Por: André | 17 Dezembro 2014
A fotógrafa norte-americana Stephanie Sinclair percorre o mundo para retratar a situação de meninas e adolescentes obrigadas a casar. O resultado é o ensaio fotográfico Muito jovem para se casar, que está em exposição em Buenos Aires. Aqui, a autora conta as histórias que conheceu de perto. E como age para que seu trabalho sensibilize para este fenômeno.
Fonte: http://bit.ly/1xqhhoZ |
A reportagem e a entrevista são de Soledad Vallejos e publicadas no jornal argentino Página/12, 14-12-2014. A tradução é de André Langer.
No mundo, a cada dois segundos uma menina se casa. Costumam ser casamentos em que prima a vontade da família e não a da nubente; são arranjados quando as meninas ainda não têm idade suficiente para votar, tomar bebidas alcoólicas ou fazer alguma coisa reservada aos adultos. Esse universo em que meninas de 11 anos podem ser casadas com homens de 40 anos e, logo depois, começar a ter filhos, revelou-se à fotógrafa norte-americana Stephanie Sinclair há mais de 10 anos.
Em 2003, ela estava no Afeganistão fazendo a cobertura de eventos pós-11 de setembro para a revista National Geographic. Falando com alguém, vendo alguma coisa, como de relance, tomou conhecimento da existência dos casamentos de meninas. Retratou o que pôde. Deixou o Afeganistão, mas a partir de então nunca mais largou o tema, que, com os anos e viagens para países de todo o mundo, transformou-se em Muito jovem para se casar, um longo ensaio fotográfico que, com o apoio do Unfpa (Fundo das Nações Unidas para a População), também viaja, mas para contar o que Sinclair encontrou. A partir desta semana, 34 dessas imagens (belas, impactantes, ricas em muitos sentidos) estão em Buenos Aires, e permanecerão em exposição no Museu Nacional de Arte Decorativa (Libertador, 1902) até o dia 08 de março.
Ghulam tinha 11 anos quando se casou com Faiz, um homem de 40 anos, barba profusa e turbante branco. Sua família fez todos os arranjos, de modo que ela conheceu aquele que seria seu marido somente alguns minutos antes da cerimônia do casamento. Na foto, sentados ambos sobre uma almofada colorida como fundo, ele olha para a câmera; ela, com o rosto para frente, olha de relance para a sua direita: para ele. Aconteceu no Afeganistão. A menina teve que abandonar o colégio alguns meses antes, mesmo que o seu sonho fosse estudar e ser professora; “às vezes, os pais tiram suas filhas do colégio para protegê-las de possíveis relações sexuais fora do casamento”, informa um cartaz na parede. A alguns metros dali, a fotógrafa Sinclair recorda que logo depois da cerimônia falou com Ghulam. “Perguntei: ‘E como se sente agora?’ E ela me disse: ‘Você, como se sentiria?’”
Sinclair esteve em Buenos Aires algumas poucas horas, suficientes para acompanhar a montagem de suas fotos e sua apresentação, em companhia de autoridades do Unfpa, que trouxe a mostra no marco da campanha de sensibilização e prevenção de gravidez na adolescência “Falar é prevenir”. “O casamento precoce não é um fenômeno alheio à região, sobretudo na Nicarágua, República Dominicana, Guatemala, Bolívia, Peru, Haiti, Colômbia e Brasil. Inclusive, em nossa região há meninas casadas em situação de poligamia”, assinalou durante a apresentação o diretor regional do Unfpa, Esteban Caballero.
“O casamento infantil é um tema que choca; talvez em nossa região não seja muito habitual prometer meninas em casamento, mas sim o fato de que haja meninas em situações nas quais não quiseram cair, para as quais não deram a possibilidade do consentimento. Também a gravidez não desejada é uma situação desse tipo, na qual uma menina é lançada de modo prematuro e na qual não deveria estar”, informa Caballero. As cifras de meninas e adolescentes mães, na Argentina, na região e em nível global, pintam um panorama no qual resta muito a ser feito.
Fotografar para contar
Todas as histórias são únicas, tanto como as imagens de cores belíssimas que retratam instantes desses relatos. E, no entanto, todas as histórias se parecem. Somadas as idades de três meninas do Iêmen que posam quase sem posar para a câmara, vestidas de branco e com buquês de flores, chegam apenas a 36 anos. Galiyaah e sua irmã Sidaba, de, respectivamente, 13 e 11 anos, casaram-se no mesmo dia que sua prima Khawlah, de 12 anos; a terceira, com um tio de suas primas. Em meio a um campo do Nepal, Niruta, de 14 anos e com nove meses de gravidez, recolhe a colheita que fez no seleiro, que tem com seu marido de 14.
No Afeganistão, a mãe de Roshan, uma menina de oito anos, chora porque horas depois sua filha contrairá matrimônio com Said, de 55 anos: “Vendemos as nossas filhas porque não temos dinheiro suficiente para alimentar todos os nossos filhos”. Na Índia, Rajani, de cinco anos, nem sequer olha para o menino sentado ao seu lado, que logo será seu marido. Nujood, do Iêmen, tem apenas 12 anos, mas está há dois divorciada do homem de 20 anos mais velho com quem a fizeram casar; sorri; trabalha para que suas meninas não sejam obrigadas a se casarem. Na Guatemala, Aracely, de 15 anos, amamenta o seu bebê de 15 meses enquanto prepara a comida; é mãe solteira porque seu marido, de 34 anos, a abandonou no quarto mês de gravidez.
“Aprendi que o casamento de meninas é algo que não acontece somente no Oriente Médio, mas também em mais de 50 países. Estive na Índia, Etiópia, Nepal, Iêmen, Guatemala, para documentar o fenômeno, e ainda resta muito. As estatísticas dizem que, no mundo, a cada dois segundos uma menina se casa. Enquanto estamos aqui conversando, quantas terão se casado? Não apenas adolescentes de 16, 17 anos, o que já é algo grave, mas também meninas de cinco, 10 anos. Às vezes, são casamentos completos, em todo o sentido do termo”, detalhou Sinclair ao apresentar o trabalho.
Para casar-se ou por já estarem casadas, as meninas costumam deixar seus estudos e “sua trajetória de vida muda radicalmente”. “Na Guatemala, conheci algumas meninas de 11, 12, 13 anos casadas por sua própria vontade. E não em todos os casos indígenas, que sempre se supõe que são as mais apegadas a esta prática, mas também mestiças. Um especialista em direitos humanos me dizia: ‘Elas não têm idade para votar, não podem comprar bebida alcoólica, não podem fazer outras coisas reservadas aos adultos. E, no entanto, decidem se casar’. Não são decisões de meninas. Às vezes, elas se manifestam a favor desse casamento, mas ainda são meninas”.
Sinclair percorreu países e povoados nos quais a tradição se soma à necessidade, porque as famílias necessitam do dinheiro do dote em troca do qual abençoam o casamento. Por isso, reflete a fotógrafa, “esse projeto é para provocar a reflexão sobre o valor das mulheres, e sobre o que acontece quando uma menina não tem valor, ou tem valor apenas de moeda de troca por um homem”.
No caminho, Sinclair também se deparou com histórias de mudança. Há seis anos, na Etiópia, presenciou o casamento de Destaye, de 11 anos, e Addisu, de 23. Ele era um líder religioso, razão pela qual a comunidade insistiu em que se casasse com uma virgem. Logo depois, começaram a sentir a pressão social para que a menina deixasse de estudar e fosse mãe; isso, além disso, os amarrava à situação de pobreza na qual já se encontravam. “Ele começou a refletir sobre isso. Agora é contra o casamento de meninas, motivo pelo qual ele sofreu o que sofreu Destaye. Como é um líder religioso, e tem ascendência sobre a comunidade, pode conseguir uma mudança”.
Após 11 anos do início do projeto, continua buscando histórias e fazendo fotos?
Sim, porque é um problema grave em mais de 50 países. E nem sempre se manifesta da mesma maneira. Há culturas diferentes; em alguns lugares, como a Índia, as meninas podem casar-se muito jovens, como aos cinco anos.
Como escolhe os lugares para onde ir?
Pesquiso, faço uma busca nos lugares onde estão os maiores números, por região. E procuro que sejam lugares diferentes, diversificar quanto à cultura e religião. Não quero restringir-me apenas a uma comunidade, a uma religião, porque é realmente um tema mais de sociedades em desenvolvimento. É algo que não só afeta e depende da educação de alguns indivíduos, mas também é muito vinculado à comunidade.
Como é recebida nesses lugares?
Sempre vou com uma equipe de pessoas do local, da comunidade, que querem que estas práticas acabem. Dessa maneira, não sou a única que formula perguntas; também meus tradutores as fazem e, em alguns países, até pessoas ligadas ao governo me acompanham. Em todos os casos, há pessoas que estão apoiando o projeto. Inclusive pessoas da família que está envolvida no casamento me facilitam o acesso a isso, porque acreditam que não deveria acontecer, mas não têm como evitá-lo. Então, ao menos me dizem: “Documenta isso, mostra às pessoas que isso está acontecendo”.
Além de continuar o projeto, continua trabalhando como fotojornalista em imprensa gráfica. Em grandes empresas jornalísticas é simples oferecer e publicar este tipo de material?
As fotos da mostra foram bastante publicadas. Trabalho como fotógrafa do National Geographic. É realmente meu principal trabalho, fora deste projeto. Mas isto também saiu em outras revistas. Publiquei tudo, mas em separado, individualmente, por histórias. Agora estou trabalhando em uma história da Guatemala. Então, não publico tudo necessariamente por inteiro. Faço-o em fragmentos ou como fragmentos. A parte da violência (N de R.: algumas fotos abordam especificamente casos de meninas humilhadas, gravemente machucadas fisicamente, após fugirem de casamentos forçados) é uma, a de casamentos é outra. Publicar dessa maneira é mais fácil e é também mais prático do ponto de vista financeiro, porque é possível conseguir apoio para o projeto seguinte.
Qual foi o último lugar para o qual viajou para este projeto?
Estive na Guatemala recentemente, foi a última viagem. Não estou certa de qual será o próximo lugar para onde irei. Gostaria de ir para a Nigéria, porque há uma menina agora que está sendo submetida a um julgamento por matar o seu marido. Acredito que é uma história importante. Há temas também nos campos de refugiados sírios. Há uma série de aspectos que ainda quero trabalhar neste projeto.
Mantém-se em contato com algumas dessas meninas?
Este ano visitei a Destaye, a menina da Etiópia, que tem 17 ou 18 anos agora. Ela se casou aos 11; estive no seu casamento. Tem dois filhos. Visitei-a três vezes desde que se casou. Ela viu todas as fotos; seu marido também.
E o que dizem das fotos, do projeto?
Bom, é sua realidade. Dizem: “ok, lindas fotos”. E têm um álbum que está em muito boas condições. Entendem o projeto e dizem: “este é o nosso casamento”. E ela agora gosta dele. Nessa situação, alguns homens são melhores que outros. Alguns deles se apaixonam. Penso que isso acontece mesmo em casamentos arranjados; depois de algum tempo em alguns deles há amor. E ele, neste caso, é realmente gente boa. Ele a respeita e ela sabe que em algum ponto teve sorte, porque apesar de ter sido casada aos 11 anos, casou-se com alguém de altíssima moral. Ele já era sacerdote, assim que estava especialmente preocupado com o aspecto moral.
Não acredito que seja a realidade em todos os casos. Acredito que, nos casos em que os varões também são jovens, as meninas são mais seus pares. Estive novamente no Nepal este ano e visitei um casal casado há sete anos. E o casal se deu muito bem, criou afinidades, mas ela tinha 12 anos e ele 14 anos. Educaram os seus filhos juntos e foram responsáveis por si mesmos. As meninas costumam ser afastadas de suas famílias, e os pais dele morreram. Por essa razão, foi um pequeno casal de adultos.
Vou continuar trabalhando nisto, porque as pessoas estão prestando muita atenção agora. Por essa razão, é um bom momento para continuar.
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Casamentos fora de hora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU