Por: Cesar Sanson | 05 Janeiro 2012
O ex-guerrilheiro sandinista Daniel Ortega, reeleito presidente da Nicarágua no dia 6 de novembro, faz o governo mais neoliberal desde os anos 1990. A opinião é de Mónica Baltodano, deputada federal pelo Movimento Resgate do Sandinismo e ex-comandante da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Em entrevista por correio eletrônico à Dafne Melo do Brasil de Fato, 04-01-2012, ela afirma que apesar da retórica muitas vezes esquerdizante, Ortega conduz uma política claramente voltada para o livre mercado.
Eis a entrevista.
Como o atual governo Ortega poderia ser caracterizado? Sua primeira gestão, na década de 1980, já apontava para as características que têm hoje?
Em 1980, Daniel era parte da condução coletiva de uma revolução. Era a expressão institucional do governo revolucionário que chegou ao poder pela via armada destruindo todos os aparatos da ditadura de Somoza. Então, foram realizadas verdadeiras transformações progressistas, como as nacionalizações do sistema bancário, recursos naturais – que estavam nas mãos de companhias estadunidenses – e comércio exterior e a reforma agrária. Latifúndios de somozistas e daqueles que tinham a terra ociosa foram expropriados. Promoveu-se a participação genuinamente democrática do povo e a igreja popular floresceu em todas as comunidades. O presidente de então era apenas um dirigente mais da revolução, e suas decisões obedeciam a definições adotadas em discussão com outros setores dessa revolução. Não tinha poderes ilimitados e unipessoais.
O que acontece hoje não guarda nenhuma semelhança. Embora se proclame como a segunda etapa da revolução que se autoqualifica como cristã, socialista e solidária, as decisões principais vão na direção contrária. Na verdade, vem-se consolidando o regime político liberal e a economia de mercado. O regime é o mais neoliberal que tivemos desde os anos 1990: utilizando-se do controle absoluto do Estado, tem terminado de entregar as melhores riquezas do país às grandes corporações transnacionais. Sem nenhum pudor, o governo se ufana do respaldo que recebe da cúpula empresarial (o Cosep) e do aval e aplausos do FMI através de programas e fluxos de cooperação. Tampouco há contradições reais com o governo estadunidense, que, até agora, privilegia as ações – economia de livre mercado com ritual eleitoral – em detrimento da retórica orteguista. Há alguns dias, o principal assessor econômico do presidente Ortega, Bayardo Arce, confessou: “apesar da retórica política, o manejo da administração da economia vem sendo muito mais prático e muitíssimo menos ideológico do que no passado, porque a economia no governo de Ortega está mais aberta do que as economias de livre mercado dos três governos anteriores”. Por isso, caracterizamos o atual governo como demagógico e mentiroso, que possui, às vezes, uma retórica esquerdizante e governos amigos de esquerda, mas mantém uma prática totalmente neoliberal. E tudo isso combinado com autoritarismo, controle absolutista de todos os poderes, culto à personalidade e manipulação oportunista das atrasadas crenças religiosas do povo pobre da Nicarágua.
Como entender sua popularidade, demonstrada na vitória eleitoral?
Os três governos neoliberais anteriores afundaram o povo na desesperança. Nunca fizeram nada pelos pobres no segundo país mais pobre da América Latina. Ortega aprendeu rapidamente que os votos dos pobres são maioria. O governo bolivariano da Venezuela lhe vem facilitando quase 500 milhões de dólares anuais, o equivalente a 7% do PIB nicaraguense. Uma soma enorme que Ortega usa a seu critério e sem controle de ninguém. Esses fundos lhe permitem implementar programas assistenciais que, embora não signifiquem transformações sustentáveis nem estruturais na vida das pessoas, vêm aliviando os efeitos da exclusão social. Os mais pobres o agradecem depois de 16 anos de indiferença total. Isso vem permitindo a ele conseguir muitos mais votos.
Qual é a força dos partidos da direita que fazem oposição a Ortega hoje?
A principal força da direita, o PLC, fez um pacto com Daniel Ortega em 1999 e continua sendo seu sócio privilegiado. Isso provocou uma ruptura e favoreceu o surgimento de outra força liberal mais de direita ainda, liderada pelo banqueiro Eduardo Montealegre. Ela se apresentou na chapa de um tradicional partido antisomozista chamado Partido Liberal Independente (PLI). Essas duas forças vêm crescendo, mas nenhuma delas tem verdadeiras propostas para os problemas mais urgentes do país. Seu discurso vem se reduzindo a oferecer democracia, separação de poderes, transparência e continuidade das políticas assistenciais de Ortega.
Como entender a participação da Nicarágua em algumas das experiências progressistas da região, como a Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas) e outras tantas cooperações com a Venezuela?
Em 2005, a FSLN [Frente Sandinista de Libertação Nacional] privatizada pelo presidente Ortega deu os votos no parlamento para aprovar a ratificação do Cafta (tratado de livre comércio entre a América Central e Caribe com os Estados Unidos). Nós vemos positivamente que a Nicarágua forme parte da Alba, mas as políticas favoráveis do bloco à Nicarágua não vêm contribuindo para a ruptura do modelo hegemônico capitalista. Pelo contrário. Hoje podemos dizer que o grande capital se sente totalmente livre, porque enquanto seus negócios se ampliam, não paga impostos e é beneficiado com exonerações fiscais. Ortega manteve intacta a política fiscal dos governos neoliberais. A política salarial é aprovada pelos empresários e o FMI. Mas o governo dá uma bolsa – que está fora do orçamento – aos trabalhadores com menores salários (o equivalente a menos de 30 dólares ao mês) com fundos da Alba. Consequentemente, não há lutas sociais de nenhum tipo. A Nicarágua é um paraíso para os capitalistas porque não há protestos, greves ou lutas sociais. Embora nos cause muito desgosto, a generosa ajuda da Venezuela e da Alba contribuem para amenizar as consequências nefastas das políticas neo-liberais. Os empresários nunca estiveram tão contentes. Estamos com a Alba e desejamos seu fortalecimento na América Latina e a inserção da Nicarágua nela. Mas é ridículo e até um insulto fazer crer que na Nicarágua esteja sendo construída uma revolução socialista.
Como a oposição à esquerda se posiciona em relação às eleições? Quais são as propostas dos movimentos sociais e outras organizações de esquerda?
O orteguismo controla o Conselho Supremo Eleitoral e todas as instituições do Estado. Ele tem impedido a conformação de novas forças eleitorais que tenham carimbo sandinista ou de esquerda. Sua tática é tão clara como descarada: por um lado, desenvolve sua estratégia de pactos com setores da direita liberal, conservadores, ex-guardas somozistas, ex-contras, democratas cristãos e setores religiosos reacionários. Por outro, impede a qualquer preço o surgimento de forças progressistas, de origem sandinista, e sua legalização como partido político. Com isso, busca eliminar todo tipo de concorrência progressista e conservar pela força o monopólio da “representação” de posições de esquerda. Como já vimos, de esquerda eles só têm a retórica. O orteguismo quer que a esquerda se una e se desfaça dentro de espaços liderados e representados por personagens da direita, adiando assim a construção de forças próprias. Foi isso o que aconteceu nessas eleições. Consequentemente, o Partido Renovador Sandinista, de centro-esquerda, uniu-se a uma força encabeçada pela direita, com o argumento de que as eleições eram entre a democracia e a ditadura. Por outro lado, essas eleições estão totalmente infectadas de ilegalidades e viciadas de nulidade. Primeiro, porque o presidente Ortega possui dupla proibição constitucional para ser candidato. Está proibido de exercer a presidência por mais de dois mandatos e se postular para o período seguinte (reeleição contínua). Segundo, porque na Nicarágua começou a se praticar de maneira repetida a fraude. Nas eleições municipais de 2008, o orteguismo, usando o controle do CSE, roubou 40 das 153 municipalidades do país. Por essas razões, pelo resgate do sandinismo, não participamos de nenhuma das forças eleitorais e chamamos o voto de protesto dizendo: enquanto existirem candidatos e magistrados ilegais e corruptos; enquanto não exista pluralismo político e alternativas de esquerda continuem a ser excluídas; e enquanto tudo esteja amarrado para se realizar uma fraude, não contem comigo para esta farsa!
A Nicarágua é um dos países com os mais altos índices de pobreza do continente. Quais seriam os principais desafios de um governo popular, ou seja, quais são as principais demandas do povo nicaraguense?
O principal desafio continua sendo a pobreza extrema que submete cerca de metade da população. É preciso criar fontes de trabalho, fontes sustentáveis e dignas. Não basta promover as instalações de maquiladoras que vão embora quando veem melhores oportunidades em outros locais. É necessário melhorar a produção camponesa, mediana e pequena como geradora de crescimento e emprego. Por isso, é fundamental a criação de um banco de desenvolvimento. Essa foi uma promessa não cumprida. A Nicarágua não tem um banco estatal de desenvolvimento. Outro desafio é a educação. É preciso destinar muito mais recursos para o setor. Outros países tão pobres como a Nicarágua têm de 8 a 9% do PIB destinado à educação primária e secundária. Nós continuamos com 3%. Nossa economia depende de matérias-primas, máquinas, remessas familiares e cooperação externa. O modelo fortalecido por Ortega reforça a concentração de riqueza. É a conhecida lógica do capital. Necessitamos começar a entender que, levados pela mão e dirigidos pelo FMI, pelo Banco Mundial e o capital estrangeiro, nunca haverá desenvolvimento e justiça social.
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“O modelo fortalecido por Ortega reforça a concentração de riqueza” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU