14 Março 2013
"A eleição de um bispo de Roma vindo da periferia parece indicar, lembrando o título de uma peça de teatro do pensador católico existencialista Gabriel Marcel, que “Roma não está mais em Roma”. Ela deveria se abrir ao mundo inteiro, espalhada em diferentes realidades e com elas teria que se repensar", escreve Luiz Alberto Gómez de Souza, sociólogo, diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Candido Mendes.
Eis o artigo.
Um escritor inglês conservador, Hilaire Belloc, escreveu esta sentença terrivelmente reducionista e provinciana: “A Europa é a fé, e a fé é a Europa”! Porém não podemos esquecer que a Igreja primitiva nasceu no Oriente Médio e se desenvolveu na África do Norte (lembremos Santo Agostinho), mas depois, com a conversão dos povos eslavos e germanos que se derramaram sobre a Europa, cresceu muito na Idade Média nesse pequeno, mas logo dinâmico continente europeu. Isso quanto à Igreja Católica latina. A Igreja Ortodoxa seguiu implantada no oriente. E quando a Igreja Católica Romana veio há quinhentos anos à América, ou foi à África ou à Ásia, levou consigo um estilo europeu. O resto do mundo, “eram países de missão”.
Mas agora vem a ruptura. Chegou, depois de tempos imemoriais, um bispo de Roma não europeu, como o apóstolo Pedro. Francisco declarou: “Vocês sabem que o dever de um conclave era dar um bispo a Roma. Parece que meus amigos cardeais foram quase até o fim do mundo para buscá-lo”. Claro, aí se esconde sutilmente um eurocentrismo. Fim do mundo em relação a quê?
Aqui está um primeiro elemento positivo. Afinal, é na América Latina que se concentra a maioria dos católicos. É aqui que, de Medellín (1968) a Puebla (1979), em reuniões do episcopado da região, a Igreja, com exceções que indicarei adiante, viveu uma década que gosto de chamar gloriosa, em dia e mesmo às vezes à frente de seu tempo, num momento de ditaduras, denunciando as injustiças sociais, os crimes contra os direitos humanos, com o apoio às pequenas comunidades eclesiais de base e afirmando fortemente a centralidade da “opção preferencial pelos pobres”. Alguém falou, referindo-se à teologia da libertação, da volta das caravelas. Elas vieram, no século XVI da Europa, trazendo soldados e missionários. Agora elas voltavam da América Latina, com uma nova maneira de fazer teologia. E no caso atual, levando Francisco, que foi de Buenos Aires a Roma.
Há aí um elemento importante. Francisco se apresentou, basicamente, como o bispo de Roma e é enquanto tal – como o primeiro entre os bispos católicos do mundo - que exerce o magistério universal. Correntemente é conhecido como papa, mas antes de tudo é bispo romano.
O nome de Francisco é muito significativo. Representa uma ruptura e uma novidade nos nomes da sucessão dos bispos de Roma. E faz pensar imediatamente em Francisco de Assis, simples leigo e em seu revolucionário ideal de pobreza, ali na Úmbria ao norte de Roma, no lado oposto do então poderoso e nobre papa Inocêncio III. Bergoglio, escolhendo o nome, não estará querendo colocar o pobre no centro das atenções? Mas também, sendo jesuíta, o primeiro dessa congregação na história do papado (tínhamos sonhado antes com outro jesuíta, Martini), certamente lembrou-se também de um dos fundadores da Companhia de Jesus, Francisco Xavier, que levou a fé de sua Igreja à Índia, depois até o Japão e pretendeu também entrar na China, o enorme e isolado Império do Meio. Ele e outros jesuítas que o sucederam nessa missão, como o famoso Padre Matteo Ricci, quiseram repensar o estilo e a liturgia romana nessas novas realidades. O míope provincianismo europeu da cúria romana daquele tempo não o permitiu. Quem sabe se o novo papa, na tradição desses jesuítas, não trabalhará na dimensão de uma Igreja da diversidade, em tempos planetários e ao mesmo tempo pluralistas?
Nos últimos anos, a cúria romana foi alvo de severas críticas, que envolveram os dois últimos secretários de estado (espécie de primeiros ministros), o salesiano Bertone e, antes dele, outro italiano, Angelo Sodano. Essa posição frente à cúria deve ter influenciado fortemente o conclave. A eleição de um bispo de Roma vindo da periferia parece indicar, lembrando o título de uma peça de teatro do pensador católico existencialista Gabriel Marcel, que “Roma não está mais em Roma”. Ela deveria se abrir ao mundo inteiro, espalhada em diferentes realidades e com elas teria que se repensar.
Nesta perspectiva, uma primeira tarefa urgente é transformar o governo centralizado da Igreja Católica Romana. O relatório, recentemente preparado por três cardeais já idosos, pareceria indicar graves problemas no centro da Igreja, nos campos da sexualidade, da corrupção financeira e da luta pelo poder. Francisco vem de fora; entretanto, membro de cinco congregações romanas, já deve estar razoavelmente informado de alguns desses problemas. Como reagirá ao ler o documento que lhe será entregue lacrado? Tenho a impressão de que o coração do suave João Paulo I não resistiu e morreu aos 33 dias, ao conhecer as graves crises que, naquele momento, acometiam a Igreja, como os escândalos da pedofilia que começavam a vir à tona, e entre outros, o grave caso da diocese de Boston. Possivelmente, algumas dessas crises ainda persistem hoje.
Francisco conseguirá fazer as reformas inadiáveis? Um indicador desta possibilidade – ou impossibilidade - será a nomeação do próximo secretário de estado, seu auxiliar direto. Os problemas com o anterior, Bertone, poderão ter influído na renúncia de Bento XVI. E logo depois, para Francisco, virão as nomeações dos dicastérios romanos (ministérios em clave secular), com esperadas nomeações vindas dos vários continentes e, esperemos, com prefeitos renovadores a serviço das dioceses do mundo afora. Esse processo de universalização já começou em pontificados anteriores, mas poderia incrementar-se agora com novas exigências.
Também há que prestar atenção à nomeação de novos cardeais. Bento XVI, nas escolhas dos últimos consistórios, fortaleceu a Europa e a cúria romana. Levantando hipóteses sobre o nome do papa, cheguei a pensar num possível Leão XIV: enganei-me agradavelmente com a surpresa do nome inédito.
Entretanto, a aposta se baseava na experiência de Leão XIII que, no século XIX, depois de dois papas anteriores ultrareacionários, Gregório XVI e Pio IX, anunciou uma abertura, dirigiu-se mais adiante ao mundo operário e indicou, ao ser eleito, que estivessem atentos às nomeações dos próximos cardeais, para ver a diferença de seu estilo. Escolheu então o grande teólogo recentemente convertido do anglicanismo, John H. Newman, mal visto por setores tradicionais na Igreja Católica Romana na Inglaterra e inclusive pelo outro cardeal inglês, Manning, ultrapapista no concílio Vaticano I. Newman, que Bento XVI admirava e recentemente beatificou, foi um crítico da centralização que se fortaleceu depois do Vaticano I e escreveu um interessante tratado, dizendo que a doutrina tem que se desenvolver na história e, portanto, mudanças periódicas são necessárias.
Francisco poderia estar numa direção em sentido contrário do Vaticano I, reforçando o Vaticano II e a ideia de colegialidade que esse concílio enfatizou, num processo de descentralização, de participação e de diálogo com as igrejas locais.
Vários temas chamados incorretamente de dogmas (os dogmas são em número menor do que se pensa), fazem parte de medidas disciplinares e podem e mesmo devem mudar com os novos tempos. Aí estão o que eu chamo de questões congeladas, como o celibato obrigatório, as normas sobre a contracepção, o uso dos preservativos e a moral sexual em geral, assim como a participação das mulheres nos ministérios (serviços) da Igreja, nos vários níveis e, inclusive - o que enfrentará maiores dificuldades - a ordenação de mulheres.
Bergoglio, como arcebispo de Buenos Aires, parecia bastante conservador em várias dessas áreas, ainda que tenha sido mais flexível no que se refere aos contraceptivos, para situações graves. Mas quem sabe, não poderia abrir um debate a respeito destes e de outros assuntos, para um discernimento – ideia tão cara aos jesuítas – de toda a Igreja nos próximos tempos? Vários desses temas são discutidos a boca pequena, mas há, nas estruturas eclesiásticas atuais, uma autocensura que os dois últimos pontificados reforçaram. Leigas e leigos no mundo eclesial, teólogos, religiosos, religiosas, clérigos e bispos, deveriam sentir-se à vontade para pensar livremente e em voz alta.
Francisco apareceu na sacada da basílica vaticana apenas com a batina branca, sem a capa de arminho de papas anteriores. A vida simples e despojada dele poderia indicar uma mudança nas pompas e a superação de uma certa teatralidade no Vaticano. Vendo o conclave, eu me reportava, com certo desconforto, ao tempo do renascimento. Dizem que Bergoglio não tinha automóvel, andava de metrô, deixou o palácio episcopal e foi morar num apartamento, como nosso D. Hélder, que se mudou para a sacristia de uma pequena Igreja de Recife. Aliás, D. Hélder, sempre ousado e criativo, propôs a Paulo VI entregar o Vaticano à UNESCO e ir viver na periferia popular de Roma. Isso não aconteceu, evidentemente, mas Paulo VI aboliu certos aspectos de ostentação.
Contudo, há uma mancha no passado de Bergoglio. Ele era provincial dos jesuítas durante os governos militares. Acusam-no, e à maioria dos bispos argentinos, de terem-se calado nos períodos ditatoriais, à diferença da igreja chilena e da nossa CNBB. Uns poucos bispos argentinos foram valentes e um deles, Enrique Angelelli, muito provavelmente foi assassinado. Um jornalista argentino, Horacio Verbitzky, denunciou Bergoglio por talvez ter entregado dois jesuítas à repressão, mas ao que tudo indica não há provas a respeito e o imputado negou enfaticamente. Em todo o caso, pesa o silêncio; e não posso deixar de pensar no outro silêncio de Pio XII durante a perseguição aos judeus, ainda que, como se sabe, em privado tenha acolhido alguns e ajudado muitos a fugirem. Também em privado parece ter havido ações positivas de Bergoglio. Mas só depois da queda dos militares, um pouco tarde, foi que o episcopado argentino fez autocrítica e condenou os anos de chumbo; já então estava ali Bergoglio, primeiro como bispo auxiliar e depois como arcebispo de Buenos Aires. Por isso, há hoje uma reação dividida na Argentina: uma maioria está feliz por ter um Papa de sua nacionalidade, mas outros recordam os tempos negros da pior ditadura do continente e a posição controvertida do provincial e futuro arcebispo de Buenos Aires. Bem diferente da situação de valentes jesuítas da América Central, onde o filósofo e teólogo jesuíta Ignacio Ellacuría e cinco companheiros foram mortos pelos militares. Salvou-se na ocasião, por estar no exterior, outro jesuíta, o notável teólogo Jon Sobrino, que fora assessor do bispo D. Oscar Romero também assassinado.
Mas agora é tempo de ter esperança. Temos um papa da periferia, de uma América Latina que pesa quase nada na geopolítica do mundo e que agora chega ao centro da Igreja Católica Romana. Poderia ser uma surpresa, como o bom papa João XXIII, considerado conservador no seu passado de bispo, de quem não se esperava muito no começo e que transformou profundamente a Igreja, convocando o concílio Vaticano II e convidando para um “aggiornamento”.
Para isso, o novo bispo de Roma precisaria abrir um diálogo com as igrejas locais e aceitar uma descentralização nas decisões, nas pastorais e nos ritos da liturgia. Deveria entrar em comunicação permanente com as comissões episcopais, como a nossa CNBB. O Vaticano teria que ser reduzido a uma administração e não funcionar como um poder paralelo. Haveria também que diminuir o poder dos núncios: alguns falam de abolir esse posto, ou deixá-lo apenas como uma embaixada junto aos governos. Os núncios são normalmente italianos, sem experiência pastoral, saídos em geral do Colégio Caprânico, que forma diplomatas, e se colocam muitas vezes como obstáculos para um contato direto do bispo de Roma com as igrejas locais. A participação dos bispos irmãos com experiência pastoral dessas igrejas locais, em comunhão com o irmão maior romano, deveria crescer. As comissões nacionais teriam de ter um protagonismo mais forte junto a Francisco, por exemplo, na nomeação de bispos de sua região, que elas conhecem melhor do que ninguém.
Muitos são os temas que esperam o novo papa. O fardo e o peso da responsabilidade de Francisco parecem ser enormes. É a ocasião de esperar e, sobretudo rezar, e rezar forte. Um momento tocante, de enorme significado, foi quando Francisco, com sincera humildade, pediu à multidão na praça, e em certo sentido ao mundo inteiro que o seguia pela televisão, que orasse e lhe desse uma bênção e, em silêncio, se inclinou por uns segundos. Como João XXIII indicou ao convocar o concílio, esperemos que ele, homem aparentemente simples e comunicativo, traga sinais de “uma inesperada primavera”.
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Francisco, um bispo de Roma que vem da periferia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU