04 Setembro 2012
Como bispo de Milão, Martini se tornou o baluarte de uma certa linha pós-conciliar, um ponto de referência, a tal ponto de representar uma opinião forte e de autoridade com o consentimento conquistado junto à opinião pública.
A opinião é do jornalista espanhol Joaquín Navarro-Valls, ex-porta-voz do Vaticano durante mais de 20 anos no pontificado de João Paulo II. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 01-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A vida do cardeal Carlo Maria Martini foi verdadeiramente rica em acontecimentos. Ele havia encontrado a vocação religiosa na juventude. E bem cedo entrou na Companhia de Jesus com apenas 17 anos. Estamos em 1944, no término da Segunda Guerra Mundial: um momento-chave para o destino da Europa.
Ele não perde tempo e, dentro de poucos anos, torna-se sacerdote, completando os estudos de teologia realizados anteriormente em Gallarate e em Chieri. Já desde o momento da primeira especialização pode-se perceber algo da sua atitude futura, sempre positivamente voltado à dimensão cultural.
Em 1978 torna-se em Roma reitor da Universidade Gregoriana, depois de ter aprofundado o estudo dos textos bíblicos. Trata-se daquelas investigações filológicas que o acompanharam, depois, até o fim, e o tornaram célebre. Um ano depois do reitorado, João Paulo II, em 1979, o nomeia arcebispo de Milão, como sucessor de Colombo e de Schuster, e no ano seguinte cardeal.
A sua atitude pastoral foi dominada pelo debate intelectual. Uma rota que o levou continuamente rumo à busca de categorias melhores e mais adaptadas para expressar a fé: um interesse pelo detalhe filológico e pelas nuances semânticas. Duas iniciativas do seu dicastério milanês devem ser lembradas sobre todas: a instituição da chamada Cátedra dos Não Crentes em 1986 e o audaz projeto ecumênico. Com este último, depois, os seus estudos anteriores sobre a Sagrada Escritura começaram a fazer parte, graças à sua ação pastoral, do patrimônio do magistério lombardo.
Como bispo de Milão, Martini logo se tornou o baluarte de uma certa linha pós-conciliar, um ponto de referência, a tal ponto de representar uma opinião forte e de autoridade com o consentimento conquistado junto à opinião pública. Com Paulo VI ele também tinha isto em comum: uma visão do mundo e uma humanidade cosmopolita, aberta aos diferentes e aos dissidentes, com um ânimo capaz de prever e de antecipar os tempos.
Nada desprezível era o seu amor pelo saber filosófico e por um certo pensar trabalhado, sutil, abrangente. O seu ecumenismo, o mesmo que o levou após o término do encargo de bispo por anos a Jerusalém, era de índole estritamente intelectual. Tratava-se de encontrar aquele sentimento de pensamento, aquela confiança no outro, através da erudição. A cultura foi entendida por Martini como uma ponte entre as confissões e um ponto de encontro entre as religiões. A mesma atitude exigente permeou, por outro lado, o seu repetido interesse pelas pessoas distantes da fé, pelos não crentes.
Também por isso foram muito pungentes as suas reflexões diante do avanço da doença, aquele Parkinson que há anos tanto o atormentava. De fato, como dizia Max Scheler, o pensamento da morte é a maior provocação para um intelectual, até mesmo para um crente, porque não se deixa nem aferrar nem compreender até o fim. As nossas ideias se detêm diante do limiar do inexplorado. A morte – mas talvez especialmente o pensamento da morte – marca um limite intransponível para toda compreensão humana real da vida.
Daí a contradição e a confusão que atravessa o pensador, principalmente quando o destino último não é só uma ideia que o ataca, mas também um perigo dramático que se aproxima e entra carnalmente na sua vida.
As reflexões sobre a doença e a morte de Martini mostram claramente quanta participação direta e pessoal houve em um evento humano universal, que requer, para ser desimpedido, uma fé autêntica, uma salvação última. Com efeito, João Paulo II e Bento XVI foram nisso exemplos muito grandes para todos. Em Wojtyla, além disso, a dimensão intelectual nunca realmente cedeu lugar ao sentir existencial, pelo simples fato de que toda a sua experiência de pensamento permaneceu inseparavelmente ancorada desde o início no fim da concretude da vida. Nisso consistia para ele a verdadeira essência do cristianismo, como definida por Romano Guardini: uma experiência de dor e de redenção da qual também dá prova o esplêndido livro de Ratzinger sobre a vida de Jesus de Nazaré.
Eu não me admiro pelo fato de que Martini nunca amou até o fim essa maravilhosa sistematização especulativa, porque em Ratzinger, assim como em Wojtyla, a dimensão pessoal sempre teve um primado sobre a sensibilidade filológica e escritural. Em Martini, ao invés, a grande competência técnica nunca cedeu lugar de muito bom grado a motivações vividas.
Como conclusão do próprio itinerário de vida, como dizia Tomás de Aquino, a cultura se torna bem pouca coisa para um homem, quase um punhado de palha boa para o fogo, mas inútil para não sofrer.
Só a fé permanece intacta quando a dor e a morte entram inexoravelmente na existência individual. Porque só a certeza granítica da fé pode conduzir pela mão uma pessoa serenamente à última "sala de espera" da vida terrena.
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Wojtyla quis em Milão o padre que sabia falar aos ateus. Artigo de Joaquín Navarro-Valls - Instituto Humanitas Unisinos - IHU