31 Julho 2012
A comunidade internacional não pode se resignar a fazer da Síria o trágico palco de uma imensa carnificina repressiva e, além disso, mesmo no caso de uma efetiva queda do regime em Damasco, de uma longa e sangrenta guerra civil entre sunitas e xiitas na costa mediterrânea. Para as Igrejas, naturalmente, isso seria uma condenação à morte.
A opinião é do jesuíta Paolo Dall'Oglio, fundador do mosteiro de Deir Mar Musa, na Síria. O artigo foi publicado na revista italiana Popoli, 27-07-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Nas informações sobre a Síria oferecidas nestas últimas e dramáticas semanas por alguns meios de comunicação católicos, fala-se muito de reconciliação e citam-se os testemunhos de eclesiásticos importantes e de religiosas.
Efetivamente, em Homs, alguns sacerdotes exemplares tentaram estabelecer comitês de base de reconciliação, musalaha, para restabelecer a boa vizinhança mortalmente ferida pelos terríveis eventos dos últimos meses. Isso aconteceu em colaboração com representantes muçulmanos da base e com pessoas que se encontram tanto nas zonas sob controle dos revolucionários como nas sob controle do regime, ou em zonas mistas, isto é, onde uma fachada de legalidade se compõe com uma substancial participação da população na revolução.
Essa iniciativa foi "recuperada" pelo regime e se tornou uma forma de colaboracionismo, em que, em nome da reconciliação, quer-se simplesmente voltar ao passado mitológico da Síria da harmonia inter-religiosa garantida pelo regime de Assad. Quase como se não se chorassem as dezenas de milhares de mortos, presos, torturados etc. O que infelizmente não agrada da atitude de alguns eclesiásticos (os únicos que falam em voz alta, visto que, senão, sofreriam o mesmo tratamento que o meu ou pior) é a negação dos imensos sofrimentos desse povo oprimido por uma ditadura que reinou sistematicamente através do terror da tortura, da prisão e de todos os outros tipos de vexação e de adoutrinamento.
Essa amnésia é intolerável e povo sírio não poderá perdoá-la facilmente. Seriam necessárias páginas e páginas para que eu pudesse contar-lhe sobre os testemunhos diretos que eu recolhi sobre as horríveis injustiças desse sistema para com as pessoas e as famílias. O fato de ele ter sido bom para se promover como herói das minorias, dos muçulmanos moderados e dos promotores do Estado secular, ao mesmo tempo em que se comportava como terrorista no Líbano e enviava os terroristas ao Iraque e a outros lugares, não deveria cegar os pastores do rebanho de Jesus de Nazaré.
A teoria negacionista, que vê no processo sírio em curso nada mais do que um projeto islamista terrorista e, na repressão, nada mais do que uma campanha antiterrorista normal, é malvada em sua raiz, por ser consciente e intencionalmente mentirosa. Nenhum cálculo "cristão" pode justificar que eclesiásticos, homens e mulheres, tornem-se o seu megafone ou o seu sutil instrumento de difusão, especialmente utilizando o complexo islamofóbico de um vasto setor da opinião ocidental. Talvez interesse saber que sírios de todas as obediências (alauítas, sunitas, cristãos, comunistas, curdos etc.) são ativos e solidários, tanto no país quanto no exterior, para derrubar esse regime criminoso e protegido por solidariedades criminosas regionais e internacionais.
Neste momento, eu estou no Canadá. Na quinta-feira, me encontrei com o ministro das Relações Exteriores juntamente com uma delegação da Resistência Síria. Propus que o Canadá retome obstinadamente os fios de uma iniciativa diplomática voltada a frear a guerra civil na Síria antes que seja realmente tarde demais. A comunidade internacional não pode se resignar a fazer da Síria o trágico palco de uma imensa carnificina repressiva e, além disso, mesmo no caso de uma efetiva queda do regime em Damasco, de uma longa e sangrenta guerra civil entre sunitas e xiitas na costa mediterrânea. Para as Igrejas, naturalmente, isso seria uma condenação à morte.
Por outro lado, a Síria não pode ser o lugar de confronto armado entre interesses geoestratégicos atlânticos e russos. Daí a necessidade de propor para a Síria um estatuto de neutralidade semelhante ao da Áustria e ao da Finlândia depois da Segunda Guerra Mundial. A mutação democrática, absolutamente improcrastinável e inadiável, deve ocorrer com a proteção e a ajuda das Nações Unidas. Hoje, é preciso proteger os sunitas das horríveis vexações dos shabbiha – os milicianos de maioria alauítas, mas também cristãos – de Bashar al-Assad, mas amanhã será necessário proteger as suas famílias e os seus bairros e vilarejos das vinganças daqueles extremistas que a irresponsabilidade internacional favoreceu. Certamente, deve-se, desde hoje, falar de musalaha, como eu faço incansavelmente desde o início da Primavera Árabe. A condição para a reconciliação é o restabelecimento da justiça e o respeito pelos direitos humanos, e depois a queda desse regime infinitamente desacreditado.
Naturalmente, não se trata de assumir uma ingênuo atitude acrítica com relação ao Islã, na Síria e em outros lugares. É sacrossanto denunciar as violências contra os cristãos na Nigéria, no Paquistão, em toda parte. É necessário se comprometer, juntamente com os muçulmanos, para combater os extremismos, especialmente se armados (com armas convencionais ou não, de Estado ou não) e trabalhar duramente para a reabilitação e a re-educação dos jovens que caíram nas armadilhas extremistas de qualquer cor e tendência.
Temos muitíssimo a fazer para que a musalaha ocorra na Síria e rezamos para que essa prova não se prolongue mais e a chaga não gangrene ainda mais.
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Síria: compromisso pela paz e amnésias. Artigo de Paolo Dall'Oglio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU