Por: Jonas | 18 Setembro 2013
Os pobres, o dinheiro, o poder eclesiástico: eis aqui boa parte dos debates entre eclesiásticos desde que o jesuíta Francisco (foto) está à frente da Igreja romana. No meio, o fantasma da Teologia da Libertação, um movimento execrado com severidade durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, este na linha de frente de combate quando foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que é a forma como agora é chamado o Santo Ofício da Inquisição. Ainda em 2009, Ratzinger advertiu sobre os “desastrosos efeitos” dessa corrente teológica. “Suas consequências, feitas de rebelião, divisão, ofensa e anarquia, ainda neste momento se fazem sentir, criando grande sofrimento e grave detrimento das forças vivas”, disse. Anteontem, o cardeal arcebispo de Lima, Juan Luis Cipriani, do Opus Dei, remarcou a execração.
Fonte: http://goo.gl/5HNcN8 |
A reportagem é de Juan G. Bedoya, publicada no jornal El País, 15-09-2013. A tradução é do Cepat.
A teoria sobre a proverbial hostilidade entre a Companhia de Jesus e o Opus Dei encheu de maledicências a Red, assim que foi eleito papa o jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio, que assumiu o nome de Francisco, o santo dos pobres. O Opus Dei aceitaria perder mais poder no Vaticano, e, para o cúmulo, pelas mãos de seus competidores de outrora, diante das altas burguesias católicas? Os passos aberturistas de Francisco, sobretudo sua revolucionária simplicidade e austeridade, além do tom quase revolucionário de alguns de seus discursos, começam a chiar em setores ultras da Igreja. Não é por acaso que a primeira reação pública venha do mais alto eclesiástico do Opus Dei, o cardeal de Lima. A faísca também não é frívola: a audiência concedida por Francisco, na quarta-feira, ao teólogo Gustavo Gutiérrez, o fundador da Teologia da Libertação.
O cardeal Cipriani qualificou como “ingênuo” o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o alemão Gerhard Müller, por ter promovido esse encontro e por acolher em Roma Gutiérrez como se fosse um grande pensador ortodoxo. Acrescentou o prelado em declarações para a Rádio Programas do Peru (RPP): “Müller é bom alemão e bom teólogo, um tanto ingênuo. Minha leitura é a de que ele quis se aproximar de seu amigo Gutiérrez, a quem tem carinho, a quem de alguma maneira quer ajudar a corrigir e inserir na Igreja católica. O encontro está sendo utilizado para descrever uma aproximação com uma corrente teológica que causou muito dano à Igreja”.
Max Weber sustentou que os evangelhos têm o mau costume de falar bem dos pobres e mal dos ricos. Essa impressão é resumida pela parábola do camelo e da agulha, que possui ligeiras variações nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas. “É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus”. A frase tornou-se famosa por ser dita por ninguém mais do que Jesus, o fundador cristão. Logo, seria detido perto de Jerusalém, torturado e crucificado pelo sistema de poder de seu tempo, também pelo sistema religioso.
No início, a mensagem cristã acentuou o abismo que existia entre os ricos e os pobres, entre os humildes e os poderosos. Nem sempre foi assim, menos ainda quando o império romano foi substituído em Roma pelo império católico. Entretanto, sempre existiram vozes de teólogos e de hierarcas em favor dos deserdados da terra. Teologia para os pobres, não sobre os pobres.
A primeira vez que é cunhado o programa eclesiástico de “opção pelos pobres” acontece pela boca de João XXIII, em 1962. Foi o pontífice que convocou o Concílio Vaticano II. Possuía duas preocupações: o diálogo com o mundo moderno e a unidade das igrejas, entretanto, dias antes da inauguração introduziu uma terceira linha de debate: os pobres. “Opção pelos pobres”, pediu. Seis anos mais tarde, em maio de 1968, o então Prepósito Geral dos Jesuítas, Pedro Arrupe, pediu aos membros da Companhia de Jesus na América Latina que tal opção fosse “preferencial”. Assim, nasceu a Teologia da Libertação.
Após 40 anos de condenações e castigos, esta teologia possui vigência? A pergunta está no ar, com grande preocupação entre os setores que começam a suspeitar do discurso e das formas, claras e simples, do novo papa, jesuíta e argentino. Na semana passada, o jornal do Vaticano, “L’Osservatore Romano”, dedicou um grande espaço para o livro em italiano “Em nome dos pobres, teologia da libertação, teologia da Igreja”, escrito por Gustavo Gutiérrez junto com o arcebispo Gerhard Ludwig Müller, ex-prelado de Ratisbona (Alemanha) e atual prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Gutiérrez, que agora está num convento dos dominicanos na França, foi quem deu o nome ao movimento, com a publicação do livro “Teologia da Libertação”, em Lima, no ano de 1971.
Uma fotografia de alguns anos atrás, do teólogo com o arcebispo Müller, apresentado esse livro em alemão, correu o mundo e alarmou os detratores dessa teologia. Müller foi aluno e é amigo do pensador peruano desde que, sendo jovem o prelado alemão, foi a Lima para estar entre os pobres. “Essa nomeação como prefeito da Congregação que se ocupa da ortodoxia da doutrina católica e a eleição de um jesuíta e arcebispo de Buenos Aires como bispo de Roma foram qualificados, em alguns ambientes, como uma revanche da Teologia da Libertação, criticada por João Paulo II e pelo cardeal Ratzinger”, escreveu, em maio, a agência de notícias Zenit, propriedade dos Legionários de Cristo.
Tem sido uma impressão generalizada. Naquele momento, isto é o que Müller declarou, segundo a própria agência: “É necessário diferenciar uma teologia da libertação equivocada de uma correta. Um cristão tem que se sentir em sua casa, em qualquer parte”. Antes, em 2004, havia dito, em Ratisbona, que “a teologia de Gustavo Gutiérrez, independente de como se a considere, é ortodoxa porque é ortoprática e nos ensina o correto modo do agir cristão, já que deriva da fé autêntica”.
Contudo, a agitação de partidários e detratores transcende a famosa fotografia. Opina o bispo Pedro Casaldáliga: “Com a chegada do papa Francisco, agitou-se a questão e temos nos confirmado na convicção de que a teologia é Teologia da Libertação ou não é teologia, certamente, não seria a do Deus de Jesus”. Quem tem medo da Teologia da Libertação?, questiona-se este prelado catalão, bispo desde 1971 da Diocese de São Félix do Araguaia, a mais extensa do Brasil. Ameaçado de morte por defender os pobres e seus combativos teólogos e sacerdotes, salvou sua vida quando Paulo VI advertiu bem alto para que a ditadura daquele tempo ouvisse: “Quem mexe com Pedro, mexe com Paulo”. Não tiveram tanta sorte outros mártires dessa teologia, como o também bispo Oscar Romero, de El Salvador, já nos tempos de João Paulo II.
Que a primeira encíclica escrita somente por Francisco irá ter como título “Beati pauperes” (Bem-aventurados os pobres), não endossa aqueles que supõem veleidades com a teologia da libertação. Ao contrário, já expressou seu critério desfavorável durante sua viagem ao Brasil, no mês passado. Nada de experiências que tenham algo a ver com o marxismo, proclamou. Por acaso, a Teologia da Libertação é marxista? “Se dou esmola a um pobre, chamam-me de santo; se pergunto por que há tantos pobres e tento ajudá-los, chamam-me de comunista”, lamentava Hélder Pessoa Câmara, o famoso bispo de Recife (Brasil).
Quando João XXIII morreu em pleno concílio, ouviu-se um monsenhor da Cúria Romana rezar por ele. “Que Deus o perdoe pelo dano que fez à Igreja com este concílio”. Anos mais tarde, Paulo VI foi o execrado pela Igreja tradicional, principalmente, por causa de seu apoio aos padres da Igreja latino-americana reunidos em Medellín (Colômbia), em 1968, para ver como podiam aplicar o Vaticano II nas realidades da América Latina. Sobre aquele acontecimento disse, agora, Gustavo Gutiérrez: “O problema que enfrentávamos não é sobre como falar de Deus em um mundo adulto, mas como anunciar Deus como um pai amoroso e justo num mundo desumano e injusto”.
Raúl Vera, bispo de Santillo (México), soma-se a esse protesto e passa a bola para aqueles que acreditam que João Paulo II e Ratzinger fizeram bem perseguindo bispos e sacerdotes comprometidos com Medellín e com Paulo VI: “Com Puebla, não se corrigiu a Teologia da Libertação, corrigiu-se o Evangelho”, disse. Puebla, no México, foi onde mais alto o papa estrondou contra os teólogos da libertação. Raúl Vera foi bispo auxiliar do mítico Samuel Ruiz, na Diocese de Chiapas, e esteve neste fim de semana em Madri para falar no Congresso da Associação de Teólogos João XXIII.
“Como eu gostaria de ter uma Igreja pobre e para os pobres!”, disse Francisco, na última primavera, assim que foi eleito papa. Por acaso, isto soa teologia da libertação? Rodeado de soberanos de todo o mundo, antes, havia reprovado, em seu primeiro discurso oficial, as pretensões de poder das hierarquias católicas. Raúl Vera, o bispo mexicano, sussurrou naquele momento para seu companheiro de assento na Basílica de São Pedro: “Ouça, que coisa boa, este Papa vem por nós”. Conta isto para o jornal El País, antes de destacar que Francisco também exortou os jovens a serem revoltosos (“tenham o valor de ir contra a corrente”), e aos bispos para que tenham menos cheiro de pastor e mais de ovelha.
Há um debate aberto sobre a vigência desta teologia, ou sobre seu futuro, a respeito do qual os bispos espanhóis não estão alheios. Seus meios de comunicação assim o refletem, quase sempre com hostilidade. No entanto, calam-se ao serem perguntados. Vários bispos se negaram a entrar no assunto, diante das consultas do jornal El País. É como se estivessem esperando um sinal do Vaticano, afora o já enviado pelo “L’Osservatore Romano” ao acolher Gustavo Gutiérrez em suas páginas.
“Com um papa latino-americano e, além disso, jesuíta, a Teologia da Libertação não poderia ficar muito tempo na sombra, onde esteve relegada há anos”, disse Hugo Sartori, teólogo italiano e diretor do “Messaggero di Sant’Antonio”, comentando esse fato. “Trata-se de uma teologia que foi deixada fora do jogo por um duplo preconceito: primeiro, que ainda não metabolizou a fase conflitiva de meados dos anos 1980, segundo, a rejeição de uma teologia considerada muito de esquerda e, portanto, tendenciosa”, acrescenta.
É o que opina Juan Rubio, diretor de “Vida Nueva”, a grande revista católica espanhola (da congregação marianista), com edições na América hispânica: “A Teologia da Libertação foi crescendo em ramos diferentes, coincidindo com as mudanças sociopolíticas da América Latina e do Caribe. As concepções são distintas porque as situações são distintas. A análise marxista já ficou relegada em muitos dos posicionamentos desta teologia, apesar de que aqueles que a atacam ainda continuam esgrimindo injustamente essas razões de método. A pergunta é se essa teologia já é parte da história e cumpriu seu papel ou, pelo contrário, evoluiu e oferece chaves que podem ajudar a entender a realidade de pobreza, injustiça e opressão, com um novo cunho, na qual, hoje, aqueles países ainda vivem imersos. Essa é a pergunta feita por muitos cristãos, que veem nesta teologia um compromisso afetivo e efetivo com o Evangelho e com a necessária conversão de estruturas injustas. Novas perspectivas se abrem, não se deve ficar fechados nelas”.
Juan Rubio, que conhece bem os bispos espanhóis e que conversou durante horas, no passado recente, com o papa Francisco (a edição argentina de “Vida Nueva” foi apadrinhada pelo atual Pontífice, então arcebispo de Buenos Aires), sustenta que “a Teologia da Libertação, como mais uma, não a única e exclusiva, ajudará as igrejas a entender melhor aquelas realidades. Alguns de seus pontos podem ser mais ou menos discutíveis, mas o que a Igreja nunca pode fazer é amordaçar e impedir o sadio e livre exercício da teologia, assim como a própria missão magisterial da Igreja. Nesse momento, um diálogo parece se abrir a partir dos seguidores de Gustavo Gutiérrez com um papa que, embora não seja considerado seguidor desta teologia, está em condições de entendê-la melhor. Abre-se uma etapa de diálogo na qual primará, sem dúvida, o reconhecimento de tantos homens e mulheres que seguindo estas linhas teológicas deram sua vida testemunhalmente na defesa dos mais pobres”.
Ao contrário, Juan José Tamayo, reeleito no sábado passado secretário geral da Associação de Teólogos e Teólogas João XXIII, duvida que a Igreja institucional possa assumir a Teologia da Libertação, apesar de diante dos não poucos gestos, palavras, atitudes e opções de Francisco, a resposta possa parecer afirmativa. Acrescenta: “Assim acreditam importantes setores religiosos e leigos, incluindo os progressistas e até alguns teólogos – não da mesma forma as teólogas – da libertação. Eu acredito, no entanto, que uma teologia da libertação que faz da opção pelos pobres seu imperativo categórico, dificilmente pode ser assumida pela instituição eclesiástica, em razão do lugar social na qual se localiza – os pobres, os movimentos sociais -, a radicalidade de suas opções – interculturalidade, pluralismo e diálogo inter-religioso, diversidade sexual -, a revolução metodológica que implica e a crítica do poder eclesiástico e de suas instituições”.
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A Teologia da libertação respira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU