11 Novembro 2013
"É vergonhoso", disparou Dilma Rousseff dias atrás, ao comentar publicamente o novo Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Referia-se ao seguinte vexame estatístico: o número de estupros no País, em 2012, foi 18,7% maior do que em 2011, superando o número de homicídios dolosos. Mas a reação da presidente, na avaliação de uma de suas ministras mais próximas, a socióloga Eleonora Menicucci de Oliveira, tem mais de indignação do que surpresa. Nesta entrevista a titular da Secretaria de Políticas para as Mulheres fala da obsessão de Dilma com o enfrentamento desse crime e garante: ambas, presidente e ministra, sabiam que o índice viria maior. "Porque as mulheres estão com mais coragem para denunciar. E, além disso, contam com um serviço de atendimento mais organizado e eficaz", resume.
A reportagem é de Laura Greenhalgh e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 10-11-2013.
Ex-presa política e feminista atuante desde os anos 1970, a mineira Eleonora Menicucci tem usado todo o seu arsenal de negociação para implementar o programa governamental Mulher, Viver Sem Violência, articulando parcerias com ministérios, governos estaduais e municipais, tribunais, defensorias públicas, delegacias e movimentos sociais. Admite que está em plena "cruzada nacional" pela adesão formal dos Estados ao programa, valendo-se sempre do apoio da presidente, de quem é amiga de longa data. Um apoio providencial: em agosto deste ano, Dilma sancionou, na íntegra, a Lei 12.845, que determina o atendimento integral à mulher vítima de violência, em toda a rede pública de saúde. Incluída a anticoncepção de emergência.
Com a força moral da Lei Maria da Penha e as bênçãos do Planalto, pode-se dizer que a "ministra das mulheres" anda animada com a dotação de R$ 305 milhões para o programa (volume inédito no campo das políticas oficiais de gênero). Além de dinheiro, ganhou servidores para tocar as diferentes iniciativas da pasta.
E assim Eleonora Menicucci promete atacar em múltiplas frentes: com novo serviço telefônico para denúncia das violações, centros de fronteira, ônibus e até barcos, promete combater a violência contra a mulher, sob todas as formas e em todas as frentes.
Eis a entrevista.
Afinal, o anuário pegou a senhora e o governo de surpresa?
Não fui pega de surpresa. O governo, também não. Sabíamos que, com o uso crescente do Ligue 180, aumentariam as denúncias. O número que surge agora é até subnotificado, por refletir apenas as mulheres que denunciaram os abusos, que procuraram postos de saúde e serviços especializados. Deve haver um número ainda maior, alcançando aqueles estupros que acontecem dentro de casa, com crianças sobretudo. Estupros de pai, padrasto, namorado da mãe, tio, vizinho, enfim, todo esse leque de agressores que se esconde na família ou no entorno dela. Agora, o dado não nos surpreende, porém é alarmante. É lamentável que a sociedade brasileira, em pleno século XXI, ainda se defronte com a barbaridade que é a violência contra as mulheres, com a barbaridade que é o estupro.
Quando o Ligue 180 começou a funcionar? Tem sido uma boa estratégia?
Começou a funcionar em 2005. E tem sido uma estratégia fundamental. Tanto que a novidade, hoje, é que o Mulher, Viver sem Violência fará com que o Ligue 180 se transforme em Disque 180, até dezembro próximo. O serviço crescerá, ganhará mais resolução. No Ligue é possível informar às mulheres onde elas devem procurar atendimento. Já o Disque fará o link com os serviços. A mulher desliga o telefone tendo já falado com a delegacia, o posto, o hospital, isso em todo o território. Não existirá o risco de a vítima ficar na mão ou de o serviço perdê-la de vista. O compromisso do governo é atuar com tolerância zero em relação à violência contra a mulher e à impunidade dos agressores, estejam eles no ambiente doméstico ou não. O lugar deles é na cadeia.
Como tem sido operar com tolerância zero em campo tão minado, ministra?
Esse caminho começou com o presidente Lula, em 2003. Começou com o pacto dos Estados e municípios para o enfrentamento do problema. O pacto permitiu à Secretaria de Políticas para as Mulheres, em ação coordenada com ministérios, descentralizar recursos para o fortalecimento da rede de serviços - delegacias, defensorias, juizados especializados, postos de saúde, hospitais de referência. Quatro anos depois de firmado o pacto, todos os Estados aderiram (ao que se sabe, menos Pernambuco). Nesse ínterim, aprovamos a Lei Maria da Penha, que é uma das mais importantes do mundo, e quem diz isso é a ONU, além de eu achar também. Depois veio o governo da presidente Dilma, trazendo outros avanços por meio do Mulher, Viver Sem Violência. Dou um exemplo: uma das seis ações básicas do programa é a construção da Casa da Mulher Brasileira em todas as capitais, daí a cruzada que venho fazendo pelo Brasil - esta semana vou a Maceió, depois Recife, Natal...
O projeto dessas casas tem sido bem acolhido nos Estados?
Sim, porque estabelecemos parcerias. Os terrenos são da União, que também arca com os dois primeiros anos de custeio da casa, infraestrutura, mobiliário, transporte, internet... Já o governo estadual, ao assinar o termo de adesão, compromete-se com a parte legal, por exemplo, o juiz da Vara, a delegada. E daí o município entra com a assistência social, incluindo psicólogos, educadores, especialistas em trabalho e renda... Serão 26 casas pelo País, 11 delas inauguradas até junho de 2014. Fora isso, abriremos centros nas áreas de fronteira, justamente para enfrentar o tráfico de mulheres e crianças para a exploração sexual.
Centros em Brasileia (AC), Corumbá (MS), Santa do Livramento e Jaguarão (RS), Ponta Porã (MT), Tabatinga (AM). E vamos melhorar os já existentes, na fronteira tripartite (em Foz do Iguaçu), Pacaraima (entre Venezuela e Roraima) e Oiapoque (divisa com a Guiana Francesa). Serão investidos R$ 500 mil em cada um desses centros.
Por que tanto foco nas fronteiras?
Porque temos dados concretos da situação, com base em informações que chegam pelo 180 e pelos Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores. O número de casos de violência contra mulheres dobrou nessas áreas nos últimos dois anos. Em 2012, desbaratamos duas quadrilhas de tráfico e exploração sexual, uma em Salamanca e Ibiza, na Espanha, e outra no Brasil, traficando mulheres e crianças do Sul para o Norte. É algo gravíssimo. Decidimos usar ônibus especiais do programa para atender mulheres no campo e na floresta, dois para cada Estado brasileiro. E, em 2014, serão sete barcos para atuar nas áreas ribeirinhas, nos Estados do Norte. Não tenha dúvida de que todas essas ações, somadas, vão estimular a notificação dessa violência que antes ficava confinada dentro de casa.
Ou seja, os índices devem ainda crescer por mais algum tempo?
Sim, mas o lado bom dessa história é que as mulheres estão conseguindo romper o silêncio. Nosso objetivo é fazer com que as notificações sejam cada vez mais consistentes, as mulheres, cada vez mais determinadas e a sociedade, cada vez mais consciente. É importante destacar o envolvimento dos diferentes setores nessa cruzada nacional: os Tribunais de Justiça, o Ministério Público, que sempre me acompanha nas visitas que faço aos Estados, as Defensorias Públicas, as delegacias, os IMLs (Instituto Médico-Legal) e os hospitais de referência, atuando de forma humanizada. Enfim, a Lei 12.845, que a presidente sancionou sem vetos em 1.º de agosto, garante exatamente isso: o atendimento integral à vítima.
Como a senhora explica essa persistência do crime de estupro no Brasil, um país que tem feito distribuição de renda, com impactos na vida dos mais pobres?
Não há uma relação direta. Claro, a distribuição de renda tem papel estruturante, tanto que a mulher, ao conquistar alguma autonomia econômica, ganha autoconfiança, perde medo. Vemos isso pelas titulares do Bolsa Família. Porém, o estupro ainda é decorrência da casa grande e senzala. Do patriarcado. E digo isso com a experiência de quem estuda há anos essa problemática. Fora isso, a diminuição da desigualdade social ainda não se fez, na mesma medida, em relação à desigualdade de gênero. A mulher ainda é vista como propriedade do homem. E mesmo que tenhamos julgamentos exemplares de agressores, como o Bruno, o Mizael, aquele estupro coletivo em Queimadas, na Paraíba, ainda persiste a visão patriarcal. Vamos nos aprofundar nessa reflexão, já estamos analisando as denúncias do 180, como elas chegam, quais as narrativas das vítimas, qual é a etnografia de vida dessas mulheres.
Quando uma mulher finalmente chega a denunciar o estupro, na maioria dos casos ela terá sido vítima recorrente dessa violência?
Coordenei em São Paulo uma casa de atendimento mantida pela Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp, onde sou professora. Com base nessa experiência e agora com o que vejo do problema, como ministra, entendo que há dois tipos de estupro: o que acontece dentro de casa, por agressor conhecido, portanto, um crime raramente notificado, e o que acontece na rua, por agressor desconhecido, geralmente acompanhado de muita violência física, além do abuso sexual e da humilhação. Esse crime em geral acontece no horário em que a mulher sai para trabalhar, de manhã, entre a casa e o ponto de ônibus, ou na volta do trabalho, à noite. Por isso é tão importante uma cidade iluminada e com boa mobilidade urbana. Tenho dito aos prefeitos com os quais me encontro: a grande vítima de uma cidade escura é a mulher.
Pelos dados do Anuário, os Estados com índices mais altos de estupro são Roraima, Rondônia e Santa Catarina. E o Estado com o menor índice é a Paraíba, onde o célebre forró canta a braveza da "mulher macho, sim senhor". Isso faz algum sentido para a senhora?
Não dá para dizer que é assim porque as paraibanas são mais bravas (ri). O que dá para dizer é que Estados com os mais altos índices são justamente aqueles que não têm secretarias de políticas para as mulheres. Roraima, aliás, acabou de criar a sua, estive lá na semana passada. Já a Paraíba tem duas secretarias fortes, uma estadual, outra municipal. Quando as administrações, em nível municipal, estadual ou federal, estruturam suas políticas de gênero, contando com recursos humanos e financeiros, os efeitos se fazem sentir. Pense que uma mulher estuprada precisa cruzar pelo menos três portas ao reagir: a primeira pode ser o 180. Outra é o pronto-socorro. Se ele não tem enfermeiros e médicos treinados para atender, fica ruim. Hoje já temos 87 hospitais públicos preparados para prestar esse atendimento. E a terceira porta é a delegacia. Veja como é um longo caminho.
Os hospitais estão fazendo a anticoncepção de emergência?
A sanção da presidente foi para isso. O hospital que não quiser fazer o atendimento, alegando objeção de consciência do médico, é obrigado a encaminhar a vítima para outro centro. Assim opera um Estado laico, que toma para si a responsabilidade.
E a impunidade do agressor?
A meu ver, é o lado mais complicado. Temos uma articulação com o Ministério da Justiça, os tribunais, as secretarias de Segurança Pública, delegacias, em todos os Estados. Mas a punição só existe se houver a denúncia. Até porque, sem a denúncia, não há crime. Por isso, o ministro José Eduardo (Cardozo, da Justiça) e eu temos chamado a atenção das mulheres, e da população em geral, para a importância de denunciar. Em termos de faixa etária, o estupro pega todas as idades, de uma criança até uma idosa, como pude constatar quando atendi em São Paulo uma senhora de 70 anos, vítima dessa barbaridade. O estupro é uma experiência devastadora da identidade feminina.
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‘Denúncias vão elevar índices de estupro’, diz ministra Eleonora Menicucci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU