11 Novembro 2014
Quatro dias após a epidemia de ebola ser decretada em 22 de março deste ano em Guiné, o médico generalista Paulo Reis, de 42 anos, partiu para o país africano, onde atendeu pacientes durante dois meses. De lá para cá, o carioca vestiu o jaleco para mais duas temporadas em Serra Leoa. De volta ao Brasil há menos de um mês, ele contou a Opera Mundi os desafios do pior surto da história do vírus, poucas horas antes de decolar para uma nova missão em Guiné.
A reportagem é de Patrícia Dichtchekenian, publicada por Opera Mundi, 08-11-2014.
Paulo é um dos nove brasileiros que estão entre os mais de 3 mil funcionários da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras que atuam na África para conter a atual propagação do ebola. O vírus, que gerou uma espécie de histeria coletiva em escala global e uma sensação de ameaça iminente ao Ocidente, contudo, não seria a principal doença a se combater no continente africano, mas estopim para o desmoronamento de um sistema de saúde pública intrinsecamente frágil.
“O ebola em si está matando muitas pessoas, mas acredito que tenha muito mais gente morrendo de doenças endêmicas do que do atual surto, principalmente de malária. Sem cuidados, as consequências podem ser bastante graves”, argumenta Reis a Opera Mundi. O impacto na estrutura precária em Guiné, Serra Leoa e Libéria é visto como alarmante. Com o foco no combate ao ebola, o aumento do número de mortes por doenças tratáveis, como diarreias e, sobretudo, malária, acaba negligenciado.
Na mesma linha do brasileiro, o médico inglês Jimmy Whitworth, chefe da fundação britânica Wellcome Trust, dedicada a melhorias na saúde mundial, afirmou em entrevista ao The Independent que também suspeita no aumento exponencial de mortes por malária. “Essas pessoas passam despercebidas, pois não estão recebendo tratamento em sistemas de saúde. Eu estimo que haja muito mais pessoas que morrem de malária do que de ebola", afirmou à publicação.
Além da dificuldade em quantificar os pacientes pelo colapso no atendimento em sistemas de saúde, a médica Fatoumata Nafo-Traoré, chefe da ONG Roll Back Malária, que coordena ações em escala global para controlar a doença, acrescenta, em entrevista à BBC, o receio da população em notificar um sintoma clínico, temendo o pior. “No momento em que as pessoas têm febre, muitas vezes elas têm medo de ir aos serviços de saúde, porque querem evitar serem internadas em centros de tratamento de ebola", explica.
De fato, a malária tem sintomas iniciais semelhantes ao ebola. Embora a malária não seja do grupo de febres hemorrágicas como o ebola, são duas doenças infecciosas endêmicas no continente africano e alguns sintomas se sobrepõem, como a febre alta e as complicações hepáticas. Outro fator que confunde é que os últimos meses foram marcados pela temporada de chuvas na região, que leva a um período de pico na transmissão da malária.
A confusão do diagnóstico entre esses dois vírus é recorrente. Em outubro, o brasileiro Yarssan Dambrós Salomão, de 29 anos, chamou atenção da imprensa europeia pela suspeita de ter contraído ebola durante uma viagem de três meses a países africanos como Mali, Mauritânia e Marrocos. O produtor de vídeo carioca estava prestes a retornar ao Brasil quando teve que ficar internado e isolado em uma UTI (Unidade de Terapia Intensiva) na Espanha. Com febre alta por vários dias, além de manchas e dores no corpo, o jovem Yarssan viveu momentos de tensão até saber que havia contraído malária, e não ebola. “Pensar que não iria morrer foi um alívio, a suspeita de ebola era forte”, contou à época em entrevista exclusiva a Opera Mundi.
Em se tratando de números exatos, a malária matou muito mais que o ebola. De acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde), nos três países mais afetados pelo ebola, a malária foi responsável pela morte de 7 mil pessoas em 2012. Não se trata de uma competição de qual vírus é mais mortal, mas ressalta-se a importância de também incentivar o tratamento para o controle da malária, cada vez mais marginalizada e à sombra do ebola. Segundo a OMS, um rápido diagnóstico contribui para a redução da transmissão da malária, o que indiretamente auxiliaria na luta contra o ebola, apontam especialistas das ONGS citadas.
Proteção de vulneráveis: grávidas e crianças
Além da propagação da malária que é negligenciada, Paulo chama atenção para mulheres grávidas e crianças, grupos vulneráveis na atual conjuntura. “Tivemos algumas mulheres grávidas que contraíram a doença. Na minha experiência, a maioria sobreviveu, apesar de serem mais frágeis à infecção. Mas, infelizmente, não conheço nenhum caso que o feto tenha sobrevivido ou nascido. Além disso, tem também o problema das grávidas que não foram contaminadas, mas não conseguem ter nenhum tipo de acompanhamento médico por conta do surto de ebola. A situação é grave principalmente em Serra Leoa, que tem um dos maiores índices de mortalidade maternal do planeta”, ressalta o médico brasileiro.
Em outubro, a MSF teve de suspender serviços de maternidade e de emergência pediátrica temporariamente em um dos seus principais centros de referência em Serra Leoa. A assessoria da organização explica que as equipes ficaram extremamente sobrecarregadas, o que impossibilitou medidas básicas de proteção para evitar contágio e o risco de novas infecções, tanto dos pacientes, quanto de seus profissionais.
Em relação às crianças, Paulo guarda histórias boas e outras ruins. “Teve um garoto de 11 anos que chegou muito mal, mas conseguiu se manter e ficou muito tempo internado. Geralmente, os pacientes morrem no terceiro ou quarto dia de internação. Já esse garoto ficou quase 3 semanas conosco. Infelizmente, ele morreu no dia em que fizemos um novo resultado de teste de ebola e tinha dado negativo. Ou seja, seu corpo já estava livre do vírus, mas seus órgãos estavam afetados demais. Ele lutou muito. Mohammed era o nome dele”, relembra.
Deficiências logísticas
Paulo Reis destaca a questão logística como um dos principais problemas na infraestrutura dos países. Em Serra Leoa, por exemplo, ele conta que na medida em que os casos suspeitos de ebola atingem vilarejos cada vez mais distantes, as poucas ambulâncias disponibilizadas pelas autoridades governamentais chegam a demorar até 9 horas para buscar os pacientes e mais 9 horas para transportá-los aos centros de tratamento.
Em situações críticas, o médico relata que já recebeu ambulância com até dez pacientes dentro. Existem casos em que não necessariamente todos estão infectados com ebola (mas sim com malária, por exemplo) e acabam sendo expostos ao risco de contágio durante as longas jornadas até chegarem às instalações de saúde disponíveis.
Por que essa epidemia dura tanto tempo?
Situações como as narradas pelo brasileiro evidenciam a falta de coordenação e de recursos em nível municipal, estadual e nacional, além de justificarem o motivo pelo qual esse surto dura tanto na região: segundo Paulo, Guiné e Serra Leoa são países cuja população tem o hábito de se deslocar com frequência e para longas distâncias, seja para comércio , seja para visita de parentes. A facilidade de transporte, somada à escassa infraestrutura, sem dúvidas, é um dos fatores que explica a longa duração do surto, de acordo com o médico.
“Apesar de o ebola ter acontecido muitas vezes no continente, nunca aconteceu uma epidemia nessa região [da África Ocidental]. Em 2012,fui para Uganda, que passava por mais um surto de ebola. Como todos já conheciam o vírus, a resposta da população e das autoridades foi mais rápida e tudo foi rapidamente contido”, diz Paulo.
“A Guiné teve uma propagação menor e, por isso, teve mais tempo pra se preparar e a resposta foi mais eficaz. Já em Serra Leoa, o avanço de casos foi muito rápido e muito maior. Tudo foi tão veloz que as autoridades locais nem estavam admitindo ter casos até que não dava mais para negar”, compara o brasileiro. Segundos dados da OMS de 7 de novembro de 2014, Guiné contabiliza 1.760 casos e 1054 mortos, ao passo que Serra Leoa apresenta 4862 pacientes confirmados e 1.130 mortos. Atualmente, todos os distritos de Serra Leoa estão afetados pela epidemia.
No entanto, o médico não acredita seja possível fazer uma estimativa para o desaparecimento absoluto da epidemia. “A situação não está sob controle. Fica difícil ter uma ideia. Vai depender da reação das organizações e o aparecimento de vacinas. Não arriscaria uma data ou estimativa”, diz. Em relação ao Brasil, Paulo é otimista. “Há possibilidades de casos isolados, isto é, ‘importados’, mas não acredito que se torne um caso de problema de saúde pública no país. O governo está tomando medidas bem lógicas e efetivas, sem pânico exagerado. Está contido, não vejo um risco grande”, assegura.
No vai e vem entre Brasil, Guiné e Serra Leoa, Paulo Reis ainda assegura que não sofreu preconceitos por aqui, apesar de ser um consenso que a ignorância em torno da epidemia gerou episódios de fobias ao redor do mundo. “Tive experiências boas. Infelizmente, isso acontece tanto no Brasil, quanto fora. São atitudes irracionais. Só ouvi uma brincadeirinha uma vez quando alguém me perguntou se podia apertar as suas mãos, dizendo ‘você não vai me passar ebola, né?’. É, talvez eu tenha dado sorte”.
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Em segundo plano, malária mata mais que epidemia de ebola, conta médico brasileiro que atuou em Guiné e Serra Leoa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU