05 Junho 2013
"Se no passado o inimigo era o comunista, classificado nas expressões 'ameaça comunista', 'tirania vermelha', 'escravatura vermelha', e identificado nas ações do governo João Goulart, o inimigo do presente é o homossexualismo, classificado na expressão 'ditadura gay', identificado em ações do governo Dilma Rousseff. O apoio de parlamentares afinados com a causa, interessados em frear 'reformas' e conquistas de direitos, manifesta-se hoje tal como em 1964", escreve Magali do Nascimento Cunha, jornalista e professora da Universidade Metodista de São Paulo (Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social e Faculdade de Teologia) e autora do livro A explosão gospel. Um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico contemporâneo (Mauad) e do Blog Mídia, Religião e Política, em artigo, 02-06-2013.
Eis o artigo.
Sem “teorias da conspiração” ou paranoias persecutórias, mas a velha expressão popular “este filme eu já vi” não deixa de ser evocada quando se acompanha as movimentações em torno da Manifestação pela Família Tradicional e a Liberdade de Expressão a ser realizada em Brasília no próximo dia 5 de junho. A articulação liderada pelo pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, Silas Malafaia, conta com o apoio de grupos evangélicos de distintas denominações e de segmentos católicos romanos, além de parlamentares não-religiosos, como Jair Bolsonaro (PP).
Esta movimentação tem raízes na campanha eleitoral de 2010 mas ganhou potência em 2013 com a indicação do deputado federal pastor Marco Feliciano (PSC) como presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, assumindo o lema "em defesa da liberdade de expressão, liberdade religiosa, da família tradicional e da vida" para marcar posição contra o casamento gay, o aborto e o Projeto de Lei 122, que criminaliza a homofobia. Ganha força entre grupos religiosos também com a ação de pessoas ligadas à Frente Parlamentar Evangélica que passam a falar e disseminar materiais redigidos e em vídeo numa retórica do terror de que as famílias estão em risco por conta de ações governamentais federais.
Ao se acompanhar essas articulações e a base pública com que se colocam – família e liberdade – não há como não se lembrar do “filme assistido” em 1964 que inclui as manifestações que representaram apoio às articulações que promoveram a ditadura militar que assolou o Brasil e que tem efeitos sobre a vida do país até o presente, levando à criação de uma Comissão da Verdade em 2012 para trazer à tona a memória apagada e silenciada daqueles tempos sombrios.
O “filme” ontem
A Marcha da Família com Deus pela Liberdade é, na verdade, um título de uma série de eventos realizados em março de 1964 como manifestação contrária à considerada “ameaça comunista” configurada no governo do presidente João Goulart e identificada no comício que ele havia realizado em 13 de Março de 1964, apresentando as Reformas de Base: administrativa, jurídica, econômica, agrária para dar novo fôlego ao país. Essas reformas se opunham aos interesses dos grupos socialmente dominantes, já que envolvia distribuição de bens e terras, o que em muito incomodava os setores sociais hegemônicos.
Foto: www.frasesdadilma.wordpress.com |
As Marchas da Família com Deus pela Liberdade foram organizadas principalmente por clérigos católicos romanos e por entidades femininas da sociedade civil e da igreja e congregou segmentos da classe média, temerosos do "perigo comunista", contrários às reformas e favoráveis à deposição do presidente João Goulart.
A primeira dessas manifestações ocorreu em São Paulo, a 19 de março, no dia de São José, padroeiro da família. A marcha contou com a participação de cerca de trezentas mil pessoas, entre elas o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, e o governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda. A Marcha começou na Praça da República e terminou na Praça da Sé com a celebração da missa "pela salvação da democracia". Na ocasião, foi distribuído o Manifesto ao povo do Brasil, convocando a população a reagir contra João Goulart.
“Com ‘vivas’ à democracia e à Constituição, mas vaiando os que consideram ‘traidores da pátria’, os manifestantes se posicionaram defronte da catedral e nas ruas próximas. Ali, oraram pelos destinos do país. E, através de diversas mensagens, dirigiram palavras de fé no Deus de todas as religiões e de confiança nos homens de boa-vontade”. Era um “repúdio a qualquer tentativa de ultraje à Constituição Brasileira e a defesa dos princípios, garantias e prerrogativas democráticas constituíram a tônica de todos os discursos e mensagens dirigidos das escadarias da catedral aos brasileiros, no final da passeata” (Folha de São Paulo, 20/3/1964).
Preparada com o auxílio da Campanha da Mulher pela Democracia (Camde), da União Cívica Feminina, da Fraterna Amizade Urbana e Rural, entre outras entidades, a marcha paulista recebeu também o apoio da Federação e do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo e do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes).
O Ipes foi fundado por empresários paulistas e cariocas, em 1961, logo após a controversa posse de João Goulart, tendo como presidente o general Golbery do Couto e Silva. O Ipes recebeu entre 1961 e 1964 uma alta verba de empresários empenhados em tirar João Goulart do poder. O instituto realizava investigações particulares, um sistema de monitoramento de informações, identificando parceiros e simpatizantes do governo. Foi também o general Golbery responsável por estabelecer relações entre o Ipes e a Escola Superior de Guerra, de onde foi originada a doutrina de "segurança nacional" que deveria garantir o progresso do Brasil, baseado na expansão da economia brasileira que ocorreria apor meio da concentração de renda e do arrocho salarial.
O Senador Padre Calazans discursou na Praça da Sé: “Aqui estão mais de 500 mil pessoas para dizer ao presidente da República que o Brasil quer a democracia, e não o tiranismo vermelho. Vivemos a hora altamente ecumênica da Constituição. (...) Depois, o Pe. Calazans lembrou [que a manifestação é pacífica] que ‘aqui estamos sem tanques de guerra, sem metralhadoras. Estamos com nossa alma e com nossa arma, a Constituição. (...) Coube à profa. Carolina Ribeiro, ex-secretária da Educação, orar ao microfone por São Paulo e pelo Brasil. Todos a acompanharam no Pai Nosso e ouviram-na dizer: ‘Temos que pedir a Deus, neste momento em que nossos corações fervem de indignação, que não caiamos na tentação da revolta, porque só a Deus compete levar-nos pelo caminho certo’. A deputada Conceição da Costa Neves também dirigiu saudação aos brasileiros, dizendo: ‘Aqui, mercê de Deus, se encontra o Brasil unido contra a escravatura vermelha. De São Paulo partirá a bandeira que percorrerá todo o país, para dizer a todos os partidos que a hora é de união, para dizer basta ao sr. presidente da República’” (Folha de São Paulo, 20/3/1964).
“O último orador a ocupar a tribuna foi o sr. Auro Soares de Moura Andrade, presidente do Congresso Nacional. E disse: ‘Sentimos que hoje é um dia de importância histórica para o Brasil. O povo veio à praça pública para demonstrar sua confiança na democracia. Veio para afirmar perante a Nação que os democratas não permitirão que os comunistas sejam os donos da Pátria. Democratas do Brasil, confiem, não desconfiem das gloriosas Forças Armadas de nossa pátria. Dentro de cada farda, não está somente um corpo, mas também uma consciência e um juramento feito. Que sejam feitas reformas, mas pela liberdade. Senão, não. Pela Constituição. Senão, não. Pela consciência cristã do nosso povo. Senão, não’. E todos os presentes o acompanharam no ‘senão, não’” (Folha de São Paulo, 20/3/1964).
A Marcha da Família repetiu-se em outras capitais, e, após a derrubada de João Goulart pelos militares com o golpe militar de 31 de março, passaram a ser divulgadas como "marchas da vitória". A marcha do Rio de Janeiro, articulada pela Camde, levou às ruas cerca de um milhão de pessoas no dia 2 de abril de 1964. As marchas de Belo Horizonte e de Curitiba foram vistas pelos militares como um consentimento ao Golpe. Os grupos envolvidos nestas marchas aceitaram a imposição militar, já que era melhor ter seus bens garantidos à custa da ausência de democracia, a perder tudo diante a “ameaça vermelha”, que era o comunismo, já que os militares garantiriam a segurança e a estabilidade do país. Curiosamente foi a última vez, por longas décadas que se seguiram, que as pessoas puderam sair às ruas livremente para expressar suas vontades políticas.
O "filme" hoje
Foto: www.jblog.com.br |
Quase 50 anos depois, como já mencionado aqui, são vistas as articulações por novas manifestações de caráter religioso. As de 1964 e as de 2013 têm em comum se apresentarem como “pacíficas” e defensoras da Constituição. Os temas de 2013 são os mesmos “família” e “liberdade”, também colocados na confrontação de um inimigo. Se no passado o inimigo era o comunista, classificado nas expressões “ameaça comunista”, “tirania vermelha”, “escravatura vermelha”, e identificado nas ações do governo João Goulart, o inimigo do presente é o homossexualismo, classificado na expressão “ditadura gay”, identificado em ações do governo Dilma Rousseff. O apoio de parlamentares afinados com a causa, interessados em frear “reformas” e conquistas de direitos, manifesta-se hoje tal como em 1964.
O que isto quer dizer? O que aprender desta reflexão? Vale responder e concluir por meio da transcrição de dois parágrafos de outro texto da autora deste artigo: "Torna-se nítida uma articulação política e ideológica conservadora em diferentes espaços sociais - do Congresso Nacional às mídias - que reflete um espírito presente na sociedade brasileira, de reação a avanços sociopolíticos, que dizem respeito não só a direitos civis homossexuais e das mulheres, como também aos direitos de crianças e adolescentes, às ações afirmativas (cotas, por exemplo) e da Comissão da Verdade, e de políticas de inclusão social e cidadania. Nesta articulação a religião passa a ser instrumentalizada, uma porta-voz. (...)
Nesse sentido é possível afirmar que os grupos políticos e midiáticos conservadores no Brasil descobriram os evangélicos e o seu poder de voz, de voto, de consumo e de reprodução ideológica. A ascensão de Celso Russomano nas eleições municipais de São Paulo, em 2012, já havia sido exemplar: um católico num partido evangélico, apoiado por grupos evangélicos os mais distintos. A eleição da presidência da CDH é paradigmática no campo nacional e ainda deve render muitos dividendos à Feliciano, ao PSC, à Bancada Evangélica e a seus aliados. O projeto político que se desenha, de fato, pouco ou nada tem a ver com a defesa da família... os segmentos da sociedade civil, incluindo setores evangélicos não identificados com o projeto aqui descrito, que defendem um Estado laico e socialmente justo, têm grandes tarefas pela frente" (em “Caso Marco Feliciano: um paradigma na relação midia-religião-política”).
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Marcha pela família e a liberdade: “Quem já viu este filme?” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU