14 Abril 2013
“O problema da guerra e da paz, do conflito e da amizade entre os povos são problemas que a humanidade carrega há um longo tempo e talvez para sempre. A dificuldade é a de ser fiel ao ajuste evangélico que se põe como inovador a respeito da tradição judaica da guerra combatida em nome de Javé.”
O artigo é de Christian Albini, teólogo leigo italiano, publicado no blog Sperare per Tutti, 10-04-2013. A tradução é de Anete Amorim Pezzini.
Eis o artigo.
Celebramos os cinquenta nos da Pacem in Terris, a última encíclica de João XXIII, um texto que fez história. A Paz não estava na ordem do dia do Concílio Vaticano II. Nem o diálogo com o mundo contemporâneo. A contribuição corajosa de Lercaro. E de Dosseti. Uma contribuição de Giuseppe Alberigo (diretor do Instituto para a Ciência Religiosa João XXIII, de Bolonha).
Pode parecer paradoxal para quem recorda do clima dos anos 1960, mas no programa do Concílio não estava o tema da paz. Isso para quem conhece a preparação do Vaticano II não surpreende muito. Hoje deixa-nos consternados. O tema era caro a João XXIII, como homem que tinha vivido a experiência das duas guerras mundiais. Em particular, na última delas ajudando os judeus, como delegado apostólico na Turquia.
Homem de paz, portanto, mas que, de repente, encontra-se junto aos padres do Concílio naquele outubro de 1962, quando evento está se iniciando frente àquela que os mais velhos recordam como a última grande crise atômica do mundo contemporâneo, a crise de Cuba. É aqui que se situa a mudança de compromisso de João XXIII e, em certa medida, do Concílio Vaticano II sobre o tema da paz.
O papa decide intervir com um apelo tanto nos confrontos de Kennedy, presidente dos Estados Unidos, como nos de Khrushchev, líder da União Soviética. É um apelo que tem alguns efeitos incríveis. Que o pontífice faça um apelo pela paz é, de todo o modo, um costume, mas geralmente esses apelos caem no vazio. Naquele caso, o efeito foi diferente porque se mesclou ao final do bloqueio que os EUA havia imposto aos navios soviéticos que transportavam os mísseis para Cuba e à retirada de parte da União Soviética desses mesmos navios.
Tudo isso desencadeia no papa João uma mudança inesperada e sem precedentes: precisa que a Igreja intervenha na questão da paz de um modo novo; aqui nasce a ideia, a formulação, a preparação da encíclica Pacem in Terris, que sairá alguns meses mais tarde, na véspera da morte do papa no abril de 1963.
Finalmente uma guerra injusta
É a encíclica que ainda é sinal de contradição, porque sustenta que na idade atômica não é mais possível admitir uma guerra justa. Foi a partir de Santo Agostinho que o cristianismo, e depois o catolicismo romano, afirmava exatamente o contrário: havia muitas guerras injustas, mas também as guerras justas.
Na Pacem in Terris lê-se: “Nesta nossa era que se orgulha da força atômica, é contrária à razão” – e é interessante que o papa não houvesse escolhido dizer: “é contrária à fé cristã”, mas à razão – “que a guerra possa ser ainda apropriada para restaurar os direitos violados”.
Assim, não somente a guerra de agressão, mas também a que pretende restaurar direitos não é mais admissível.
Esse é o pano de fundo do debate naquele Concílio que não tinha entre seus argumentos a questão da paz que, depois, todavia, enfrenta. Assim como não havia na sua ordem do dia toda a temática das relações da Igreja com o mundo contemporâneo, tema que, no entanto, depois se revela central nos documentos do Concílio, sobretudo graças à contribuição do cardeal Lercaro e de Giuseppe Dossetti.
O Concílio está prestes a ser concluído, espremido por milhares de temas, precisamente aqueles que a preparação havia enfeixado confusamente, porque cada um dos membros da Cúria Romana havia tomado como ponto de honra inserir no mínimo três ou quatro itens na ordem do dia. O Concílio arrasta, portanto, esse lastro, e, nos meses de setembro a novembro de 1965, os trabalhos estão sobrecarregados por uma quantidade inumerável de textos, de assuntos frequentemente secundários para se discutir e eliminar.
E nesse emaranhado de temas estão alguns cruciais: há a relação da Igreja com a Palavra de Deus, que levará à constituição de Dei verbum; há um tema delicado e complicado ao mesmo tempo, o do relacionamento com a sociedade contemporânea que o Concílio enfrenta sem nenhuma preparação remota; excetua-se a Doutrina Social da Igreja, que pretendia derivar mecanicamente do Evangelho a resposta aos problemas contemporâneos sem chegar a qualquer solução.
Um estranho
A Pacem in Terris havia afirmado não somente a impossibilidade de uma guerra justa, mas também que se necessitava enfrentar os problemas da sociedade contemporânea a partir dela mesma. É ali que a Igreja deve ser capaz de ler os sinais dos tempos que não são uma fórmula milagrosa ou mágica, mas o reconhecimento dos elementos evangélicos na vida dos homens e das mulheres de nosso tempo.
O Esquema 13 – que se tornará a constituição Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo contemporâneo – é o recipiente de uma tentativa exaustiva que o Concílio fez para expressar-se sobre os temas da humanidade contemporânea.
Lercaro e Dossetti estavam convencidos da necessidade desse compromisso, mas também alarmados pela forte abordagem sociológica que o tema estava tomando.
Perto do final de setembro de 1965, criou-se a ocasião de expressar as incertezas e perplexidade sobre a abordagem do Esquema 13 durante a intervenção do monsenhor Amici, bispo de Modena. Lercaro propunha-se a uma intervenção explícita, direta, sobre o tema da paz que dividia de modo claro o Concílio e que via os bispos norte-americanos não disponíveis às formulações que retomassem a carta Pacem in Terris, isto é, que colocasse o problema dos armamentos e dos arsenais atômicos, a dissuasão nuclear e, portanto, a possibilidade de uma guerra justa.
Lercaro tem esta orientação e pede que se prepare um texto, mas uma complicação imprevista intervém: o Papa Paulo VI decide fazer uma viagem à ONU, e, ali, durante o discurso oficial sobre a guerra sustenta de alguma forma uma legitimidade.
Àquela altura o texto que Lercaro tinha em mãos era “fervente”, porque retomava e desenvolvia a tese da encíclica de João XXIII. Nele se lê: “a Igreja, hoje, não deve somente falar sobre a paz, rezar pela paz, evitar que os homens façam a guerra, mas façam a paz (isso também o fizeram Bento XV e Pio XII), mas deve ser feita com imensa coragem, com a audácia de João XXIII, profeta da paz, essa mesma feitura da paz pelos caminhos não humanos, mas puramente espirituais que lhe são próprios, e somente essa pode dar ao mundo a paz do próprio Cristo, que estabeleceu e estabelece a paz não por meio dos compromissos ou dos bons ofícios, mas por meio do sangue de Sua cruz. Mas, para fazer isso, a Igreja deve começar por julgar o mundo contemporâneo com a humildade mais sincera, na conscientização de seus próprios erros, de sua própria culpa, especialmente da sua política temporal no passado, no desinteresse mais puro na solidariedade mais amorosa com o próprio mundo, a Igreja deve, no entanto, levar isso ao seu juízo. Deve, segundo a palavra de Isaías, retomada por Mateus, anunciar a boa nova para o povo”.
Esse era o cenário do discurso de Lercaro, claramente não alinhado com o que, poucas horas antes, havia dito Paulo VI nas Nações Unidas. Esse discurso jamais foi pronunciado.
O regulamento do Concílio previa a possibilidade de que houvesse quaisquer intervenções escritas, e, de fato, o cardeal Lercaro decide utilizar o texto, entregando-o por escrito por volta de meados de outubro de 1965. Desse modo, uniu-se à imensa quantidade de textos escritos e apresentados, a perder o número. O texto tocava também no problema da fabricação das armas e dos arsenais nucleares.
O cardeal não se arrependeu de modo algum daquela convicção profunda expressa no documento e retomou, em diversas ocasiões, especialmente na homilia de 1.º de janeiro de 1968, por ocasião do primeiro Dia da Paz, convocado por Paulo VI. O problema da paz tornou-se um fato premente pelo agravamento da guerra do Vietnã e pela decisão dos Estados Unidos de tentar resolvê-lo com bombardeio maciço.
Colher a herança
Esta homilia custou ao cardeal o exílio da Igreja de Bolonha. De certa forma, tornou-se realidade para ele o que foi dito no documento apresentado ao Concílio: “A Cruz não se compromete com a paz mediante compromissos, mas por meio do sangue da Sua Cruz”.
Qual é a herança? Tudo foi perdido? Não acredito, mesmo se a mensagem do Concílio e a problemática da paz são, ainda, para a Igreja, de digestão difícil e laboriosa. Creio que seja justo recordar a tese das intervenções humanitárias nos Bálcãs, a qual João Paulo II muitas vezes expressou, não se sabe se como forma elegante de legitimação da guerra: é-lhe, porém, reconhecida uma inversão de tendência por ocasião da guerra do Iraque. Colocou em prática uma mudança significativa, a rejeição da intervenção armada, que se coloca em linha de continuidade com a grande ansiedade dos homens e das mulheres do nosso tempo, com a de João XXIII, e com o avanço que ele provocou mediante a encíclica Pacem in Terris.
O problema da guerra e da paz, do conflito e da amizade entre os povos são problemas que a humanidade carrega há um longo tempo e talvez para sempre. A dificuldade é a de ser fiel ao ajuste evangélico que se põe como inovador a respeito da tradição judaica da guerra combatida em nome de Javé.
O espírito do Evangelho é profundamente inovador: procuramos colher uma herança bela e fascinante, mas ainda desafiante como a que João XXIII, o Concílio,e o cardeal Lercaro nos deixaram.
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Profecia de Paz. Artigo de Christian Albini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU