno,se o tempo fixado para os relatórios é muito curto, se a coleta de dados probatórios das atrocidades perpetradas durante aquela fase da nossa história está atravessada por um sem número de despistes, razão maior ainda aí se oferece para o empenho com que essas Comissões busquem alcançar os seus objetivos.
A verdade histórica a ser relatada sobre um passado que nos envergonha, as responsabilidades públicas e privadas, individuais e coletivas que o planejaram e o executaram, é uma condição elementar de justiça, não só a retributiva, tantas vezes confundida com a vingança, mas aquela do tipo indicado por José Saramago, em texto oportuno para o momento atual vivido pelo país e o Estado. Ele mostra o quanto se perde cada vez que a justiça morre pela mão da injustiça e o quanto dói o “direito de esperar” por justiça, ignorando-se até, por tardia, se ela ainda vive ou já morreu.
Como se estivesse falando para as vítimas do regime ditatorial brasileiro de ontem, ou seus familiares, adverte ele, respeitada a sua própria ortografia:
“... a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.” ( extraído de “Da justiça à democracia, passando pelos sinos”. Disponível na internet)
Uma justiça assim, “indispensável à vida como é o alimento do corpo”, “pedestre”, “emanação espontânea da própria sociedade em ação” pode e deve ser pensada, sentida, ouvida e vivida pelas Comissões da Verdade. Sozinhas, todavia, será certo o seu fracasso, porque uma investigação histórica não raramente tateia entre vestígios e esses, ainda por cima, sofrem não só pelo decurso do tempo como até por versões contraditórias sobre o acontecido.
Por isso, entre tantas fontes de apoio ao seu trabalho que já estão se propondo ajudar, como familiares de mortas/os e desaparecidas/os, Comitês de Memória, Justiça e Verdade, pastorais de igrejas, centros acadêmicos, Movimento Nacional de Direitos Humanos, Movimentos de defesa dos direitos humanos do interior do Estado se oferecendo até para servir como sub comissões, Levantes da Juventude, ONGs defensoras de direitos humanos, entre outras organizações, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado (CDES), que está procurando servir de ponte entre o povo e a administração pública, pode muito bem levar à Comissão Estadual da Verdade tudo quanto ouve e conhece por meio deste mesmo povo, especialmente das vítimas gaúchas da ditadura ou dos seus familiares.
Tratando-se de um colegiado que é sensível aos problemas e às dificuldades sociais, sugere providências, opina sobre implementação de políticas públicas propostas pelo Poder Executivo, inclusive em áreas envolvidas em problemas necessitados de soluções extraordinariamente urgentes como as da segurança, da saúde, da educação, critica o que entende inconveniente ou inoportuno, em várias Câmaras Temáticas relacionadas com os direitos humanos, tem condições bem favoráveis de fazer-se porta voz de violações de direito, acontecidas durante a ditadura, que lhe sejam denunciadas.
Podem aparecer, portanto, nessa oportuna relação que for estabelecida entre o Conselhão e a Comissão Estadual da Verdade, três princípios fundamentais de realização efetiva dos direitos humanos. De parte do CDES o da confiança em que a sua voz encontrará atenção, receptividade, resposta condizente com a relevância dos direitos que estão em causa; de parte da Comissão, o da responsabilidade, particularmente a caracterizada pelo rigor dos métodos a serem empregados na busca da verdade e na revelação dos nomes de agentes públicos que humilharam, torturaram e mataram brasileiras/os em nome do terrorismo de um Estado de exceção; de parte do povo, especialmente das vítimas da ditadura, a esperança de que, mesmo agora, tanto tempo decorrido, a memória desse passado nacional e estadual será publicada, a justiça ainda conseguirá desvelar a verdade escondida pelos carrascos, e essa libertará o povo do risco de sofrer repetida aquela história infame.
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O que pode e deve o Conselhão esperar da Comissão Estadual da Verdade e essa dele - Instituto Humanitas Unisinos - IHU