03 Setembro 2012
A docilidade à Palavra fez de Martini um dos raros eclesiásticos em que não se encontravam nem táticas, nem estratégias, nem cálculos de governo, mas sim a parrésia evangélica de quem se confia ao Senhor.
A opinião é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal La Stampa, 01-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Ele se foi acompanhado pela oração de toda a diocese, dos seus coirmãos jesuítas, daqueles que o amaram e lhe foram próximos durante o seu ministério pastoral e os últimos anos marcados pela doença e pelo progressivo enfraquecimento da voz e das forças.
Ele se foi acompanhado também pelo pensamento agradecido – talvez também pela oração – de muitos que não são cristãos e nem mesmo crentes, mas que encontraram nele um pastor, um padre, um amigo, um confidente. Ele nos deixou em uma cama de doente, lugar onde ele quisera encerrar o seu ministério de bispo em Milão: nos últimos meses do seu episcopado, ele ia todos os dias, no silêncio e na discrição, saudar um por um os seus presbíteros doentes, indo encontrar-se com eles nas suas casas, nos hospitais, nos centros de tratamento...
Além disso, precisamente a partir dos doentes ele quisera iniciar a sua missão em Milão: a primeira paróquia por ele visitada foi a de Nossa Senhora de Lourdes, por ocasião do dia do doente: sinal tangível da sua consciência de ser pastor como discípulo fiel do Senhor que veio como médico para os doentes e não para os sãos, mais solícito para com os pecadores do que para os justos.
Homem das Escrituras, entre os mais eminentes estudiosos do Novo Testamento, foi homem da Palavra no sentido mais profundo do termo: lida, estudada, meditada, rezada, amada, a palavra de Deus para Martini era "lâmpada para os seus passos, luz para o caminho" e era também, e justamente por isso, chave de leitura do agir próprio e alheio, lugar de escuta, de discernimento, de visão profética.
Ele quis dedicar a sua primeira carta pastoral à "Dimensão contemplativa da vida", àquela busca do essencial através de um olhar clarividente, desejoso de assumir a própria visão de Deus sobre as pessoas e sobre os acontecimentos, um olhar que só a assiduidade com palavra de Deus chega para refinar.
E o homem, cristão, bispo da Palavra, Martini o foi também pela sua grande capacidade de escuta: encontrá-lo era experimentar pessoalmente o que é um ouvido atento e um coração acolhedor, o que significa pensar e rezar antes de formular uma resposta, captar o dito a partir das poucas palavras proferidas pelos interlocutor, entender os seus silêncios. Da escuta atenta da Palavra e do outro, nascia no cardeal Martini a capacidade de gestos proféticos, a solicitude pela Igreja e pela sua unidade, a proximidade aos pobres, o fazer-se próximo dos distantes, o diálogo com os não crentes até considerá-los seus próprios mestres aos quais podia confiar cátedras para a busca do sentido das coisas e da dignidade das pessoas.
E essa docilidade à Palavra fez dele um dos raros eclesiásticos em que não se encontravam nem táticas, nem estratégias, nem cálculos de governo, mas sim a parrésia evangélica de quem se confia ao Senhor.
Entre os inúmeros encontros que tive com ele ao longo de uma longa amizade – nascida no inverno de 1977, quando ambos estávamos em Jerusalém –, eu gostaria neste momento de recordar a sua última visita a Bose, quando as forças já começavam a abandoná-lo sem minimamente atacar a sua lucidez e a sua paixão pelo Evangelho e pela "corrida da Palavra" entre os homens e mulheres do nosso tempo.
"Eu já vejo diante de mim a vida eterna – disse-nos com grande simplicidade e força –, eu vim para dar a vocês a minha última saudação, o meu obrigado ao Senhor por esta longa amizade no Seu nome: conto com a oração e com o afeto de vocês". E assim, como um pai cheio de solicitude, ele nos falou da morte e do morrer, da ressurreição e da vida: "Morre-se sozinho! No entanto, como Jesus, quem morre em Deus sabe-se acolhido pelos braços do Pai que, no Espírito, preenche o abismo da distância e faz nascer a eterna comunhão da vida. Na luz da ressurreição de Jesus, podemos intuir algo do que será a ressurreição da carne. A antecipação vigilante da ressurreição final está em toda beleza, em todo júbilo, em toda profundidade da alegria que atinge também o corpo e as coisas".
Sim, ter conhecido e amado o cardeal Martini, ter tido o grande dom da sua amizade foi ocasião desse júbilo e dessa alegria profunda, significou compreender por que os Padres da Igreja costumavam dizer que os discípulos autênticos do Senhor são sequentiae sancti Evangelii, trechos do Evangelho, narrações do amor de Deus por toda a humanidade.
Por isso, o sentimento de gratidão ao Senhor pelo dom que foi o padre Carlo Maria Martini, como simplesmente ele se fazia chamar nestes últimos anos, habita os corações de muitos, muito além das fronteiras da diocese ambrosiana.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Martini, a escrita e a palavra. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU