26 Setembro 2014
Cintia Vieira Leal, de 29 anos, começou a frequentar o PSF (Posto de Saúde da Família) de seu bairro em Uberlândia (MG) apenas "enquanto o novo convênio não ficava pronto". Ao descobrir uma doença durante a gravidez, no entanto, decidiu abandonar o tratamento privado em favor do SUS. "Nunca fui tão bem tratada", disse à BBC Brasil.
A reportagem é de Camilla Costa, publicada pela BBC Brasil, 25-09-2014.
Apesar dos problemas na implantação do modelo de atenção básica no Brasil, médicos de família e comunidade - os especialistas que atuam na atenção básica - entrevistados pela BBC Brasil dizem que histórias de pacientes que trocaram o plano de saúde pelo acompanhamento com equipes de Saúde da Família são mais comuns do que parecem, quando o modelo funciona bem em um município.
Nos postos de saúde e unidades básicas, uma equipe de médicos, enfermeiros e agentes comunitários deve acompanhar até quatro mil pessoas – desde crianças até idosos. O bom funcionamento do modelo, que também é adotado por países como Reino Unido, Canadá e Austrália, ajudaria a evitar a superlotação de emergências e hospitais, um dos principais gargalos do atendimento médico no país.
Na maior parte das unidades, no entanto, pacientes e profissionais sofrem com a infraestrutura precária e a dificuldade de completar equipes de profissionais, especialmente em municípios menores e mais distantes das capitais.
O desconhecimento da população sobre o funcionamento do sistema de saúde também faz com que muitos pacientes procurem diretamente as Unidades de Pronto Atendimento (UPA) ou hospitais.
"Eu tinha ido poucas vezes nessas unidades do SUS, porque tudo costuma ser mais rápido pelo convênio. Mas minha vizinha fazia o atendimento lá e resolvi começar o pré-natal", disse Cintia, que trabalha como porteira.
Quando seu novo plano de saúde ficou pronto, ela chegou ir a consultas com outro médico, mas decidiu deixar o atendimento privado e concluir a gestação com o acompanhamento da equipe do posto de saúde.
"Na minha outra gravidez fui atendida pelo convênio, mas o atendimento era superficial. O médico não me perguntava muito sobre mim e eu não sentia a oportunidade de perguntar para ele. No posto de saúde, gostei de como a equipe me acolheu. Pareciam ter interesse em me ajudar, tirar minhas dúvidas", diz.
Durante a gestação, a equipe diagnosticou Cintia com toxoplasmose - uma infecção que oferece sério risco ao bebê. "Meu convênio não me dava segurança de que teria cobertura para o que precisasse e a doutora me convenceu a ficar no SUS."
'Outro tipo de complexidade'
A médica que atendeu Cintia, Natália Ferreira, afirma que parte do preconceito com relação aos médicos de família parte de acreditar que o trabalho nos postos de saúde é "simples".
"Os recém-formados acham que ir para a atenção básica até passar em uma residência é mais fácil do que ir para uma urgência, onde os problemas são mais agudos e é preciso ter mais experiência. Mas não é tão fácil assim, é outro tipo de complexidade", disse.
"Na atenção básica você não precisa tanto da tecnologia, dos exames complexos. Mas nós lidamos com a situação do indivíduo e com a complexidade clínica. Se um sujeito é hipertenso e eu fosse um cardiologista, meu foco seria na doença dele. Quando eu, médica de família, recebo um hipertenso, eu considero que ele é idoso, que tem outras doenças associadas. É como se eu montasse o quebra-cabeça das especialidades."
Mesmo encaminhando o paciente para um especialista, segundo Natália, o médico da família deve, idealmente, continuar fazendo o controle da sua situação. "Somos nós que lidamos com a dificuldade de a família cuidar dele, de ele não saber entender a receita, de não querer tomar o remédio", afirma.
A médica de 29 anos, que hoje orienta recém-formados na residência de medicina da família e comunidade da Universidade Federal de Uberlândia, diz que os novatos "se espantam com a quantidade e com o tipo" de pacientes que procuram o posto de saúde.
Um médico de família divide sua carga horária semanal em atendimentos no posto ou unidade básica de saúde - que ocupam a maior parte do seu tempo - e visitas às casas dos pacientes quando é necessário. Em alguns casos, um trabalho de investigação chega a ser necessário para solucionar problemas que atingem pacientes de um bairro ou comunidade.
Há cerca de três meses, Natália e outras médicas de seu posto de saúde foram até uma creche em Uberlândia descobrir por que três crianças atendidas por elas permaneciam abaixo do peso normal. "Descobrimos que a creche servia as refeições às crianças com um intervalo muito pequeno entre uma e outra e não controlava se elas comiam", diz.
"Algumas não tinham fome na hora da refeição e tomavam só leite o dia inteiro. Por isso não estavam ganhando peso". A solução provisória encontrada foi negociar o acompanhamento especial das três crianças pela professora, mas as médicas questionaram junto às autoridades o cardápio das creches do município e aguardam resposta.
'Deveria ser assim'
Mesmo satisfeita com o atendimento que teve na equipe de Natália durante a gravidez, Cintia Leal diz que nem tudo funcionava tão bem. "Eu tinha medo de perder a consulta e ter que pegar a fila de novo no posto, era desgastante. O ultrassom lá também é muito demorado. Eu não consegui nenhum, fiz todos pelo plano de saúde."
O bebê nasceu há cerca de um mês e ela diz que pretende continuar frequentando o PSF. "Não sei se esse projeto é só aqui ou se foi só o jeito dela (da médica) mesmo. Mas acho que deveria ser assim em todos os lugares", diz.
Apesar de trabalhar em uma unidade de referência em sua cidade, Natália reconhece que a infraestrutura é um dos principais problema dos profissionais na atenção básica - e um fator que afasta os pacientes.
"Muitas vezes falta o básico: macas, tensiômetros, medicamentos. E temos dificuldades ao encaminhar os pacientes para os especialistas e os hospitais. Pegamos pacientes graves, cujos casos não conseguimos resolver porque falta ambulância, falta leito no hospital", diz.
"Às vezes tenho um paciente com uma condição que não é tão aguda, mas que eu não consigo resolver porque encaminho para o especialista e a consulta demora quatro ou cinco meses."
A dificuldade para conseguir realizar exames mais complexos também contribui para a dificuldade dos médicos de família para resolverem uma quantidade maior de problemas de pacientes, segundo a profissional.
"Temos um número de exames de cada tipo que podemos fazer e um número de vagas em cada especialidade, definidos pelo município, mas em muitos lugares essa conta não fecha. Aí a fila fica enorme e os exames demoram meses pra sair. A minha fila de ultrassom hoje é de sete meses, no mínimo. No caso das gestantes e de pacientes muito graves eu faço um pedido de prioridade", diz.
Em entrevista, o secretário de saúde de Uberlândia, Almir Fontes, afirmou que o número de equipes de Saúde da Família na cidade aumentou de 50 para 70 em um ano e meio de gestão, na tentativa de impedir a sobrecarga do atendimento.
Fontes afirmou também que a prefeitura reformulou o sistema de entrega de medicamentos e o controle da compra dos materiais, mas fala de "problemas logísticos" e burocracia que causam atrasos na distribuição.
"Parte dos medicamentos da atenção básica é distribuída pelo Estado e recentemente houve uma demora por conta de um problema logístico. Reestruturamos a nossa central de farmácia e nesse momento estamos sem problema de falta de medicamentos. Mas isso também é dinâmico, há questões logísticas que às vezes não dependem de nós", afirmou.
Ainda de acordo com o secretário, um médico cardiologista, a demora na realização de exames como o ultrassom se deve, em parte, a um excesso de pedidos por parte dos profissionais. "O profissional hoje é mais voltado para a tecnologia do que para o exame, a conversa com o paciente. Por causa de uma cultura de formação, às vezes ele pede exames que não seriam realmente necessários após o exame clínico. Conseguimos reduzir as filas até para exames mais complexos, como a ressonância, mas a demanda do ultrassom de fato continua grande."
Vínculo
Apesar dos atrasos e filas, o atendimento pode fazer a diferença na hora de "conquistar" os pacientes. Durante a residência os médicos de família e comunidade são encorajados a estabelecer vínculos com as pessoas que acompanham - algo que nem sempre é comum em profissionais sem essa especialidade.
"Por sermos uma especialidade com menos prestígio, a abordagem da medicina de família ainda é desconhecida por muitos médicos que atuam na atenção básica", diz Natália Ferreira.
A dona de casa Irene Gonçalves da Silva, de 50 anos, também se disse "convertida" ao SUS pelo acolhimento da equipe. "Natália não me obriga a nada, mas conversa muito comigo. Desde então estou com ela e não pretendo mudar", disse à BBC Brasil.
Irene chegou à equipe do mesmo PSF com sintomas de descontrole de sua diabetes. "Eu nunca tinha feito atendimento no Posto de Saúde. Quando comecei com o problema de diabetes eu tinha convênio, então eu ia a um endocrinologista há três anos."
Após perder o convênio quando seu marido mudou de empresa, Irene continuou pagando consultas, mas sua saúde deteriorou.
"Comecei a inchar, ter dores de cabeça, tinha dificuldade de enxergar. Quando Natália me atendeu e pediu os exames, descobriu que eu já estáva com insuficiência renal crônica. Aí ela trocou meus medicamentos e eu fui melhorando."
"Pra te falar a verdade, eu não achava que ia ter esse atendimento no SUS. Ela tira um tempo assim para te ligar, para saber o que está acontecendo. Isso eu nunca tive, nem no convênio", afirma.
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"Deixei o sistema privado para ficar no posto de saúde" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU