11 Dezembro 2013
Esse pontífice não é marxista – ele é um católico que entende como a economia molda a cultura. Sem minimizar a seriedade com que temos de encarar questões como aborto, casamento gay e liberdade religiosa, esses são aspectos distintos de uma abrangente "globalização da indiferença" descrita por Francisco.
A opinião é do cientista político norte-americano Patrick J. Deneen, professor da Notre Dame University, em Indiana, EUA. Ele também lecionou na Georgetown University, a mais antiga universidade jesuíta dos EUA entre 2005 e 2012. É autor de diversos livros e artigos, entre os quais The Odyssey of Political Theory (Ed. Rowman and Littlefield, 2000) e Democratic Faith (Ed. Princeton, 2005).
O artigo foi publicado no sítio The American Conservative, 05-12-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Desde o lançamento da Evangelii Gaudium tem havido inúmeros artigos e comentários sobre as partes da exortação apostólica do Papa Francisco que tratam de economia. Alguns dos comentários têm sido francamente bizarros, como os feitos por Rush Limbaugh, ao chamar o papa de marxista, ou de Stuart Varney, que acusou Francisco de ser um neossocialista. Os conservadores norte-americanos resmungaram, mas denunciaram devidamente que a mídia distorceu o Papa Francisco quando ele parecia vacilar sobre a homossexualidade, mas suas críticas ao capitalismo foram além da linha, e agora vemos o papa ser criticado e até mesmo denunciado de quase todos os púlpitos midiáticos de direita sobre a Terra.
Não muito abaixo da superfície de muitas dessas críticas se ouve o seguinte refrão: por que o papa não pode simplesmente voltar a falar sobre o aborto? Por que não podemos voltar aos bons velhos tempos do Papa João Paulo II ou de Bento XVI e falar 24 horas por dia, sete dias por semana, 365 dias por ano sobre sexo? Por que Francisco não tem a decência de se limitar a falar de Jesus e gays, evitando a grosseria de discutir economia em uma sociedade de economia mista, um assunto sobre o qual ele não tem experiência ou competência?
Existem versões sutis e ousadas desse fundamento. No site The Catholic Thing, Hadley Arkes escreveu um artigo caracteristicamente elegante em que observa que Francisco, geralmente, está correto sobre ensinamentos sobre casamento e aborto, mas aborda esses assuntos muito breve e superficialmente, e com diversas ressalvas indesejáveis. Ao mesmo tempo, Francisco continua falando longamente sobre as desigualdades e os danos causados por economias de mercado livre, o que faz Hadley aconselhar o papa a consultar Michael Novak da próxima vez. O resultado: ser tão breve quanto o discurso de Gettysburg no que concerne à economia, e loquaz como Edward Everett quando se trata de erotismo.
No lado impetuoso, há Larry Kudlow, que quase tem um ataque quando se trata de sua discordância com o Papa Francisco, acusando-o de abrigar simpatias com a Rússia comunista e não apreciar suficientemente Ronald Reagan, Margaret Thatcher e o Papa João Paulo II. Reveladoramente, Kudlow aconselha o papa a se concentrar na "reforma moral e religiosa" e a "insistir" em "moral, espiritualismo e religiosidade", e deixar de falar sobre assuntos econômicos. Da mesma forma, o juiz Napolitano, em resposta a um desafio de Stuart Varney sobre por que o papa está falando sobre economia, respondeu: "Eu gostaria que ele se concentrasse em fé e moral, onde ele é muito sólido e tradicional".
Todos esses comentaristas estão afirmando: nós abraçamos a doutrina católica quando ela se preocupa com "fé e moral" – quando ela denuncia o aborto, se opõe ao casamento gay, e incita à caridade pessoal. Esse é o catolicismo que tem sido aceitável em uma conversa educada. Esse é um catolicismo despojado que não põe em causa os artigos fundamentais da fé econômica.
E verifica-se que essa versão do catolicismo é uma ferramenta útil. É precisamente essa parte do catolicismo que é aceitável para aqueles que controlam a narrativa da direita, porque não coloca realmente em risco o que é mais importante para aqueles que dirigem a república: a manutenção de um sistema econômico que pressupõe a extração ilimitada, a promoção de desejos infinitos e a criação de um fosso cada vez maior entre vencedores e perdedores, que é encoberto por mantras sobre favorecer a igualdade de oportunidades.
Um aparato de financiamentos maciços apoia ideais católicos conservadores, que por sua vez apoiam uma série de causas, desde que elas se concentrem exclusivamente em questões que se relacionem com a sexualidade humana, seja aborto, casamento gay ou a liberdade religiosa (que, para ser franco, está intimamente ligada na sua forma atual com preocupações sobre o aborto). Acontece que esses fundos são um bom investimento: "fé e moral" nos permitem supor a superioridade moral e ocupam os conservadores sociais, enquanto nós damos risada sobre o salvamento bancário.
Os contratempos da direita com o Papa Francisco trouxeram à tona o que raramente é mencionado de forma educada: os católicos mais visíveis e famosos que lutam em nome de causas católicas nos EUA concentram-se quase exclusivamente sobre questões sexuais (como o próprio Papa Francisco parecia estar apontando e denunciando em sua entrevista à revista America), mas têm sido geralmente silenciosos a respeito de uma tradição secular da doutrina social e econômica da Igreja.
A elite meritocrática e econômica têm sido a beneficiária principal desse silêncio: os mais sérios sobre o catolicismo – e, portanto, que poderiam suportar a poderosa tradição de pensamento sobre a economia que evita tanto os pressupostos individualistas radicais do capitalismo, assim como o coletivismo do socialismo – gastaram as suas energias combatendo as guerras culturais e sexuais, mesmo quando a máquina dirigente republicano-democrata apenas mudou o assento do condutor da limusine que lhes conduz até códigos postais cada vez mais exclusivos.
Nos últimos meses, quando se discute sobre o Papa Francisco, a imprensa de esquerda tem aproveitado todas as oportunidades para avançar em uma "narrativa de ruptura", alegando que Francisco está repudiando essencialmente quase tudo que os papas João Paulo II e Bento XVI representavam. A imprensa de esquerda e os comentaristas louvaram Francisco como o anti-Bento XVI depois da sua entrevista improvisada no avião ("Quem sou eu para julgar?") e da longa entrevista com a revista jesuíta America. No entanto, nessas mais recentes reações da imprensa e de comentaristas de direita a Francisco, testemunhamos um amplo acordo de muitos católicos a respeito da "narrativa de ruptura", desejando a volta dos bons velhos tempos de João Paulo II e Bento XVI.
Mas não houve nenhuma ruptura – nem aquela desejada pela esquerda, nem aquela temida pela direita. O Papa Francisco tem sido inteiramente consistente com os dois papas anteriores que hoje são, alternativamente, odiados ou amados, já que os Papas João Paulo II e Bento XVI falaram com igual força e poder contra as depredações do capitalismo (João Paulo II na encíclica Centesimus Annus, e Bento XVI na encíclica Caritas in Veritate).
Mas essas encíclicas – mais autoritárias do que uma exortação apostólica – não provocaram a mesma reação que as críticas de Francisco ao capitalismo. Isso ocorre porque a narrativa dominante sobre João Paulo II e Bento XVI os tinha atrelados como republicanos. Para a esquerda, eles eram velhos conservadores obcecados com questões sexuais; para a direita, tradicionalistas sólidos que se importavam com os principais ensinamentos morais do catolicismo. Ambos os lados ignoraram amplamente os seus ensinamentos sociais e econômicos, tão focados estavam em sua ênfase na "fé e moral". Todos esqueceram que, para os católicos, a economia é um ramo da filosofia moral.
Eu acho que é por causa da "narrativa de ruptura" da esquerda que a direita está em pânico com as críticas de Francisco ao capitalismo. Essas críticas ao Vaticano – de repente salientes de uma forma que não eram quando proferidas por João Paulo II e Bento XVI – precisam ser cortadas pela raiz antes que causem qualquer dano. Está evidente que o ensinamento católico tem visto um forte vínculo entre o individualismo radical e o egoísmo no coração do capitalismo e as práticas sexuais liberacionistas, entendendo que eles têm como premissa os mesmos pressupostos antropológicos (se você não acredita nos católicos com relação a isso, basta ler Ayn Rand).
Enquanto Hadley Arkes lamenta que o Papa Francisco não falou mais detalhadamente sobre assuntos sexuais, se alguém ler suas críticas com cuidado sobre as depredações do capitalismo, percebe-se que ele usa as mesmas frases com as quais ele criticou o aborto, ou seja, que o aborto é apenas uma manifestação de "uma cultura do descartável", uma expressão usada também na Evangelii Gaudium na sua crítica ao capitalismo (n. 53).
Se alguém acompanha atentamente as críticas de Francisco aos efeitos da economia sobre os mais fracos e indefesos, não se pode deixar de perceber também que ele está falando do nascituro da mesma forma quanto daqueles que são "perdedores" em uma economia que favorece os fortes. Como João Paulo II e Bento XVI antes dele, Francisco discerne a continuidade entre uma economia do "descartável" e uma visão "descartável" da vida humana. Ele vê a profunda conexão subjacente entre uma economia que destaca a autonomia, a escolha infinita, as conexões frouxas, a excitação constante, o utilitarismo e o hedonismo, e uma cultura sexual que tolera o “ficar” aleatório, o aborto, o divórcio e a redefinição do casamento baseado no sentimento, e em que os fracos – crianças, neste caso, e aqueles na escala socioeconômica mais baixa que estão sofrendo uma devastação completa da família – são uma reflexão tardia.
A divisão da plenitude do pensamento católico nos EUA, em grande parte, tem o tornado tratável em uma nação que sempre viu os católicos com suspeita. Os EUA de Locke domesticaram o catolicismo não pela opressão (como Locke pensou que seria necessário), mas dividindo e conquistando – permitindo e até incentivando a promoção de seus ensinamentos sexuais, embora despojado de seus ensinamentos sociais mais amplos. Isso controlou o poder desses ensinamentos, direcionando a energia dos conservadores sociais exclusivamente para as guerras sexuais da cultura, deixando praticamente intocada uma economia voraz que diariamente cria poucos vencedores e muitos perdedores, apoiando uma cultura de liberdade sexual e crianças “descartáveis”.
Sem minimizar a seriedade com que temos de encarar questões como aborto, casamento gay e liberdade religiosa, esses são aspectos distintos de uma abrangente "globalização da indiferença" descrita por Francisco. No entanto, temos sido treinados para tratá-los como um conjunto de questões políticas autônomas que podem ser resolvidas por uma ou duas nomeações no Supremo Tribunal.
Francisco – como João Paulo II e Bento XVI antes dele – perturbou o “regime”. Rush e sua turma não vão se render sem lutar. Se ao menos eles conseguissem fazer o maldito marxista falar sobre sexo...
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Alguém pode fazer esse papa calar a boca? Artigo de Patrick J. Deneen - Instituto Humanitas Unisinos - IHU