01 Dezembro 2014
Entre o papa e a liderança turca, houve um intercâmbio direto e franco, não exclusivamente ritual, embora com muitos subentendidos, como o ambíguo papel da Turquia na guerra na Síria, além da generosa obra de acolhimento aos refugiados.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minnesota, nos EUA. O artigo foi publicado no sítio TheHuffingtonPost.it, 28-11-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Concebida como peregrinação a Istambul, a Constantinopla da Igreja ortodoxa oriental, para um encontro com o Patriarca Bartolomeu, a visita do Papa Francisco também tem uma densidade política e pública de destaque.
Viu-se isso desde os primeiros atos da visita a Ancara: a homenagem ao mausoléu de Ataturk, o fundador da moderna Turquia, e o discurso ao mastodôntico novo palácio presidencial de Erdogan (também este praticamente um mausoléu para o político mais importante da Turquia contemporânea, Erdogan, que fez com que ele lhe fosse construído sob medida).
Francisco, como político consumado que é (basta ver o que o papa está fazendo com uma Cúria romana totalmente nomeada pelo seu antecessor), apertou as teclas certas para sinalizar o interesse da Santa Sé pelo papel da Turquia no quadro do Oriente Médio: liberdade religiosa, liberdade de expressão e direitos fundamentais para todos os cidadãos, independentemente da sua religião.
O papa fez isso em dois lugares e contextos diferentes: parou em silêncio orante em frente ao túmulo de Ataturk, o mais laicista e iluminista dos líderes da Turquia moderna, que modernizou e laicizou, em pouquíssimo tempo, o país que se tornou, de repente, órfão do Império Otomano no fim da Primeira Guerra Mundial.
O futuro Papa João XXIII, na Turquia como diplomata vaticano entre 1935 e 1944, teve que renunciar à túnica de bispo católico para se vestir com roupas civis, por causa de uma lei do governo turco contra os hábitos religiosos, de todas as religiões. Mas, hoje, o dogma da "laicidade turca" foi amplamente redefinido pelo homem forte, o presidente da República da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, no sentido de uma mera tolerância (e nem sempre) concedida pelo sistema político e jurídico turco aos não muçulmanos. A oração do Papa Francisco diante de Ataturk equivale a uma não polêmica, mas clara reivindicação do direito à liberdade religiosa para todos os cidadãos.
Ele foi ainda mais claro no discurso ao palácio presidencial, em que o papa falou claramente do nexo entre liberdade religiosa e paz no Oriente Médio: "A liberdade de religião e de expressão estimulam o florescimento da amizade que leva à paz".
Francisco falou em termos inequívocos das expectativas da Santa Sé em relação à Turquia: "Para tal fim, é fundamental que os cidadãos muçulmanos, judeus e cristãos – tanto nas disposições de lei, quanto na sua efetiva implementação – gozem dos mesmos direitos e respeitem os mesmos deveres".
A resposta de Erdogan (assim como do presidente dos Assuntos Religiosos turco, algumas horas depois) foi um apelo contra a islamofobia no Ocidente, como se a Igreja não fosse já muito ativa contra a islamofobia e como se o papa fosse o representante do Ocidente, em um desvelamento do paradigma étnico-religioso na base da ideia de cidadania na Turquia de Erdogan hoje.
Entre o papa e a liderança turca, portanto, houve um intercâmbio direto e franco, não exclusivamente ritual, embora com muitos subentendidos (como o ambíguo papel da Turquia na guerra na Síria, além da generosa obra de acolhimento aos refugiados).
Esse intercâmbio, no início da visita de três dias, lança uma luz sobre o valor dessa visita a partir de dois pontos de vista diferentes. O primeiro: as diferentes experiências de "liberdade religiosa" no mundo. Os bispos católicos norte-americanos combatem há anos contra Obama, acusado de querer obrigar os católicos a pagarem seguros de saúde que cubram também as despesas pela contracepção.
Os católicos no Oriente Médio lutam por um direito muito mais elementar à liberdade religiosa, que não os exclua dos direitos de cidadania. Isso diz muito sobre os desafios muito diferentes que a Igreja Católica tem pela frente quando fala para a política: nem a "laicidade" turca, nem a "separação Estado-Igreja" nos EUA são sistemas sem problemas para a Igreja mais global de todas.
O segundo ponto de observação parte da visita anterior de um papa à Turquia. No dia 28 de novembro de 2006, há exatamente oito anos, o Papa Bento XVI chegava à Turquia, depois da crise causada com o Islã mundial pelo discurso proferido na Universidade de Regensburg dois meses antes.
O Vaticano do Papa Ratzinger e do cardeal secretário de Estado, Bertone, sentiu e cedeu à pressão, na época, para se pronunciar a favor da entrada da Turquia na União Europeia. Passaram-se somente oito anos, mas muita coisa mudou desde então, seja no Oriente Médio, seja no Vaticano.
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Papa Francisco na Turquia: liberdade religiosa e direitos civis para todos. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU