Por: Cesar Sanson | 06 Fevereiro 2013
“O FSM já não é apenas o espaço dos movimentos sociais de esquerda embora mantenha-se anticapitalista e antineoliberal. Há novos atores, novas agendas, novas lutas (...) estas novas agendas trazem consigo novas contradições e dilemas. A própria composição dos governos que apoiam o FSM também se ampliou e segmentos antes críticos e contra o processo agora estão, pelo menos teoricamente, no mesmo campo político”. O comentário é de Mauri Cruz, advogado socioambiental, dirigente nacional da ABONG, membro do Grupo de Reflexão e Apoio ao Processo do FSM – GRAP em artigo no sítio do Ibase.
Eis o artigo.
As pessoas que acompanham os processos do Fórum Social Mundial à distância devem estar se perguntando o que está acontecendo: notas de movimentos sociais criticando a realização do FSM em Porto Alegre, denúncias sobre o caráter pouco crítico do evento, debates acalorados sobre quem fala em nome do FSM. Tanta discussão que alguns até se perguntam: teria chegado ao fim a maravilhosa experiência alteromundista nascida em Porto Alegre em 2001?
Perguntas pertinentes e necessárias. Mas tranquilizo tod@s, o Fórum Social não está em risco e terá sua edição Mundial na Tunísia de 26 a 30 de março: como centro, a crise social ambiental e econômica e o balanço dos movimentos sociais e das rebeliões ocorridas no mundo árabe, Europa e EUA. Infelizmente não podemos dizer o mesmo das nossas edições em Porto Alegre. Afinal, o que estaria acontecendo no berço do FSM? Trago aqui algumas reflexões para provocar um debate mais profundo, um pouco além das aparências.
Sou daqueles que reconhecem no processo do FSM uma das experiências mais importantes produzidas pelas esquerdas nas últimas décadas, porque nasceu apresentando a necessidade de um outro mundo possível, justamente quando o neoliberalismo se apresentava como caminho único para a humanidade. Portanto, o FSM tem em sua essência o germe da resistência ao capitalismo, ao neoliberalismo e a globalização. Foi também, por isso, que o FSM unificou uma ampla rede de atores e movimentos sociais que já existiam no seio das sociedades internacionais e que comungavam com estas agendas. Tornou-se a canalização da luta daqueles que não acreditavam – e não acreditam – nas promessas de bem comum anunciadas pelo capitalismo.
Mas o Fórum trouxe mais do que isso. Por sua metodologia radicalmente democrática, o trabalho em rede, o reconhecimento da legitimidade de movimentos e atores variados, o FSM também rompeu com uma visão maniqueísta de olhar a sociedade dividida simplesmente entre capital e trabalho. Reconheceu, portanto, a diversidade de movimentos e atores sociais que, à época, eram incipientes e hoje são atores expressivos da realidade brasileira, latino-americana e mundial, movimentos que a luta dos movimentos sociais históricos ainda não reconhecia.
A metodologia radicalmente democrática e a incorporação e reconhecimento de novos atores trouxeram uma vitalidade extraordinária e uma nova dinâmica para as lutas sociais. Trouxe agendas e temas antes secundarizados, tais como as questões de gênero, a agenda ambiental, a agenda dos quilombolas, dos territórios indígenas, do direito à liberdade sexual, dos direitos de crianças e adolescentes, de novas formas de relações econômicas não capitalistas. Estes movimentos, já à época, não viam no FSM apenas o lugar da crítica ao sistema, mas um lugar para difundir e expressar suas novas bandeiras e pensamentos.
Passados alguns anos e algumas vitórias eleitorais de partidos identificados com o campo democrático e popular, as bandeiras e propostas do FSM foram incorporadas por vários governos, em especial na América Latina. Estas experiências surtiram resultados positivos e iniciaram um lento processo de inclusão social e produtiva destes segmentos sociais mais vulneráveis, além de ampliar a dimensão democrática no continente. Hoje, a América Latina se difere do resto do mundo e o FSM tem muito a ver com isso.
Com a crise capitalista de 2008, as promessas neoliberais caíram por terra. As denúncias de insustentabilidade social, econômica e ambiental do modelo neoliberal acabaram se concretizando e o FSM foi demandado a mudar de papel: sair da resistência e denúncia e colocar-se como propositor de novas propostas e políticas. A crise ambiental também tomou seu lugar na agenda e a insustentabilidade do modelo de desenvolvimento capitalista tem sido colocado em xeque por amplos segmentos sociais. Muitos destes nem se reconhecem como de esquerda. Para ampliar ainda mais este novo momento histórico, em 2010 ocorrem as revoluções no mundo árabe e um grande contingente de novos sujeitos, integrados por redes sociais e amparados – inclusive pela mídia tradicional -, tomam conta do cenário internacional.
Muitos destes novos sujeitos se encontraram nos processos do FSM mundo afora e a maioria reconhece no FSM um espaço de articulação, convergência e construção do novo. A prova disto são os inúmeros eventos ligados ao processo do FSM que ocorrem todos os anos em várias partes do mundo e, apesar das enormes dificuldades, a existência de uma edição mundial centralizada a cada dois anos, que mobiliza pelo menos de 80 mil militantes de todo o planeta.
Porto Alegre, o berço desta experiência, teve um papel de destaque nas primeiras edições naquele contexto de denúncia e resistência. Naquela época, a divisão dos governos local e nacional também eram polarizados, havendo no Governo Federal um projeto nitidamente neoliberal e, no Rio Grande do Sul, um Governo de caráter democrático e popular. Os Fóruns Sociais Mundiais de 2001 a 2005 em Porto Alegre articularam milhares de atores sociais e significaram edições memoráveis e emblemáticas que fizeram – ainda hoje fazem – história e estão gravadas em nossos corações e mentes. De 2005 a 2010, houve um vácuo de atividades relativas ao FSM em Porto Alegre em função de governos com objetivos que não se identificavam essa agenda.
A partir de 2010 iniciou-se um movimento de retomada de atividades do FSM na cidade. Desta vez, a situação se inverteu e foi o FSM que acolheu Porto Alegre e este reencontro foi retomado nas edições do FSM 10 Anos em 2010 e do FSTemático 2012, Crise Capitalista, Justiça Social e Ambiental. Só que as realidades nacional e internacional mudaram. A realidade do FSM também mudou. E Porto Alegre havia assistido a estas mudanças de longe.
O FSM já não é apenas o espaço dos movimentos sociais de esquerda embora mantenha-se anticapitalista e antineoliberal. Há novos atores, novas agendas, novas lutas. As questões culturais, ambientais, dos direitos humanos, da novas formas de economia social não mercadológica tomam espaço. Mas estas novas agendas trazem consigo novas contradições e dilemas. A própria composição dos governos que apoiam o FSM também se ampliou e segmentos antes críticos e contra o processo agora estão, pelo menos teoricamente, no mesmo campo político.
Este novo contexto culminou com a mobilização de dois eventos distintos em 2012, em períodos muito próximos, e liderados por grupos e organizações diferentes, todos em Porto Alegre. O primeiro, o FSM Palestina Livre, ocorrido em novembro de 2012, foi liderado pela CUT. Um evento concebido e organizado por entidades autônomas dentro da carta de princípios e das linhas políticas do FSM que atingiu parcialmente seu objetivo, tendo mobilizado um pequeno número de pessoas para um FSM. Mas que pautou o tema na sociedade brasileira. Produziu, no entanto, algumas fissuras políticas no seio das organizações promotoras que levarão algum tempo para cicatrizarem.
Já o segundo é uma tentativa da realização de um FSM Temático no final deste mês de janeiro, liderado pela Força Sindical, com uma ingerência direta de setores da Prefeitura de Porto Alegre na sua concepção e organização. O que, a meu ver, compromete irremediavelmente o seu caráter de Fórum Social autônomo. Este, correndo o risco de ser uma panaceia política, não guarda qualquer relação com a carta de princípios e as linhas políticas do FSM.
Como disse no início, minha intenção com este texto é provocar um debate para além das aparências, esperando que todos os atores envolvidos nestes processos reflitam com calma para que não se rompam frágeis processos de alianças no seio dos novos e velhos movimentos sociais que vem sendo construídas por dentro do processo do FSM há longos anos. Na minha modesta opinião, os organizadores do FSM Temático Porto Alegre 2013 deveriam suspender o evento buscando recompor a aliança política com todos os demais setores em prol de um futuro encontro unitário em 2014. E estes, se disporem a enxergar além dos defeitos, mas também as qualidades de seus divergentes.
Ouso dizer que o FSM não precisa mais de Porto Alegre. São nossos movimentos e nossa cidade que precisam se redescobrir, rejuvenescer e reconhecer no novo que o FSM tem evidenciado. Porque o que está em jogo não são as disputas locais, regionais ou mesmo nacional dos brasileiros, mas o fio de esperança de milhões de cidadãos do mundo inteiro que veem no FSM uma possibilidade real de construirmos um outro mundo possível.
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O que há com o FSM de Porto Alegre? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU