31 Outubro 2014
Quando Slavoj Žižek nos acolhe na frente da sua casa, entre a estação e a clínica universitária de Liubliana, ele já ri por trás da barba. Expõe notícias precisas sobre o nosso hotel, brincando de policial informado sobre os fatos: "Você dormiu bem? Lá trabalha o Luka, parente da minha primeira ex-esposa. Ele chamou ela, e ela me chamou. Eu ainda tenho uma ótima relação". Com os pais, no entanto, a relação não devia ser das melhores. Ele não se encarregou do funeral deles, não vai visitá-los no cemitério. Está muito ligado aos filhos, dois, fruto de quatro casamentos: "Eu escrevo aqui", indica uma poltrona em um canto da sala, de costas para a sacada, "enquanto ela assiste TV". Nas prateleiras, ele mostra algumas botas de couro: "Ela é um pouco fetichista", sorri, "e eu também", acrescenta, pegando nas mãos os minibustos de Marx e Lenin. Ele circula de chinelos e bermuda, com uma camiseta que lhe dá o ar de um rapaz de 65 anos. É da editora Melville Press, preta: "Dizem que é de fascista! Eu respondo com um lema de Mussolini: 'Caros amigos soldados, os tempos da paz passaram".
A reportagem é de Lucas Mastrantonio, publicada no caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, 26-10-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Enquanto ajeita as cortinas e as lâmpadas para as luzes da entrevista em vídeo, parece claro que o retorno de Marx a Hegel, através da psicanálise de Lacan, sugerido por Žižek no segundo volume de Meno di niente (Ed. Ponte alle Grazie) é materialismo dialético em versão Cabaret Voltaire.
No fim da entrevista, depois de tirar o seu primeiro selfie – contra a sua vontade, porque "eu me odeio, e as fotos roubam a alma" – e de contar piadas italianas aprendidas com Giorgio Agamben sobre a relação entre cores do vinho e características fálicas (vermelho/grosso, branco/cansado), ele nos exorta a manipular as suas respostas: "Os bons jornalistas", explica, "fazem você dizer, com palavras suas, o que você não pensa".
Mas o problema são as perguntas: com respeito às suas respostas fluviais, soam fora do tema. Para que não pareça um diálogo de surdos, devem ser recalibradas. O repique invasivo da Igreja próxima ("Loucura!", esbraveja) dá a absolvição.
Eis a entrevista.
O que significa se dizer marxista hoje?
Eu sou alguém de esquerda e blablablá... mas aqui tive problemas com os sindicatos. Eles estão nas mãos dos trabalhadores, como os estatais, que defendem os próprios privilégios, e não os direitos dos pobres: trabalhadores precários, jovens, desempregados. E, se você encosta neles, eles dizem que você é um neoliberal, mas pedir que o sistema seja mais justo não é uma ideia de direita. É triste: hoje é um privilégio ser um explorado com um emprego permanente.
São classes sociais sem consciência?
É por isso que é preciso voltar a Hegel, sem a teleologia proletária de Marx. Para ele, fracassada a Revolução Francesa, não era preciso perder os seus ideais. A situação é semelhante: hoje, fracassados o comunismo e a social-democracia, com o capitalismo em crise permanente, devemos encontrar um caminho.
Como? Qual é o seu Estado ideal?
Sonho com um super-Estado contra os desvios das finanças e da biogenética...
Hegel viu em Napoleão o espírito dos tempos. Quem o encarna hoje?
Lee Kuan Yew, pai de Cingapura. Lá o capitalismo é eficiente. Para Deng Xiaoping, era o modelo para a China. É o futuro.
O senhor reescreve o idealismo de Hegel com Lacan. Meno di niente é um livro de "autoajuda" psicanalítica?
Sim. Mas para entender melhor o mundo, não para viver melhor. A minha filosofia é scary, perturbadora, destrói as ilusões. Eu não acredito no conhecimento de si mesmos: a psicanálise salvou a minha vida quando, depois de uma decepção amorosa, eu queria me matar, porque me ajudou a dilatar o desejo de autodestruição através da relação burocrática com o analista.
O senhor é um ícone antiliberal global. Se a URSS tivesse vencido, o que o senhor seria hoje?
A URSS não podia vencer, não teria conseguido integrar a revolução digital. No entanto, e digo uma coisa horrível, no colégio, eu escolhi, além do inglês, não o alemão ou o francês, mas o russo: para falar a língua dos vencedores. Como dissidente e, depois, candidato em 1990, eu lutei contra o comunismo, mas lhe devo muito: se, nos anos 1970, não tivessem me contratado no Instituto de Sociologia da Universidade de Pesquisa de Liubliana, que ainda me permite fazer o que eu quero, eu teria me tornado um estúpido professor local de filosofia.
Quanto o senhor ganha?
Eu não digo, em geral, por questões fiscais. Mas o líquido é de 2.000 euros por mês aqui no instituto, depois a mesma quantia em Londres, e 10.000-15.000 euros por ano nos EUA, pelas palestras. Dos livros, vem pouco. É possível ficar rico com 100 mil cópias: Toni Negri, com Império, me disse que conseguiu. Eu não, e controlo os meus livros no ranking da Amazon.
O senhor se reconhece como uma marca filosófica, um ícone antiliberal de sucesso?
Eu, ícone? No entanto, ambíguo. Me odeiam, me chamam de fascista de esquerda, de stalinista, me acusam de plágio. Mas aceito o risco de ser mal interpretado com as minhas declarações problemáticas.
Por exemplo?
Quando eu escrevi, no livro Violenza, que Hitler não foi suficientemente violento nas mudanças sociais. E sabe onde me entenderam? Em Israel. Aquele, sim, é um país aberto à discordância. De fato, eu defendo o boicote aos produtos comerciais, mas contesto também os amigos que dizem que não se deve ir a Israel. Errado. Especialmente na Europa, depois você se encontra nas manifestações antissemitas com os nazistas.
Quais são os seus planos para o futuro?
Eu gostaria de fazer um livro sobre os personagens a serem reavaliados, como Cesare Borgia ou Galeazzo Ciano: a Albânia fascista, com ele, viveu uma época de ouro. Mas devo fazer trabalhos sérios, como Trouble in Paradise, que relata a crise com o filme de Lubitsch. Cada livro pode ser o último. Eu estou doente do coração, por causa do diabetes e porque sou um workaholic.
O senhor tem um estilo de vida vicioso?
Os psiquiatras que veem o meu tique de tocar o nariz pensam no crack, mas é nervosismo! Sou o único da minha geração que não me droguei. Não fumo nem bebo, para não ser surpreendido pelo inimigo: sou um stalinista! Controlo a alimentação, durmo nove horas... Sabe qual é o meu luxo?
Não.
Uma vez por ano, eu vou com o meu filho adolescente, ou com a minha esposa, mas separadamente, a Dubai, naquele hotel curvo [o Burj al-Arab]. Encontro ofertas especiais, de mil dólares por noite. E lá eu não faço nada: vou ao cinema, faço compras, escrevo, enquanto o meu filho joga no computador. Pura decadência. E sabe o que é felicidade para mim?
Não.
Aos 18 anos, uma vez, alguém que tinha errado o número me telefonou: perguntou por Maria, e junto comigo não havia nenhuma Maria. Senti a tentação de dizer "não, me desculpe, Maria teve um ataque cardíaco". É claro, eu não fiz isso. Mas a ideia de causar uma catástrofe a partir de uma posição totalmente invisível, bem, isso é liberdade... E eu também gostaria de viver na Islândia. É quase como ser o último homem sobre a Terra.
Que relação o senhor tem com as mulheres?
Sou eticamente rígido no amor. Estou com uma mulher só se ambos formos livres. Em Liubliana, é fácil saber com quem eu estive: em geral, eu me caso com ela depois. Isso aconteceu quatro em cada dez vezes. Gosto das meninas más. Você pode contar com elas nos momentos difíceis. As boas só vão para o Paraíso; as más, para todos os lugares, como diz o provérbio alemão.
O que o senhor acha do pornô?
Não acredito que seja uma revolução, um progresso, mas também não é uma simples mercantilização da mulher. Em geral, é ela que rompe uma das convenções básicas do cinema: olha para a câmera, está presente, não é apenas objeto, mas sujeito ativo.
O que o senhor acha do fenômeno viral das mães sensuais, as MILF?
Um presente inconsciente do feminismo. Antes, a mulher só podia ser mãe ou prostituta. A minha favorita é Stefania Sandrelli, mas talvez a primeira mulher materna sexy é Isabella Rossellini, em Veludo Azul, de David Lynch.
O que o senhor gosta do cinema italiano?
Peplum, spaghetti westerns e comédias sexy. A minha preferida é Conviene far bene l’amore, de Campanile (1975). Em um futuro próximo, responderemos à crise dos combustíveis com uma espécie de teoria de Wilhelm Reich: não desperdiçar a energia produzida pelas relações sexuais. Mas a condição é que não haja sentimentos, e a Igreja Católica se adapte: ela condena o amor como pecado. O Estado, através dos trabalhadores, controla a produção de energia humana, como em um Estado socialista.
Mas é um sonho ou um pesadelo?
Ambos. Hoje o sexo é um dever. Um obsceno dever do nosso superego.
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Um marxista contra os sindicatos. Entrevista com Slavoj Žižek - Instituto Humanitas Unisinos - IHU