23 Julho 2013
A Violência, que está cada vez mais flagelando os vivos, é presidida por alguma entidade divina? Há uma violência de demônios encarnados, mascarada de ideologias políticas ou religiosas?
A reflexão é do poeta, filósofo e escritor italiano Guido Ceronetti, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 19-07-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A Violência, que está cada vez mais flagelando os vivos, é presidida por alguma entidade divina? É uma vingança de morts malfaisants, de mal mortos que não estão ociosos enquanto as suas famílias já se apressaram para esquecê-los ou estão esperando sentenças desfocalizadas de tribunais? Ou há uma violência de demônios encarnados, mascarada de ideologias políticas ou religiosas, como é possível vê-los em ação na obra-prima de Dostoiévski, Os Demônios,praticada com método e segundo topografias e cadências que confundem?
Desde o 11 setembro de 2001, quem pensa se faz perguntas sem fim sobre os escopos de uma violência que parece despedaçadíssima – mesmo sendo uma só. Único é o rosto da violência e não há uma cabeça ou uma conspiração. Alguém move esse número incalculável de fios? Atirar contra uma mulher, estuprá-la, queimá-la ainda viva e suplicando é realmente um ato espontâneo e individual? Perturba-me um verso de Giorgio Seferis: "Quem é que por trás de nós nos ordena a matar?".
Uma bomba que massacra durante uma maratona pacífica tem um motivo plausível? E você pode desmascarar o verdadeiro motivo de uma matança no impulso de colocar uma bomba em um ônibus que leva meninas que voltam da escola? Pode valer a demente pretensão de que, como mulheres, elas não devem ir à escola? Tem sentido diante de tais enormidades criminosas, verdadeiros ultrajes e estranhamentos do logos humanos, esboçar tranquilamente uma tratativa de paz com os autores e os mandantes?
A única máxima justa parece-me ser a do sábio La Fontaine: "É preciso fazer uma guerra perpétua contra os malvados" (Les loups et les brebis). Não são os mesmos que despedaçaram os Budas milenares de Bamiyan? Vem realmente do ser humano o pior do ofuscamento humano? Podemos constatar uma obscura necessidade de fazer e de ver sofrer: a arma de fogo, quando o disparo não é à queima-roupa, priva o assassino de uma parte do espetáculo, do qual, ao invés, quem golpeia até a morte com uma arma imprópria não perderá nada.
Voltado ao outro, tudo bem, é um inserir o ilógico em um esquema aparentemente lógico. mas a questão vive, permanece: quem move os fios? O prazer de fazer mal é uma explicação psicológica suficiente? Eu, como Isaías, capítulo 21: "Me retorço em não entender", mas não posso jogar a caneta, com a qual me obstino a escrever, nas infinitas latas de lixo da impossibilidade de entender.
Deve-se observar, fazendo anatomia patológica do crime, que, enquanto a guerra acabou perdendo toda conotação de fisicidade violenta entre homens (e, portanto, do ofensor militar que produz nos corpos dos adversários dilacerações sanguinárias), o agir de quem mata se tornou mais próximo, mais selvagemente despedaçador, mais fervilhante de desumano.
Não é de hoje que começou essa ascensão inaudita do mau – houve Pietro Maso, houve Erica e Omar, as Intifadas, Breivik, Srebrenica –, mas se dissolveu a cerca separadora: o crime é evento público, goza da descoberta e paradoxalmente do ser descoberto, transformado em espetáculo; o temor da pena não segura mais ninguém, e o assassino pode, com certeza, contar com coros intermináveis de aprovação provenientes da rede.
Que se faça mal pelo único propósito de fazê-lo não é novo debaixo do sol. O que é novo é o surgimento do crime como uma realidade epidêmica, como uma espécie de programas sombrios do calendário cultural do viver urbano.
Quaerebam unde malum et non erat exitus ("Eu me perguntava de onde vinha o mal, e não encontrava respostas", Santo Agostinho).
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Quando o mal pelo mal se torna um costume. Artigo de Guido Ceronetti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU