08 Mai 2013
O pensamento de Davi pode ser assim traduzido em uma linguagem não imediatamente teologal: "Eu ajo confiando que existe uma categoria de valores que sairá vencedora". É preciso uma fé profunda, que foi a de tantas pessoas seculares e de tantas pessoas religiosas de diversas filiações, assim como de outras abordagens chamadas "não violentas".
A análise é do jesuíta italiano Stefano Bittasi, diretor do programa de formação jesuíta em Jerusalém, Israel, e ex-professor de Sagrada Escritura da Pontificia Facoltà dell'Italia Meridionale Sezione S. Luigi, Nápoles. O artigo foi publicado na revista Aggiornamenti Sociali, de maio de 2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
As guerras são desde sempre uma constante na história da humanidade. Assim também era entre os povos protagonistas do relato bíblico: o desejo de adquirir novos recursos (pastagens ou campos mais amplos e melhores, fontes de água mais abundantes etc.), subtraindo-os de grupos que os estão usando, e a consequente necessidade de se defender por parte destes criavam continuamente eventos bélicos.
Justamente por causa da incessante iminência da guerra no horizonte da vida, a narração dos eventos bélicos – ou para celebrar o poder do rei vitorioso, ou, em caso de derrota, para lembrar erros a não se repetir, ou para levar a buscar um resgate – é parte integrante da epopeia com que se preserva e se transmite a identidade de um povo, da qual, além do mais, faz parte a sua relação com a divindade.
Precisamente por causa do seu valor simbólico fundamental, as narrações que foram transmitidas respondem a critérios diferentes da simples descrição factual ou narração em crônica dos eventos. Entra nessa categoria também o conhecido relato do confronto de Davi contra Golias em 1Samuel 17, dentro de uma das muitas batalhas entre Israel e os filisteus que marcaram boa parte do século XI a.C.
Esse texto nos oferece, de fato, quase uma parábola de uma modalidade concreta de resolução de conflitos alternativa à mera aplicação da "lei do mais forte", ou, melhor dizendo, de uma definição diferente de "força" dentro de um conflito.
As "dimensões" de Golias
O texto conta como, diante do acampamento dos dois exércitos, deve-se recorrer a um duelo entre os campeões dos dois povos, com consequências decisivas: o povo daquele que vencer irá se apossar do outro, reduzindo-o à escravidão.
1 Samuel 17, 1-11
1. Os filisteus reuniram suas tropas para a guerra e se concentraram em Soco de Judá, e acamparam em Efes-Domim, entre Soco e Azeca. 2. Saul e os israelitas se reuniram e acamparam no vale do Terebinto, e se puseram em ordem de batalha contra os filisteus. 3. Os filisteus se colocaram na encosta da montanha, enquanto os israelitas ficaram na encosta de outra montanha, de modo que havia entre eles um vale.
4. Saiu então do exército filisteu um guerreiro enorme chamado Golias, de Gat, com quase três metros de altura. 5. Tinha na cabeça um capacete de bronze, vestia um colete de malha de bronze que pesava mais de cinquenta quilos, 6. usava perneiras de bronze e tinha nos ombros um escudo de bronze. 7. A haste de sua lança era como travessa de tear, e a ponta da lança pesava seis quilos. Seu escudeiro ia na frente.
8. Golias postou-se na frente das fileiras de Israel e gritou: "Por que vocês saíram para lutar? Eu sou filisteu, e vocês são escravos de Saul. Escolham alguém para lutar comigo. 9. Se ele for mais forte e me derrotar, seremos escravos de vocês. Se eu for mais forte e o vencer, vocês serão nossos escravos e servirão a nós". 10. E continuou: "Estou desafiando hoje o exército de Israel! Apresentem alguém, e lutaremos corpo a corpo!" 11. Saul e os israelitas ouviram o desafio do filisteu e ficaram cheios de medo.
A partir da própria descrição física, Golias é representado como uma figura do mal absoluto e avassalador: diz-se que tinha quase três metros de altura, que era capaz de manter na cabeça um capacete de bronze e de vestir um colete de malha de bronze que pesava mais de 50 quilos e de jogar uma lança cuja ponta pesava seis quilos. Essa descrição apresenta características de tal extraordinariedade a ponto de considerar muito improvável que um gigante dessas dimensões realmente existiu: o exagero serve para tornar a ideia do tremendo poder do mal, da força incomparável do inimigo. Evidentemente, nas fileiras de Israel, não se consegue encontrar um campeão similar: daí o medo que apavora Saul e todo o povo (vv. 11 e 24).
A lógica ordinariamente vencedora em todas as situações de conflito é a de buscar uma potência capaz ao menos de contrabalançar a do inimigo, mas dentro de uma mesma definição de força: a única possibilidade para derrotar o medo que Golias incute é encontrar um gigante ao menos igualmente gigantesco.
O período da Guerra Fria, do fim da Segunda Guerra Mundial à queda do Muro de Berlim em 1989, foi dominado por estas dinâmicas: o mundo inteiro estava "bloqueado" (como os dois exércitos no nosso texto) pela contraposição entre os dois blocos, cada um dos quais produzia uma narrativa e uma épica que identificavam o outro como mal absoluto a ser erradicado e justificavam a espiral da corrida armamentista (sempre rigorosamente definida como "de defesa"), para poder dispor sempre de um poder superior ao de "Golias".
O equilíbrio só parece possível se uma força é contrabalançada por uma força igualmente grande: é a lógica que João XXIII identifica (e estigmatiza) no n. 110 da encíclica Pacem in Terris, da qual, no último dia 11 de abril, celebramos o 50º aniversário: "Costuma-se justificar essa corrida armamentista aduzindo o motivo de que, nas circunstâncias atuais, não se assegura a paz senão com o equilíbrio de forças: se uma comunidade política se arma, faz com que também outras comunidades políticas devam manter o ritmo e se armar elas também. E, se uma comunidade política produz armas atômicas dá motivo a que outras nações se empenhem em preparar semelhantes armas, com igual poder destrutivo".
Uma outra lógica
Existem, porém, outras lógicas: Davi é o emblema disso. O texto o apresenta como um pastor muito jovem – na época, como ainda hoje em muitas partes do mundo, são os meninos que cuidam das ovelhas e das cabras que pastam – que deixa o rebanho para alcançar os irmãos mais velhos envolvidos na guerra contra os filisteus e se propõe a desafiar Golias.
Muitos zombam de Davi, e os seus irmãos lhe dizem: "Você está aqui para aproveitar o espetáculo. Volte para as suas ovelhas. Nós sabemos: você é um orgulhoso, um soberbo de coração!" (v. 28). Por uma significativa coincidência, são quase as mesmas palavras utilizadas em uma charge do Sunday Telegraph (30 de julho de 1961) contra o secretário-geral da ONU, Dag Hammarskjöld, que estava se esforçando por uma solução pacífica da crise congolesa: Charles de Gaulle e Nikita Khrushchev se enfrentavam, cada um, em um tanque. Ambos portavam um distintivo com a inscrição: "Eu não gosto de Dag!". E, embaixo da caricatura, lia-se a frase: "Quem acredita que esse é um homem do destino?". Não é ironia da história: é a reação natural de quem adota a "lógica de Golias" com relação a uma alternativa à prova de força.
1Samuel 17, 32-40
32. Davi disse a Saul: "Ninguém deve ficar desanimado. Este seu servo irá lutar com o tal filisteu!" 33. Saul respondeu a Davi: "Você não pode lutar com o filisteu! Você é apenas um rapaz! Ele é guerreiro desde a juventude!" 34. Davi replicou: "Seu servo é pastor das ovelhas de meu pai. Se chega um leão ou urso e agarra uma ovelha do rebanho, 35. eu vou atrás, o ataco e arranco a ovelha de sua goela; se ele me ataca, eu o agarro pela juba e o mato a pauladas. 36. Seu servo é capaz de matar leões e ursos. Pois bem: esse filisteu incircunciso, que desafiou o exército do Deus vivo, será como um deles". 37. E Davi acrescentou: "Javé me livrou das garras do leão e do urso. Ele me livrará também das mãos desse filisteu". Então Saul lhe disse: "Vá. E que Javé esteja com você!"
38. Saul vestiu Davi com sua própria armadura, colocou-lhe na cabeça um capacete de bronze, revestiu-o com a sua couraça, 39. e pôs a espada na cintura dele, sobre a armadura. Em vão Davi tentou andar, pois nunca tinha usado nada disso. Então falou a Saul: "Não consigo nem andar com essas coisas. Não estou acostumado". Tirou tudo, 40. pegou o cajado, escolheu cinco pedras bem lisas no riacho e as colocou no seu bornal. Depois pegou a funda e foi ao encontro do filisteu.
Em vez do poder da força física, Davi segue uma linha de ação diferente, baseada na confiança na ajuda daquele Deus do qual ele sempre fez experiência na sua vida de pequeno pastor que deve enfrentar "o leão e o urso" (v. 37 ) e a noite do deserto. Se, ao menos nesses termos, parece difícil propor essa visão de fé no contexto secularizado da diplomacia e da solução dos conflitos, a história nos reservou "surpresas" suficientes para poder afirmar que a lógica do equilíbrio do terror não é a única lógica à qual é razoável se sujeitar.
Saul, em parte, continua dentro dessa lógica, que, no entanto, não ridiculariza Davi pela sua oferta: ela aceita que seja fraco a desafiar o forte, mas tenta revesti-lo com a sua armadura. Saul representa aquela prudência que tenta manter um pé em dois estribos: ele intui o misterioso poder da lógica de Davi, a do fraco que combate o forte, mas não se confia a ele profundamente e busca dar ao fraco ao menos uma arma ou uma proteção. Sem se dar conta de que, desse modo, chega a um acordo com aquela lógica com base na qual certamente sairá perdedor.
Por isso, o pequeno Davi recusa a armadura e rebate: "Não consigo nem me mexer com essas coisas por cima, porque nunca as provei!" (v. 38-39). A sua lógica está em radical antítese com a do armar-se. De fato, quando o vê, Golias tem desprezo por ele: reconhece-o como o portador daqueles que ele considera como desvalores. Davi, ao invés, que não veste a armadura e avança livre, sabe que o Deus que está com ele tem valores diferentes dos de Golias (vv. 44-45) e, por isso, está certo de que pode vencer.
O pensamento de Davi pode ser assim traduzido em uma linguagem não imediatamente teologal: "Eu ajo confiando que existe uma categoria de valores que sairá vencedora". É preciso uma fé profunda, que foi a de tantas pessoas seculares e de tantas pessoas religiosas de diversas filiações. É natural pensar em Gandhi diante do Império Britânico, assim como em outras abordagens chamadas "não violentas", que revelaram ser muito mais eficazes do que as soluções armadas. Tratando-se de um confronto entre lógicas irredutivelmente alternativas, é claro que, à prova dos fatos, estamos sempre um pouco na posição de Saul, puxados por ambas as instâncias, atravessados dentro de nós pelo seu confronto. O mal está à nossa frente e grita sobre nós a sua força monstruosa: com que instrumentos nos oporemos?
A derrota de Golias
Conhecendo o resultado do confronto, essa longa dissertação sobre os meios pode parecer um mero exercício de retórica: trata-se apenas de dar prova de perspicácia em reconhecer o ponto fraco do gigante e escolher a melhor arma para atingi-lo. Mas isso significa não conhecer a oposição dramática das duas lógicas antes do combate. É naquele momento que devemos nos colocar, quando o resultado está longe de ser óbvio: não se sabe como irá acabar quando se decide qual meio utilizar para ir ao encontro do mal com a esperança – e só com ela! – de derrotá-lo.
1 Samuel 17, 41-50
41. O filisteu, tendo na frente o escudeiro, foi se aproximando cada vez mais de Davi. 42. Olhou Davi de alto a baixo e o desprezou, porque era jovem. Além disso, ruivo e de bela aparência. 43. O filisteu disse a Davi: "Será que sou um cão, para você vir ao meu encontro com um pedaço de pau?" Depois invocou seus deuses para amaldiçoar Davi. […]
48. Enquanto o filisteu se aprumava e se aproximava de Davi pouco a pouco, Davi correu depressa para se posicionar e enfrentar o filisteu. 49. Davi enfiou a mão no bornal, pegou uma pedra, atirou-a com a funda e acertou na testa do filisteu. A pedra afundou na testa do filisteu, que caiu de bruços no chão. 50. Assim Davi foi mais forte que o filisteu, apenas com uma funda e uma pedra: sem espada na mão, feriu e matou o filisteu.
Escrevia o cardeal Martini comentando esse trecho: "São claramente opostas as duas maneiras de agir. De um lado, a prudência política, de outro, a coragem 'teológica'. Davi tem razões sobre as quais fundamenta a sua coragem e, por isso, não é nem estúpido nem irracional. Essas razões, no entanto, exigem a aceitação de um novo risco" (Martini, C. M., Le ragioni del credere. Milão: Mondadori, 2011, p. 235).
Uma práxis não violenta – isto é, que não adota as mesmas "armas" do mal na espiral do medo e da prudência política – pede a assunção do risco. Não há a certeza do sucesso. Ao contrário, a história mostra muitas vezes a derrota de Davi e a vitória de Golias. Por isso, homens e mulheres continuam prisioneiros do medo, e aquele Golias que vence será mais cedo ou mais tarde derrotado por alguém mais forte do que ele: somente por pouco poderá dizer que libertou o seu povo!
Não é esse, portanto, o caminho para uma autêntica e duradoura resolução dos conflitos de que o mundo precisa: uma vez decantados os elementos épicos e os aspectos mais estritamente teologais, o texto que examinamos chama a nossa atenção para a questão do discernimento dos instrumentos mais eficazes para a solução dos conflitos. Mas, talvez, de modo ainda mais radical, a questão dos medos que bloqueiam as nossas sociedades em tantos "equilíbrios do terror" e impedem o recurso a lógicas diferentes, das quais, contudo, intuímos o fascínio: não é essa a dinâmica bloqueada entre o chamado ao encontro e ao diálogo e as tantas obsessões securitárias?
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Davi, Golias e a coragem da não violência. Artigo de Stefano Bittasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU