10 Setembro 2014
"Um caro amigo xaveriano, padre Luciano Mazzocchi, me escreveu que elas (irmãs xaverianas assassinadas em Burundi) viviam no quarteirão mais miserável da capital Bujumbura, lugar de violentos conflitos entre Hutu e Tutsi, onde promoviam a conciliação entre estas duas etnias abrindo laboratórios comuns para os jovens das duas etnias e favorecendo o compartilhamento social. Provavelmente esta sua ação, em geral realizada por mulheres, desencadeou a reação atávica que as conduziu à morte", narra Vito Mancuso, teólogo e escritor italiano, em artigo publicado pelo jornal La Repubblica, 09-09-2014.
A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
Enquanto escrevo, não se tem notícia sobre a identidade do homicida das três Irmãs italianas missionárias em Burundi, somente se sabe que a Irmã Bernadetta Bogianni, a Irmã Lucia Pulici e a Irmã Olga Raschietti foram assassinadas segundo modalidades extremamente violentas.
Que se trate de uma morte que o cristianismo costuma definir como “martírio” (quer dizer “de testemunho”), mártir em grego significa “testemunho”) creio que não haja dúvidas. Mas, que martírio? Há um martírio que definirei como institucional e há outro que chamarei existencial.
No primeiro caso se é morto simplesmente por ser cristão, como sucedeu recentemente no Iraque por causa dos milicianos do Califado, ou na Nigéria por causa dos terroristas islâmicos de Boko Haram, ou ainda na Síria, no Paquistão, no Egito e em outros países muçulmanos, e até na Índia por causa de fanáticos hindus. A coisa não se refere somente aos cristãos, porque se é morto também enquanto yazidi, como no norte do Iraque, ou então enquanto judeus, como ocorria sob o regime nazista e em certos períodos da Idade Média e como ocorre ainda hoje: neste e em outros casos se é morto prescindindo de todo do nível do testemunho pessoal, mas somente pelo simples fato de pertencer a determinada religião ou a determinado povo. É impossível, no entanto, não notar que há alguns anos a esta parte, em diversas zonas do mundo, a fé cristã está sempre mais na mira dos extremistas: segundo o Instituto de Pesquisa americano Open Doors International, de 1° de novembro de 2012 a 31 de março de 2014 se registraram 5479 cristãos mortos por sua fé, uma média de 322 mortos ao mês e além de 10 ao dia.
Como assim? O que há no cristianismo contemporâneo que irrita de tal forma os fanáticos e os extremistas? No caso do martírio existencial se é morto, ao invés, precisamente por causa do testemunho pessoal, no sentido de que a peculiaridade da ação conduzida é tal que gera uma reação violenta em quem tem outros ideia se percebe a ação da testemunha, e antes ainda sua própria presença como uma perigosa ameaça. Este tem sido o caso do primeiro mártir cristão, santo Estevão, de Ipazia de Alexandria (filósofa pagã morta por monges cristãos), e antes ainda foi o caso de Sócrates e de Jesus, e em nossos dias o caso de Padre Diana e de Padre Puglisi em nossa casa.
No momento não é possível saber se as três Irmãs xaverianas tenham sido mortas por ódio ao cristianismo, isto é, como martírio institucional, ou por causa de sua específica ação sobre o território, mas visto o país que é o Burundi (isto é, a grande maioria cristã e ausente da lista dos primeiros 50 países mais perigosos para os cristãos), é mais provável que o seu martírio tenha a ver com sua específica ação entre o povo, mas do que ser um enésimo episódio da perseguição dos cristãos no mundo.
Se fosse verdadeira esta minha análise, as três Irmãs italianas não teriam sido mortas porque genericamente cristãs, mas porque agiam concretamente como cristãs. Nos microfones da Rádio Vaticano o padre Mario Pulcini, superior dos Xaverianos em Burundi e há muitos anos junto às três Irmãs, declarou que Lucia Pulici trabalhava em campo médico, onde tinha curado milhares de enfermos, enquanto Olga Raschietti era ativa no ensino, ao passo que Bernadetta Bogianni se dedicava principalmente à promoção das jovens às quais dava cursos de corte e costura.
Um caro amigo xaveriano, padre Luciano Mazzocchi, me escreveu que elas viviam no quarteirão mais miserável da capital Bujumbura, lugar de violentos conflitos entre Hutu e Tutsi, onde promoviam a conciliação entre estas duas etnias abrindo laboratórios comuns para os jovens das duas etnias e favorecendo o compartilhamento social. Provavelmente esta sua ação, em geral realizada por mulheres, desencadeou a reação atávica que as conduziu à morte.
Outro mártir cristão, o matemático, teólogo e sacerdote ortodoxo Pavel Florenski, (morto aos 8 de dezembro de 1937 junto a então Leningrado do regime comunista) escrevia à mulher Anna aos 13 de fevereiro de 1937: “Sim, a vida é feita de modo que se pode dar algo ao mundo pagando depois a fiança com sofrimentos e perseguições. E quanto mais o dom é desinteressado, mais cruéis são as perseguições e duros os sofrimentos. Tal é a lei da vida, o seu axioma de base”.
Lucia, Olga e Bernadetta, três mulheres livres seguidoras dos ideais do Cristo, testemunham uma vez mais a trágica sorte que o bem radical sobre com frequência neste mundo.
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O outro martírio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU