O dinheiro exalta o teatro das paixões. Artigo de André Orléan

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

Por: André | 28 Julho 2012

“Ora, representar a crise é também tornar visível os mecanismos que produzem esta situação. Nesta área, a dificuldade é grande, porque a economia capitalista se apresenta mascarada: a acumulação de mercadorias é apenas um dos aspectos da sua dinâmica, a mais imediata. Igualmente importante é a circulação dos signos monetários e financeiros, porque são eles que fornecem a chave dos encadeamentos recessivos”, escreve André Orléan, em artigo publicado no jornal francês Le Monde, 19-07-2012. A tradução é do Cepat.

André Orléan é diretor de estudos da EHESS e presidente da Associação Francesa de Economia Política.

Eis o artigo.

O capitalismo é uma economia violenta e anárquica que tem por princípio o desejo ilimitado de enriquecimento dos indivíduos. Sua fórmula canônica é muito simples: dinheiro que produz mais dinheiro. Tal economia é feita de desequilíbrios. Sua trajetória no longo período consiste em uma sucessão desordenada de expansões e recessões.

A crise é este ponto paradoxal em que a busca do lucro deixa de ser uma força motriz e provoca o empobrecimento do maior número de pessoas, em decorrência das perdas de emprego ou da diminuição dos salários. É o que hoje a população grega conhece melhor que qualquer outra. Nesse sentido, não é difícil representar a crise econômica.

Muitos artistas, diretores de cinema ou escritores nos mostraram com talento o que é a vida cotidiana das pessoas durante estas recessões. Pensamos em As vinhas da ira, ou, mais recentemente, filmes/documentários, como Cleveland contra Wall Street, que nos faz descobrir a desolação dos subúrbios americanos entregues aos despejos, após a crise dos subprimes. No entanto, esta descrição nos oferece apenas um dos aspectos da crise, ou seja, a experiência das populações. Ela deixa na sombra as razões para o empobrecimento geral.

Ora, representar a crise é também tornar visível os mecanismos que produzem esta situação. Nesta área, a dificuldade é grande, porque a economia capitalista se apresenta mascarada: a acumulação de mercadorias é apenas um dos aspectos da sua dinâmica, a mais imediata. Igualmente importante é a circulação dos signos monetários e financeiros, porque são eles que fornecem a chave dos encadeamentos recessivos.

No entanto, isso não é fácil perceber. Por exemplo, entre o ponto mais alto em 2007 e sua diminuição em 2009, metade do mundo da capitalização bursátil mundial desapareceu, ou seja, uma perda de 25 trilhões de dólares. É, certamente, uma colossal destruição de valores, equivalente à metade da riqueza produzida em um ano em todo o mundo, ou dez vezes o produto interno bruto da França, mas não é tão evidente perceber o significado nem o seu alcance.

Visualizar uma curva sobre uma tela de computador é extremamente insuficiente. Trata-se de uma perda fictícia ou real? Não devemos acreditar que essa dificuldade poderia ter se originado na natureza racional do número, o fato de que nós, de repente, abandonamos o mundo dos afetos para entrar no mundo do cálculo. Nada mais falso do que isso. É preciso dizer, ao contrário, que o mundo da moeda e das finanças está saturado de afetos.

Em nenhum outro lugar, o desejo de enriquecimento se expressa de uma forma tão poderosa. O problema está no significado deste desejo, sua natureza enigmática. Na verdade, supõe-se que os indivíduos não desejam signos de riqueza, mas de mercadorias reais. Aí está toda a questão da representação da crise das economias de mercado: como representar o desejo de dinheiro por si só e suas brutais transformações? Como representar um desejo tão estranho, que não se assenta sobre o gozo de bens concretos, mas sobre um poder abstrato? Com efeito, reter a moeda permite que seu dono fique na expectativa, sem ter que escolher se quer consumir ou investir. Dizemos, então, no vocabulário econômico, que é “líquido”.

Quando os atores, como atualmente os bancos europeus, sentem uma forte desconfiança para com a economia real, procuram estar líquidos à espera de que as incertezas se dissipem. Neste sentido, a preferência pela liquidez é um barômetro da desconfiança dos investidores em relação à produção e seus perigos.

Mas quanto mais a maioria dos atores se refugiar na liquidez, tanto mais a atividade produtiva é pequena por falta de investimentos e de consumo. Assim, o 1 trilhão de euros que o Banco Central Europeu (BCE) emprestou aos bancos no começo de 2012 se transformou apenas parcialmente em créditos para a economia. Uma grande parte acabou em contas no BCE. Este é o mecanismo da crise. Se o desejo de enriquecimento repousasse unicamente sobre as mercadorias, alimentaria constantemente a procura de novos produtos, de tal sorte que nunca conheceríamos recessões. É a possibilidade oferecida pela liquidez de permanecer fora da esfera da produção de mercadorias que torna as crises possíveis. É isso que deve ser compreendido.

No fundo, o economista ou o artista encontram a mesma dificuldade quando se veem diante da necessidade de representar a crise. Eles precisam mostrar como uma abstração, o valor econômico, toma posse dos indivíduos, os assujeita à sua lógica: o desejo por dinheiro. Deve-se observar que esta tarefa, a de tornar o dinheiro desejável para fazer sobreviver a ordem mercantil, foi, em primeiro lugar, das sociedades mercantis em si. Basta ver a maneira como foram concebidas as notas ou as peças. Nelas estão inscritos símbolos poderosos, capazes de provocar sentimentos fortes, porque a moeda deve imperativamente aparecer como legítima.

Assim, a economia trata de representações, símbolos, afetos coletivos. A racionalidade fica em segundo plano. Os 15% de rendimentos exigidos pelos acionistas não são o resultado de uma análise racional. Trata-se antes de um projeto coletivo que visa mobilizar as energias dos proprietários em torno de uma certa concepção de valor econômico, com a finalidade de fazê-la prevalecer. Compreender o capitalismo e sua crise significa atualizar este jogo de representações. Neste plano, os economistas podem aprender muito com os artistas quando estes descrevem a lógica das paixões e das crenças.