06 Mai 2013
Sem o anúncio da morte e da ressurreição de Jesus, o cristianismo se reduz a um ensinamento religioso e moral, a uma forma de humanismo dentre outros. É a iluminação que o evento da Páscoa projeta sobre a Sexta-Feira Santa que lhe confere o seu valor de verdade.
A opinião é do teólogo protestante suíço François Vouga, que acaba de publicar o livro La religion crucificiée – Essai sur la mort de Jésus (Ed. Labor et Fides, 2013). Vouga é professor da Kirchlichen Hochschule Bethel, na Alemanha, e professor honorário da Faculdade de Teologia e de Ciências Religiosas da Université Laval, no Québec, Canadá. Em português, é autor de Eu, Paulo (Paulus, 2008).
A reportagem é de Julie Paik, publicada na revista Riforma, publicação semanal das igrejas evangélicas Batista, Metodista e Valdense italianas, 03-05-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
De onde vem o seu interesse pelas interpretações da morte de Jesus hoje?
Sem o anúncio da morte e da ressurreição de Jesus, o cristianismo se reduz a um ensinamento religioso e moral, a uma forma de humanismo dentre outros. É a iluminação que o evento da Páscoa projeta sobre a Sexta-Feira Santa que lhe confere o seu valor de verdade. Para o apóstolo Paulo e para os evangelistas, a confissão fundadora da fé cristã – "Cristo morreu por nós" – não apareceu somente como compreensível e razoável, mas eles também a proclamaram como a boa nova por excelência, libertadora e fornecedora de sentido para a universalidade da humanidade.
Parece-me decisivo, para pensar a verdade do cristianismo de forma crível, prestar contas da da simplicidade, da clareza e da pertinência da sua interpretação. Para isso, é necessário desconectá-lo das leituras sacrificiais, que não só obscureceram o seu sentido, mas também contribuíram – contra a mensagem emancipadora do Evangelho – para alimentar a má consciência e a resignação de mulheres e homens de fé.
Qual é, para o senhor, a mensagem essencial da Sexta-feira Santa?
A Sexta-feira Santa assume todo o seu significado, obviamente, somente a partir do anúncio de Páscoa: em si mesma, a morte de um crucificado não tem outro significado que a manifestação da violência humana. Quanto à morte do crucificado, que declarava encarnar a presença de Deus pondo-se à mesa, comendo e bebendo com os marginalizados da sociedade religiosa do seu tempo, ela ocorre como a consequência aceita do reconhecimento de cada uma e de cada um como pessoa.
Jesus pagou com a própria vida o preço do seu amor incondicional pelos seres humanos assim como eles são e onde quer que se encontrem. Ora, o anúncio de Páscoa confere ao evento da Sexta-Feira Santa uma dimensão totalmente diferente: o reconhecimento de todo indivíduo como pessoa não era o simples fato da abertura e da generosidade de um pensador excepcional. Ele se revela como a verdade do próprio Deus, que, fazendo aparecer esse Jesus como o Senhor vivo e reconhecendo-o como seu Filho, se solidariza com a sua palavra e com a sua prática.
E a mensagem essencial da Sexta-feira Santa?
Para mim, Deus se manifesta como o Pai daquele que aceitou perder tudo o que um ser humano pode perder, poder, honra, beleza, dignidade e a própria vida, para testemunhar uma identidade reconhecida incondicionalmente a cada um. O Deus da Sexta-Feira Santa é o Deus das pessoas, reconhecidas como livres e responsáveis, e não o garante de instituições religiosas ou de qualidades morais.
O senhor insiste muito na figura de um Jesus que abre a humanidade a uma vida nova, fundada no reconhecimento e na confiança, mediante o dom gratuito da própria vida. Em que as interpretações tradicionais da Sexta-Feira Santa, que veem a morte de Jesus como um sacrifício para resgatar os pecados da humanidade, estão defasadas, para o senhor, com relação à mensagem do Novo Testamento?
A leitura sacrificial da morte de Jesus é estranha ao Novo Testamento. Ela é atestada pela primeira vez nas cartas de um autor, Inácio de Antioquia, que se esforça, no século II, para dar ao cristianismo as características da religião romana: fazem-se sacrifícios para aplacar os deuses e para ganhar a sua benevolência. A ideia segundo a qual Jesus teria morrido em nosso lugar para expiar os pecados da humanidade, para libertá-la de uma condenação divina e para salvar a honra de Deus, encontrou a sua forma definitiva na obra magistral de um monge do século XI, Anselmo de Canterbury. Ela teve um grande sucesso na Igreja da Idade Média, pois legitimava como instituição que gere a salvação e a perdição das almas e dos povos.
Ela se impôs de tal modo que o próprio Martinho Lutero se esforçou para se livrar dela e ela ainda sobrevive nos catecismos e nas liturgias. Essa leitura, que se tornou tradicional, encontra-se fundamentalmente defasada com relação àquelas leituras, diferentes, propostas pelo Novo Testamento. O denominador comum destas últimas é compreender a Sexta-Feira Santa como o evento libertador de uma revelação, e não como um sacrifício destinado a salvar a ordem estabelecida, a ordem religiosa em particular. A revelação do reconhecimento incondicional de Deus se apresenta como um ato de confiança que chama confiança, como uma valorização de todo sujeito humano que dá a este a sua identidade singular e o convida à liberdade.
Porém, essas interpretações sacrificiais têm a sua fonte, em parte, em uma apresentação de Jesus como juiz que veio para absolver ou condenar as pessoas e que, surpreendentemente, é julgado e condenado em seu lugar. Essa imagem de um Jesus Cristo ao mesmo tempo juiz e condenado não está ausente no Novo Testamento, mas o senhor, no seu livro, não fala sobre ela. O senhor acha que ela ainda tem algum sentido para a fé cristã hoje?
A imagem de Jesus juiz e condenado encontra-se efetivamente no Novo Testamento, por exemplo em algumas passagens das epístolas de Paulo e, principalmente, no evangelho de João. Mas, no meu livro, eu releio justamente as passagens em que ela aparece para mostrar que, na reflexão que elas desenvolvem, Jesus não é condenado no nosso lugar, e essa imagem de Jesus não dá lugar a uma interpretação sacrificial. Dizer que o instante da condenação de Jesus pronuncia o juízo da humanidade não faz dele uma vítima sacrificial.
Ao contrário: ela dá conta da liberdade de um dom de si e denuncia a ilusão de uma auto-organização pessoal, religiosa e política que pretende fundar-se sobre si mesma e que semeia a morte. Dizer que Jesus nos deu gratuitamente a sua própria vida, que morreu "por nós" não significa, no Novo Testamento, que ele morreu "no nosso lugar". "Por nós" significa, acima de tudo, que a sua morte não é o fim, mas sim o início de uma história e, depois, que essa morte não tem o seu sentido em si mesma, mas encontra a sua importância no poder libertador que ela assume para nós.
O senhor também se mostra crítico da religião institucionalizada, entendida como "a gestão das relações com o além, por meio de práticas rituais, de regras morais e de uma casta de consagrados, postos à parte para esse ofício". Que olhar o senhor dirige para as Igrejas e para o papel que elas desempenham?
A Sexta-Feira Santa e a Páscoa, evidentemente, obrigam a voltar um olhar crítico sobre as instituições religiosas a partir do momento em que elas imaginam que podem se impor como mediações indispensáveis da presença de Deus. O Novo Testamento, de fato, define a Igreja precisamente como o corpo social que atesta e no qual se vive o reconhecimento incondicional de cada uma e de cada um. É aí que se manifesta a presença real de Deus.
Uma das originalidades do seu livro é que o senhor apela, ao lado de teólogos como Martinho Lutero e João Calvino, à obra de um compositor, Frank Martin. Qual é, para o senhor, a relação entre a arte e a teologia?
Golgotha, de Frank Martin, é reconhecido há muito tempo como uma obra-prima da música do século XX. Eu quis mostrar que também se trata de uma grande contribuição secular para o pensamento teológico contemporâneo. Ao invés de optar entre Karl Barth e Paul Tillich, eu o escolhi porque ele se situa, de forma crítica, no centro do debate: a partir da visão das três cruzes de Rembrandt, Frank Martin combina os textos evangélicos com meditações atribuídas a Agostinho, mas que provavelmente se devem à pena de Anselmo de Canterbury, que ele libera, com uma grande segurança evangélica, de todo motivo sacrificial.
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A religião crucificada. Entrevista com François Vouga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU