12 Setembro 2014
"Para o filósofo esloveno, o problema não é a lei, mas sua perversão. E esta perversão é exatamente aquilo que guia Ozymandias em seu plano: façamos o mal para que venha o bem. A problemática levantada por Paulo, então, não se encontra na rebeldia contra uma lei que escraviza, mas no assumir outra postura diante dela. A pergunta que Zizek faz é sobre como romper o ciclo vicioso de lei e desejo, dentro do qual as paixões vivas precisam ser disfarçadas para que a lei não seja transgredida." A constatação é de Renato Ferreira Machado, teólogo, ao comentar a mais recente edição dos Cadernos de Teologia Pública nº 88: Política e Perversão - Paulo segundo Zizek, de autoria do teólogo Adam Kotsko.
No final da década de 1980, o escritor inglês Alan Moore e o ilustrador Dave Gibbons lançaram uma minissérie em quadrinhos intitulada Watchmen. Apresentando personagens desconhecidos do público, a história logo revelava suas intenções: não se tratava simplesmente de uma superaventura, como tantas outras publicadas na época, mas de um desconstrução do próprio gênero no qual Moore e Gibbons trabalhavam. Em Watchmen, os dois desvelavam a cultura de disputa de poder presente no American Way of Life, revelavam o quanto os símbolos produzidos por esta cultura poderiam ser doentios, alienantes e perversos. Sobretudo, explicitavam as ramificações fascistas que subjaziam àquela realidade.
No contexto fantasioso de Watchmen, a existência de vigilantes uniformizados e de um superser, o Dr. Manhattan, garantiram a vitória dos Estados Unidos no Vietnã, mas, ao mesmo tempo, agravaram a Guerra Fria, que estava a ponto de se tornar guerra nuclear. Ao mesmo tempo, a caça às bruxas Macartista havia forçado os super-heróis a se aposentarem: como a maioria ocultava o próprio rosto, não havia como saber se algum deles não seria um espião soviético. A história começa com o brutal assassinato de um destes personagens: o Comediante, que continuava agindo em segredo para a CIA é jogado de sua cobertura para o chão.
O fato leva os outros heróis a voltarem à atividade, em busca do assassino e a descoberta de sua identidade é a síntese de toda crítica que Moore e Gibbons desejavam fazer sobre este modelo de sociedade. O assassino é um dos heróis, aquele que é conhecido como Ozymandias, o homem mais inteligente do mundo. O assassinato, na verdade, fora uma forma de acobertar seu plano, que havia sido descoberto pelo Comediante: ante o iminente conflito nuclear, Ozymandias pensara em uma maneira de unir de vez as superpotências em conflito.
Para isso, ele ofereceria às superpotências um inimigo em comum, diante do qual todas as diferenças ideológicas seriam esquecidas, em nome da defesa da própria humanidade. Ozymandias cria este inimigo em seus laboratórios e o lança sobre Nova York, arrasando a cidade e matando boa parte da população. Originalmente, nos quadrinhos, Ozymandias utiliza uma forma de vida mutante para destruir a metrópole. Na adaptação cinematográfica de 2009, Nova York é arrasada por uma onda de energia atômica extraída do Dr. Manhattan. A Guerra Fria termina e a vida segue, em um planeta amedrontado.
De Ozymandias a Paulo
A estratégia de Ozymandias encontra-se indiretamente descrita no artigo Política e Perversão: Paulo segundo Zyzek, de Adam Kotsko, publicado nos Cadernos de Teologia Pública do Instituto Humanitas, discutindo a crítica que Zizek faz a respeito do pensamento de Badiou sobre Rm 7.
Nesta passagem, Paulo discursa sobre os limites da Lei que, mesmo sendo justa e santa (Rm 7, 12), não nos livra do mal, uma vez que não fazemos o bem que queremos, e sim o mal que não queremos (Rm 7, 19).
Paulo ainda ressalta que, não fosse pela lei ele não conheceria pecado, pois o mandamento de não cobiçar o levou à cobiça (Rm 7, 7). Ele, porém, não culpa a lei, mas o próprio pecado, que se aproveita da lei para leva-lo à prática do mal e revelar o pecado em toda sua perversidade(Rm 7, 13). A saída para esta situação se encontra na morte e ressurreição em Cristo que, libertando do pecado, liberta também da lei (Rm 7, 4-6) através da graça. Alan Badiou toma esta passagem como o anúncio paulino de libertação da lei pela graça. O filósofo marroquino sustenta que lei, neste contexto, é a descrição da divisão do sujeito entre poder e não-poder, sendo o pecado a subjetividade deste em relação a esta lei.
Aquilo que Paulo coloca como superação da lei, então – a morte e ressurreição de Cristo – trata-se, para ele, de um Evento-Verdade que restabelece o poder de um pensamento ativo e supera todas as divisões. A maior delas, inclusive, que é a cisão entre vida e morte. Em síntese, Badiou entende o texto como possibilidade de superação da própria divisão identitária do sujeito. Com isso, voltamos a Ozymandias.
No contexto de Watchmen, a “lei” é a guerra estabelecida entre as superpotências do capitalismo e do comunismo. A partir desta norma, que divide o mundo em aliados e inimigos, a própria dinâmica subjetiva individual é reconfigurada com a imposição de limites pessoais proibitivos de quaisquer linhas de diálogo com o “outro lado”. Nesse sentido, os vigilantes uniformizados, apesar de agirem na mesma sistemática ideológica do lado em que se encontram, parecem acenar para uma possibilidade de ação para além dos limites impostos. Ao vestirem seus uniformes e máscaras, aqueles homens e mulheres parecem não ter mais dúvidas quanto ao que fazer e como agir: eles alcançaram uma unidade plena entre intenção e ação e, ao aparecerem em público, todos sabem que tipo de ação esperar deles.
A princípio, portanto, estes super-heróis não sofreriam do dilema moral do mysterium iniquitatis: fazer o “bem” e combater o “mal” é a tarefa que assumem. O que aparece em público, no entanto, encobre as relações mantidas em nível privado e, no decorrer da história, percebe-se que o “bem” realizado em público ode ser apenas algo montado para parecer bom, mas que tem raízes em profunda iniquidade. O extremo desta situação se dá exatamente quando Ozymandias resolve gerar um Evento-Verdade que supere a dicotomia bélica. Não se pode dizer que seu plano não funciona. O preço, porém, é alto demais: ao contrário de Cristo, que se deixa imolar para a salvação de todos, o personagem imola inocentes em nome de um futuro desejável. É nesta linha que Zizek fará sua crítica a Badiou.
Lei e perversão
Para o filósofo esloveno, o problema não é a lei, mas sua perversão. E esta perversão é exatamente aquilo que guia Ozymandias em seu plano: façamos o mal para que venha o bem. A problemática levantada por Paulo, então, não se encontra na rebeldia contra uma lei que escraviza, mas no assumir outra postura diante dela. A pergunta que Zizek faz é sobre como romper o ciclo vicioso de lei e desejo, dentro do qual as paixões vivas precisam ser disfarçadas para que a lei não seja transgredida. Nesse sentido, ele segue a análise que Lacan faz a respeito da mesma passagem bíblica, na qual o psicanalista coloca o desejo no nível da ética, ao invés de subtraí-los ao nível de neurose freudiana.
Assim, o problema da perversão da lei vem, não do desejo que a rompe, mas da exclusão do desejo como algo a ser evitado e a chave para um Evento-Verdade que supere esta dualidade se encontra na integração das pulsões de morte no horizonte da vida ressuscitada. Se Badiou compreende o Evento-Verdade da Ressurreição como superação da morte, Lacan e também Zizek o tomam como ressignificação desta diante da revelação de uma dimensão absoluta de vida que já não se submete ao morrer. E a dimensão absoluta da vida se traduz em uma misericórdia tão abundante que supera qualquer expectativa de perdão. Se isto está na nascente da tradição cristã e se apresenta como absoluta novidade naquele contexto histórico, o tempo trará novas práticas perversas, na medida em que a compaixão se transmuta em lei.
Voltemos a Watchmen. Se Ozymandias consegue levar ao êxito seu plano, a história não se encerra com sua vitória. No epílogo, avançando alguns anos no futuro, Moore e Gibbons mostram um diário, onde os segredos de Ozymandias estão registrados, sendo encontrado por jovens jornalistas, em sua redação. O diário pertencia ao mais trágico dos vigilantes: Roscharch, um homem obcecado em fazer criminoso reconhecerem suas culpas, punindo-os com desmedida violência.
Roscharch cobre o rosto com uma máscara branca, com manchas negras que mudam de forma constantemente, conforme o teste psicológico de onde ele retirou seu codinome. Roscharch é a lei encarnada, que se abate sobre os que a pervertem de maneira furiosa e impiedosa. Por isso, é considerado também um criminoso e perseguido pela polícia. Ao investigar o assassinato do comediante e chegar à identidade do assassino, acaba sendo morto pelo Dr. Manhattan, que compreende que, se o plano de Ozymandias vier à tona, a paz conseguida com o genocídio estará em cheque. Roscharch morre gritando por justiça e seu diário, encontrado anos depois de sua morte, será sua ressurreição, revelando a perversidade da política de paz de Ozymandias.
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Perversão política: Paulo, Zizek e Watchmen - Instituto Humanitas Unisinos - IHU