Por: André | 04 Dezembro 2013
Mais autonomia às Conferencias Episcopais Nacionais. E mais espaço para as diversas culturas. Os dois pontos nos quais a Evangelii Gaudium de distingue majoritariamente do magistério dos papas anteriores.
Fonte: http://bit.ly/1jgxIuF |
A reportagem é de Sandro Magister e publicada no sítio Chiesa.it, 03-12-2013. A tradução é de André Langer.
Na longuíssima Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, publicada há uma semana, o Papa Francisco deu a entender que quer distinguir-se ao menos em dois pontos dos Papas que o precederam.
O primeiro destes pontos é também aquele que teve maior repercussão nos meios de comunicação. Remete tanto ao exercício do primado do Papa como aos poderes das Conferências Episcopais. O segundo ponto remete à relação entre o cristianismo e as culturas.
1. Sobre o papado e as Igrejas nacionais
Em relação ao papel do Papa, Jorge Mario Bergoglio reconhece em João Paulo II o mérito de ter aberto o caminho para uma nova forma de exercício do primado. Mas lamenta que “avançamos pouco neste sentido” e promete avançar mais decididamente rumo a uma forma de papado “mais fiel ao sentido que Jesus Cristo quis dar-lhe e à necessidade atual da evangelização”.
Mas, mais que sobre o papel do Papa – tema sobre o qual Francisco permanece impreciso e assim até agora agiu concentrando em si o máximo das decisões – é sobre os poderes das Conferências Episcopais que a Evangelii Gaudium permite pressagiar um giro.
Escreve o Papa, no parágrafo 32 do documento: “O Concílio Vaticano II afirmou que, à semelhança das antigas Igrejas patriarcais, as conferências episcopais podem aportar uma contribuição múltipla e fecunda, para que o sentimento colegial leve a aplicações concretas. Mas este desejo não se realizou plenamente, porque ainda não foi suficientemente explicitado um estatuto das conferências episcopais que as considere como sujeitos de atribuições concretas, incluindo alguma autêntica autoridade doutrinal. Uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária”.
Em uma citação, Francisco remete a um Motu Proprio de João Paulo II, de 1998, precisamente sobre a “natureza teológica e jurídica das Conferências Episcopais”.
Mas, quando se lê esse documento, descobre-se que este reconhece às Conferências Episcopais uma função exclusivamente prática, cooperativa, de simples corpo auxiliar intermediário entre, de um lado, o colégio de todos os bispos do mundo junto com o Papa – única “colegialidade” declarada e teologicamente fundada –, e, de outro, o bispo particular com autoridade sobre sua diocese.
Sobretudo, o Motu Proprio Apostolos Suos limita fortemente essa “autêntica autoridade doutrinal” que o Papa Francisco diz querer dar às Conferências Episcopais. Prescreve que se quiserem emitir declarações doutrinais, devem fazê-lo com a aprovação unânime e em comunhão com o Papa e o conjunto da Igreja, ou ao menos com uma “maioria qualificada” com o prévio controle e a autorização da Santa Sé.
Um perigo contra o qual o Motu Proprio Apostolos Suos previne é que as Conferências Episcopais emitam declarações doutrinais contraditórias entre si e com o magistério universal da Igreja.
Outro risco que quer conjurar é que se criem separações e antagonismos entre Igrejas particulares nacionais e Roma, como aconteceu no passado na França com o “galicanismo” e como aconteceu entre os ortodoxos com algumas Igrejas nacionais autocéfalas.
Esse Motu Proprio tem a assinatura de João Paulo II, mas deve sua instalação a quem era o seu prefeito da Doutrina digno de confiança: o cardeal Joseph Ratzinger.
E Ratzinger – sabia-se – era há muito tempo um crítico dos superpoderes que algumas Conferências Episcopais haviam atribuído a si mesmas, sobretudo em alguns países, entre os quais se encontrava a sua Alemanha.
Em sua entrevista-bomba de 1985, editada com o título “Informe sobre a fé”, Ratzinger se opôs resolutamente a que a Igreja católica se convertesse em “uma espécie de federação de Igrejas nacionais”.
Em vez de suscitar “um decidido relançamento do papel do bispo”, como queria o Concílio Vaticano II, as Conferências Episcopais nacionais – acusava – “sufocaram” os bispos com suas pesadas estruturas burocráticas.
E afirma também: “É muito bonito decidir sempre conjuntamente”, mas “a verdade não pode ser criada como resultado de votações”, seja porque “o espírito de grupo, talvez a vontade de viver em paz, ou inclusive o conformismo, conduzem a maioria a aceitar as posições de minorais audazes e determinadas a irem numa direção muito precisa”, ou porque “a busca do ponto de encontro entre as várias tendências e o esforço de mediação dão lugar, muitas vezes, a documentos anódinos e insossos”.
João Paulo II e depois Bento XVI julgavam modesta a qualidade média dos bispos do mundo e da maior parte das Conferências Episcopais. Agiram então em consequência, apresentando-se eles mesmos como guias e modelos e, em alguns casos – como na Itália –, intervindo resolutamente para mudar as lideranças e as orientações em marcha.
Com Francisco, as Conferências Episcopais poderão, pelo contrário, ter maior autonomia. Com os previsíveis contragolpes, do que a Alemanha é um exemplo recente, onde bispos e cardeais de primeiro nível estão se confrontando publicamente sobre as questões mais diversas, desde os critérios de administração das dioceses até a comunhão aos divorciados recasados, neste último caso antecipando e forçando soluções sobre as quais se debruçará o duplo Sínodo dos Bispos de 2014 e 2015.
2. Sobre o cristianismo e as culturas
Quanto ao encontro entre o cristianismo e as culturas, o Papa Francisco insistiu muito, nos parágrafos 115-118 da Evangelii Gaudium, sobre a tese de que “o cristianismo não tem um único modelo cultural”, mas que desde as suas origens “encarna-se nos povos da terra, cada um dos quais tem sua cultura própria”.
Em outras palavras: “A graça supõe a cultura, e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe”.
Com este corolário: “É verdade que algumas culturas estiveram intimamente ligadas à pregação do Evangelho e ao desenvolvimento do pensamento cristão, mas a mensagem revelada não se identifica com nenhuma delas e possui um conteúdo transcultural”.
Ao defender isto, o Papa Bergoglio parece opor-se àqueles que defendem que o anúncio do Evangelho possui uma pureza original em relação a qualquer contaminação cultural. Uma pureza que lhe deveria ser restituída, libertando-o precisamente de seus revestimentos “ocidentais” de ontem e de hoje, para permitir-lhe sempre “inculturar-se” em novas sínteses com outras culturas.
Mas, colocado nestes termos, este vínculo entre o cristianismo e as culturas deixa de lado esse nexo indissolúvel entre a fé e a razão, entre a revelação bíblica e a cultura grega, entre Jerusalém e Atenas, nexo ao qual João Paulo II dedicou a Encíclica Fides et Ratio e sobre o qual Bento XVI focalizou seu memorável discurso em Regensburg, em 12 de setembro de 2006.
Para o Papa Ratzinger, o vínculo entre a fé bíblica e o filosofar grego é “uma necessidade intrínseca” que se manifesta não apenas no fulgurante prólogo do Evangelho segundo São João – “No princípio era o Logos” –, mas já no Antigo Testamento, no misterioso “Eu Sou” de Deus na sarça ardente: “uma contraposição ao mito que tem uma estreita analogia com a tentativa de Sócrates de vencer e ultrapassar o próprio mito”. Este encontro “entre o espírito grego e o espírito cristão” – defendia Bento XVI – “realizou-se de um modo que teve um significado decisivo para o nascimento e a difusão do cristianismo”.
E é uma síntese – argumentava também o Papa Bento – que é preciso defender de todos os ataques que, ao longo dos séculos, até nossos dias, tentaram rompê-la, em nome da “des-helenização do cristianismo”.
Em nossos dias – fazia notar Ratzinger em Regensburg – este ataque se produz “em relação ao encontro com a multiplicidade das culturas”.
“Costuma-se dizer hoje que a síntese com o helenismo na Igreja antiga foi uma primeira inculturação, que não deveria ser vinculante para as demais culturas. Estas deveriam ter o direito de voltar atrás, até o momento anterior a esta inculturação, para descobrir a mensagem pura do Novo Testamento e inculturá-la de novo em seus respectivos ambientes. Esta tese não é simplesmente falsa, mas também rudimentar e imprecisa. [...] Certamente, no processo de formação da Igreja antiga há elementos que não devem integrar-se em todas as culturas. No entanto, as opções fundamentais que dizem respeito precisamente à relação entre a fé e a busca da razão humana fazem parte da própria fé, e são um desenvolvimento conforme com sua própria natureza”.
Sobre este tema capital, a Evangelii Gaudium não necessariamente contradiz o magistério de João Paulo II e de Bento XVI, mas seguramente distancia-se dele.
Também aqui, com uma evidente simpatia por uma pluralidade de formas de Igreja, modeladas sobre as respectivas culturais locais.
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