23 Agosto 2012
"Não basta um discurso teológico para o mundo, é preciso um diálogo teológico com o mundo", afirma o editorial da revista Perspectiva Teológica, no. 122/2012, intitulado "Teologia Pública".
Segundo o editorial, "paradigmático é, neste sentido, o caminho que fez o Concílio Vaticano II, da Sacrosanctum Concilium e Lumen gentium, por um lado, até a Gaudium et spes, por outro. E neste percurso surge também o decreto Ad gentes, retomado na exortação Evangelii nuntiandi do papa Paulo VI: a meta não é a conversão à religião cristã, mas o anúncio do Evangelho ao mundo. Paulo não quis converter os gálatas a uma religião (no caso, a judaica), mas anunciar-lhes o evangelho de Jesus Cristo, outro fora do qual não há".
Clarividente, o editorial conclui: "A teologia pública é a teologia que sai do gueto, e seu paradigma é a parresia de Jesus e dos Apóstolos".
Eis o editorial.
Ouve-se, nos anos recentes, no Brasil, a expressão “teologia pública”. A alguns, tal termo parece pleonasmo: se a teologia como discurso sobre Deus não for pública, articulada no âmbito aberto deste mundo e dirigida a toda pessoa humana disposta ao diálogo, ela não corresponde ao que deveria ser. Vista assim, a teologia ou é pública, ou não é teologia. Contudo, é preciso levar em consideração o contexto histórico que deu origem a esse modo de falar: o contexto de uma teologia meramente eclesial, magisterial até, que não se dirigia às pessoas fora da Igreja e, muitas vezes, nem mesmo aos fiéis leigos, pelo menos não em termos de diálogo, pois eram meros destinatários de doutrinas, não parceiros de diálogo.
Voltando às origens, devemos lembrar que a primeira teologia cristã era pública, tanto no Areópago como nos escritos de Justino ou na Carta a Diogneto. Explicava o evento Cristo e o fato cristão aos outros, ao mundo. Apologética no sentido original era apresentar aos não cristãos “as razões de nossa esperança” (cf. 1Pedro 3,15), supondo-se que o outro parceiro do diálogo expressasse também a sua convicção ou suas dúvidas, em pé de igualdade. O que nada tinha a ver com passiva submissão ao magistério, como sugere certa interpretação errônea da “oboedientia fidei”, que na realidade significa o dar ouvido à Palavra que é (o evangelho de) Jesus, o Cristo. O diálogo genuinamente teológico, porém, não se limita ao anúncio de Jesus, mas implica todos os aspectos da vida humana, refletidos em conjunto também com o não cristão, para mostrar, precisamente, a nova iluminação a partir de Jesus e seu evangelho.
Com o surgimento da Cristandade, quando os cristãos assumiram o papel majoritário e dominante na sociedade, a ponto de a sociedade se identificar com a Igreja Católica, desenvolveu-se um processo dialético. A fé cristã (entendida como dogma, sacramentos e mandamentos de Deus e da Igreja), deixou de ser convicção privada e tornou-se pressuposto público. As brigas teológicas dos grandes concílios no início da era constantiniana levavam as multidões à rua, e as discussões teológicas medievais eram travadas em público. Porém, na virada das eras medieval e moderna, fez-se sentir uma inversão. A teologia confinou-se nos temas para o ensino do clero e pelo clero, enquanto o povo foi deixado no ambiente leigo, com uma teologia reduzida a um prato feito de dogma e moral, servido por alguma instância hierárquica.
Hoje, a Igreja percebe que o discurso da fé deve atingir o mundo como tal. Com a emancipação de um mundo leigo no espaço da antiga Cristandade, sobretudo a partir da Aufklärung e da Revolução Francesa, as coisas mudaram. Já antes do Concílio Vaticano II vivia-se a preocupação com uma teologia do mundo, teologia da realidade terrestre – em cuja esteira se desenvolveu, no Terceiro Mundo, a teologia da libertação. Paradigmático é, neste sentido, o caminho que fez o Concílio Vaticano II, da Sacrosanctum Concilium e Lumen gentium, por um lado, até a Gaudium et spes, por outro. E neste percurso surge também o decreto Ad gentes, retomado na exortação Evangelii nuntiandi do papa Paulo VI: a meta não é a conversão à religião cristã, mas o anúncio do Evangelho ao mundo. Paulo não quis converter os gálatas a uma religião (no caso, a judaica), mas anunciar-lhes o evangelho de Jesus Cristo, outro fora do qual não há.
A emancipação moderna em relação à Cristandade medieval privatizou a religião católica, que até então era pública. A fé tornou-se coisa privada, correndo, com isso, o risco de não mais falar ao mundo – mundo não só “leigo”, mas “laicizado”, “secular”, alheio ao âmbito confessional cristão. O pressuposto cristão sumiu. Visto contra esse pano de fundo histórico, o mister teológico hoje necessita, conforme a palavra de J. B. Metz, de “Entprivatisierung”, sair do âmbito privado intraeclesial (ou meramente magisterial) para ir ao encontro do mundo. Mas isso não é suficiente para se ter uma teologia pública. Não basta uma palavra dirigida pelos cristãos ao mundo. Necessita-se de um diálogo sobre Deus e sobre a dimensão transcendente na existência humana em sociedade, participado em pé de igualdade por todos aqueles que a buscam de coração sincero. Não basta um discurso teológico para o mundo, é preciso um diálogo teológico com o mundo.
Essa sensibilidade, expressa por J. B. Metz, D. Tracy, J. Moltmann e muitos outros, reveste-se de atualidade especial no Brasil e na América Latina. Nos últimos decênios, sob o efeito de múltiplos fatores históricos, culturais, políticos e sociais, nossas regiões estão saindo rapidamente da configuração da Cristandade. No momento em que compomos este texto, o estado talvez mais secularizado do Brasil, o Rio Grande do Sul, decreta a retirada dos símbolos religiosos dos espaços da Magistratura Jurídica. Por outro lado, a atual Constituição da República prevê o Ensino Religioso nas escolas públicas, mas entende – apesar das discussões em sentido contrário levantadas por determinados ambientes – que tal ensino esteja acima da divisão confessional e tenha característica laica. E as Faculdades de Teologia ganham reconhecimento, não só da parte de seus competentes órgãos confessionais, mas da parte da instituição pública que é o Estado. Percebe-se também a urgente necessidade de um diálogo aberto que una, no mesmo foro, a Teologia e as outras ciências, razão pela qual a “cientificidade” da Teologia se torna um assunto constante no debate acadêmico-científico.
Também para a teologia latino-americana, e nomeadamente para a corrente que se expressa na teologia da libertação, surge a pergunta se se está falando somente para os quadros cristãos e as comunidades de fé ou para todo ser humano, de modo secular, como se percebe naqueles setores da teologia que focalizam a questão ecológica, a questão do gênero etc. A teologia ética social não pode confinar-se num discurso intraeclesial, pois o que ela diz vale para a sociedade como tal. O mesmo deverá ser reconhecido quanto a outros campos da ética e, finalmente, quanto à teologia como tal, especialmente a teologia fundamental.
A teologia pública torna-se uma realidade na América Latina e, especificamente, no Brasil. Acontece nos congressos da SOTER (Sociedade de Teologia e de Ciências da Religião) e da ANPTECRE (Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Teologia e Ciências de Religião), em jornadas de estudo de Faculdades de Teologia ou de Ciências da Religião, em iniciativas como o Instituto Humanitas (IHU) da Unisinos-São Leopoldo, em contribuições pessoais e colunas jornalísticas de teólogos, como “O olhar do Teólogo” de nosso colega João Batista Libanio e semelhantes. Por vários meios são assim trazidos ao debate as grandes questões da humanidade e de nosso povo que interessam ao fazer teológico.
Qual seria, então, o conteúdo de uma teologia pública? Moltmann responde: Deus. A teologia é lógos theou, reflexão-discurso sobre a autocomunicação de Deus e que leva Deus à fala. E deste assunto primeiro derivam-se os assuntos específicos, hoje, talvez em primeiro lugar, de ordem ética, política, ecológica, o outro mundo possível. Ou também de ordem comportamental, o sentido da vida etc. O específico da teologia pública não está no seu assunto, que é o da teologia como tal – o humano-divino –, mas no seu modo e, sobretudo, no seu fórum, o Areópago, o “Pátio dos Gentios’... Empreendimento perigoso. Por um lado existe o perigo da inautenticidade, quando se vai ao pátio dos gentios convencido de que se tem toda a verdade. Pretende-se simplesmente “driblar” o gentio. Isso seria inautêntico. A autenticidade exige que o interlocutor seja visto como parceiro e ouvido com seriedade, isto é, como quem procura falar a verdade, mesmo se sua fala questiona nossa proposição. No fórum da teologia pública, o teólogo não tem razão de antemão, como quem se apresenta com uma seleção de textos da Bíblia ou do Magistério debaixo do braço. É diálogo de verdade, segundo a orientação do filósofo Martin Buber: a verdade do diálogo nasce no meio entre o Eu e o Tu. Eis o desafio da teologia pública. Por outro lado, observe-se também a conhecida lei da comunicação: o meio determina a mensagem. O que se fala no Areópago pode aprisionar a mensagem. Por isso, é preciso conhecer bem o Areópago, sem perder o fogo do Espírito.
Ora, mesmo sendo o assunto da teologia pública o de toda teologia, há certos assuntos que lhe são mais conaturais: os que envolvem o bem público, que diz respeito tanto aos que creem em Cristo quanto aos que não se chamam com o nome cristão. E precisamente nestes assuntos o diálogo sincero e sem presunção é fundamental. Situam-se aqui a teologia política, que diz respeito à pólis de todos; a teologia voltada para a ecologia, o gênero, o bem-estar e a justiça social, o diálogo inter-religioso e, sobretudo, na sociedade que não está mais sendo orientada nem pela Igreja nem pelo Estado, a busca de uma ética acima das nações e confissões, uma ética mundial.
Resta ver, agora, como será interpretada a frase do recente documento da Comissão Teológica Internacional “Teologia hoje: perspectivas, princípios e critérios”, afirmando que a teologia é um serviço prestado à Igreja e à Sociedade e que o texto em pauta quer prestar um serviço aos colegas teólogos “e também àqueles com quem os teólogos católicos entram em diálogo” (n. 100). Tudo depende de o diálogo ser diálogo mesmo.
A teologia pública é a teologia que sai do gueto, e seu paradigma é a parresia de Jesus e dos Apóstolos. “Eu falei abertamente ao mundo. Eu sempre ensinei nas sinagogas e no templo, onde todos os judeus se reúnem. Nada falei às escondidas.” (João 18,20).
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Teologia Pública. Destaque de revista teológica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU