06 Agosto 2012
"Lembro-me de que, no dia da fundação do PT, em fevereiro de 1980, na capela do Colégio Sion, em São Paulo, um conhecido nos recebeu dizendo "que bom que vocês estão aqui, porque vocês vão ajudar a acabar com o principismo dentro do PT". Ou seja, o PT nem tinha sido inaugurado ainda e já se falava em principismo", narra Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia, em entrevitsa ao jornal O Estado de S. Paulo, 05-08-2012.
Eis a entrevista.
Qual o impacto do mensalão na história do PT?
Ele é o coroamento de um processo interno, que já se prenunciava. Já estava presente na criação do partido e se acentuou ao longo dos tempos. Lembro-me de que, no dia da fundação do PT, em fevereiro de 1980, na capela do Colégio Sion, em São Paulo, um conhecido nos recebeu dizendo "que bom que vocês estão aqui, porque vocês vão ajudar a acabar com o principismo dentro do PT". Ou seja, o PT nem tinha sido inaugurado ainda e já se falava em principismo. Naquele momento havia dois grupos, o trotskista e o católico, que deram o tom do debate ideológico e político dentro do partido por um bom tempo. E existia a corrente dos "realistas", para os quais o PT, para dar certo, teria de conviver com outros grupos, fazer alianças, o vaivém.
E como isso foi desembocar no mensalão?
À medida que o PT foi deixando de ser uma seita radical, não era mais o "novo na política". Foi ganhando eleições municipais, na Câmara, Senado, governos estaduais. Os principistas foram perdendo o jogo interno e se recolhendo. Em 1989, na disputa de Lula contra Fernando Collor, já não se identificavam mais, nas ruas, aqueles militantes ideológicos do PT. Comecei a notar a presença de gente paga pra carregar a bandeirinha. Era a burocratização do partido. Essa corrente realista, liderada pelo movimento chamado Articulação, Lula e José Dirceu à frente, foi ganhando espaço. Em 2002, a Carta aos Brasileiros foi a capitulação dos idealistas diante desse setor mais realista. Lembro aqui que o Lula aprendeu a fazer política e concessões com o patronato, como líder sindical no ABC.
Acha que o PT lidou adequadamente com as denúncias, de 2005 pra cá?
Do ponto de vista ético, só posso dizer que o que ocorreu coletivamente, como autodefesa, foi um apelo gravíssimo ao niilismo dos valores. Para quem nunca teve ideologia ou religião, não significa nada. Mas para quem teve uma formação, seja marxista ou católica, era uma adesão ao niilismo. Com o consequente cinismo. Acho que, agora, a partir do julgamento do mensalão no STF, perdendo ou sendo inocentado, o petismo teria de se reinventar. Lá atrás, na Carta aos Brasileiros, já deviam ter feito um congresso para votar um outro programa para o partido. Porque aquele não servia mais.
Como professor de Ética, como vê a ética na vida partidária do País?
Já naquele período inicial eu argumentei com muitos petistas que eles não deveriam agitar a ética nas ruas como se fosse um slogan. Que na prática politica isso levaria ao maniqueísmo. Ética, eu insistia, é um conjunto complexo de valores e atitudes, não é um slogan a mais. Até a eleição do Collor havia no PT esse debate entre principistas e realistas. Causas como FMI, reforma agrária, imperialismo americano, havia um discurso com traços da esquerda clássica. A expressão "ética na política" começou a ser usada e abusada a partir da campanha presidencial de 1989 contra o Collor. Foi ali que apareceu o mote segundo o qual "o único partido ético é o PT e o resto é farinha do mesmo saco". Por isso, quando hoje os petistas reclamam das cobranças, deviam reclamar de si mesmos. Eles se tornaram diferentes dos outros partidos por decisão própria.
Por que a ética é um valor tão desprezado na vida pública?
Não abro mão dessa tese: o Brasil é um Estado absolutista anacrônico. Alguns juristas chamam o Estado de imperial, com um Executivo fortíssimo, retirando a autonomia dos municípios e Estados. Com uma concentração tributária obscena. Tudo isso reforça a cultura do "é dando que se recebe". No Império, liberais e conservadores dependiam, igualmente, do lápis vermelho do imperador Pedro II, que controlava as coisas com o poder moderador. Quando se tem essa perda de autonomia, que programa político pode ser defendido, levado à prática? Nenhum. É proibido no Brasil ser oposição. Se discordar, não tem acesso aos recursos. Sem recursos, não leva obras para a sua região. Sem obras, não é reeleito, fica fora do jogo. Esse "é dando que se recebe", essa ausência de partidos reais, tem como origem essa estrutura do Estado brasileiro que é supercentralizada.
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"Brasil é um Estado absolutista anacrônico". Entrevista com Roberto Romano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU