02 Setembro 2014
Depois de ter gozado dos favores da opinião pública mundial, Francisco tenta fazer ouvir a voz da Igreja na crise de Kiev e na siro-iraquiana. A ausência de mediadores torna a tarefa mais árdua – e mais urgente.
A reportagem é de Francesco Peloso, publicada na revista Limes, 29-08-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A um ano e meio desde a sua eleição, depois de ter gozado dos favores da opinião pública mundial pelo sopro de ar fresco trazido à Igreja universal, a liderança do Papa Francisco é posta em prova agora por importantes acontecimentos internacionais.
O desafio não óbvio é lançado pela dramática passagem histórica em que nos encontramos: a sucessão de conflitos e crises internacionais com dois pontos-chave, o Oriente Médio e na Ucrânia – ou seja, no segundo caso, a Europa – e a ausência de novos equilíbrios internacionais capazes de "governar", ou ao menos limitar, a expansão dos frontes de combate.
Faz-se sentir particularmente a ausência de sujeitos capazes de desempenhar uma função de negociação. As Nações Unidas não parecem capazes de assumir o ônus dessa tarefa, estando os seus órgãos e mecanismos de tomada de decisão já superados.
Trata-se de um detalhe de não pouca importância, já que a Igreja de Roma fez referência à ONU, historicamente, nas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial, com base na equivalência entre "família das nações" sob o perfil institucional e "família humana" na linguagem politico-evangélica do magistério dos vários pontífices.
A passagem em que se encontra o pontificado é, então, decisiva. De um lado, de fato, Bergoglio deve levar a termo aquelas reformas internas ao sistema vaticano que começaram há muito tempo e agora estão em andamento, mas bem longe de se concluírem. De outro lado, o primeiro papa proveniente do Sul do mundo deve enfrentar uma concatenação de crises que pede que o sistema das nações no mundo globalizado predisponha novos instrumentos de governança em nome dos valores e direitos universais afirmados nas cartas das Nações Unidas. No entanto, justamente esses princípios correm o risco de permanecer como vagas lembranças diante dos horrores que seguem impunes.
Em uma tarefa tão árdua, no entanto, o papa não está sozinho. A presença de um diplomata estimado e de destaque como o cardeal Pietro Parolin à frente da Secretaria de Estado é uma referência certa para a ação da Santa Sé no cenário internacional, assim como a articulada rede dos núncios espalhados nas zonas quentes do mundo, que começou novamente a funcionar em plena vapor depois do período crítico vivido no pontificado anterior. Por outro lado, a urgência de relançar a ação diplomática eclesial nas áreas de crise era uma prioridade na agenda do papa.
Nesse sentido deve ser lida a iniciativa do encontro entre os presidentes de Israel e da Palestina, Shimon Peres e Mahmoud Abbas, no Vaticano, na presença do patriarca ortodoxo de Constantinopla, Bartolomeu I. Isto é, como a prova de uma opção possível, a do diálogo israelense-palestino, no momento em que esta tinha sido removida como um tabu e relegada ao mundo do "impossível".
Diante da ausência de sujeitos políticos capazes de forçar à negociação, o papa fez, com o apoio dos seus colaboradores, um gesto de instituição desarmada que tinha um valor político e profético.
Nessa perspectiva, tem pouco sentido falar de "fracasso" ou de "derrota" do pontífice; os verdadeiros derrotados nesse caso parecem ser, ao contrário, aquelas populações, de um lado ou de outro da fronteira, que continuam sendo vítimas da "inevitabilidade" da guerra decidida com a alternância de cinismos teóricos.
Mas é no fronte "russo" que a Santa Sé encontra hoje as maiores dificuldades. Há a famosa carta do papa a Putin de setembro de 2013, quando o chefe do Kremlin hospedava o G20.
Naquele momento, Bergoglio se levantou para evitar a intervenção da aviação norte-americana contra o regime de Bashar al-Assad. É concebível que uma certa veia anti-yankee tenha influenciado as palavras do papa argentino naquela circunstância? A circunstância é plausível, no entanto, Francisco também fazia uma rejeição quase instintiva da guerra como solução dos conflitos armados, uma tendência observável em quase todos os papas do século XX e do nosso século.
Desde então, houve duas importantes novidades. A gangrena da crise do Oriente Médio – também graças ao descompromisso político e econômico europeu e norte-americano em relação aos fatos que abalaram a região nos últimos anos – e a abertura do "fronte" ucraniano.
A disseminação do IS (ex-Isis – Estado Islâmico do Iraque e do Levante) no Iraque, com o ataque às comunidades cristãs e yazidi, induziu uma reação dos bispos locais e da diplomacia vaticana. De fato, a Igreja pediu proteção também militar para os cristãos e as outras minorias em fuga; valem para todos as palavras reiteradas pelo observador da Santa Sé na ONU de Genebra, Dom Silvano Maria Tomasi, que falou explicitamente de intervenção militar (o retorno à famosa teoria da ingerência humanitária elaborada por Wojtyla nos tempos da guerra na Bósnia).
O papa compartilhava um pedido semelhante (veja-se a carta ao secretário das Nações Unidas, Ban Ki Moon, de 13 de junho), mas também identificava dois riscos. Em primeiro lugar, havia a preocupação de que a intervenção norte-americana contivesse nos fatos aquela mesma arbitrariedade contestada poucos meses antes a Obama em relação a al-Assad; os ataques aéreos no Iraque, de fato, decolavam sem um acordo internacional preventivo e sem um pronunciamento da ONU.
A Santa Sé intuía imediatamente um segundo problema, relacionado com o primeiro: um apelo internacional do Vaticano por uma intervenção militar sem o aval da ONU para proteger os cristãos teria aumentado as tensões entre Islã e cristianismo, dando paradoxalmente ao Isis aquela credibilidade que, ao invés, lhe faltava largamente no mundo muçulmano, também sunita.
A estrada, em suma, era e é estreita. Daí a prudência "linguística" do pontífice, à qual se seguiu a intervenção do secretário de Estado, Parolin, para evitar a ideia do conflito entre religiões. Pela mesma razão, o patriarca de Bagdá, Dom Louis Sako, pediu, junto com a proteção dos cristãos vítimas da violência, um retorno da política e da diplomacia. Caso contrário, a intervenção militar – anotou – não serviria muito.
A esse respeito, também se pronunciou o núncio na Síria, Dom Mario Zenari; segundo ele, a falta de reformas democráticas por parte do regime e a negação dos ideais de liberdade contidos na primeira fase dos protestos populares no país acabaram alimentando as frustrações dos sírios e o extremismo, enquanto o conflito sírio também precisou de uma solução política, sob pena da degeneração ainda maior das violências.
Nesse contexto, deve ser registrada mais uma divisão que começa a cruzar o fronte eclesial. Se os líderes católicos do Iraque invocaram várias vezes uma mobilização internacional para salvar as comunidades cristãs em fuga da planície de Nínive, está tomando forma também um polo oposto, que já se delineou, por exemplo, nos Estados Unidos, de organizações católicas que pedem que o presidente Obama não recorra aos bombardeios.
Ao contrário, a Conferência dos Bispos da Alemanha se manifestou em favor da distribuição de armas aos curdos em função anti-Isis. Em suma, é um movimento irregular que pode ser visto, sintoma de uma situação nada fácil de dissolver. Enquanto isso, no Vaticano, cresce o alerta por um quadro geral que, no impasse internacional, corre o risco de se tornar definitivo na sua instabilidade até sancionar a impossibilidade de que os cristãos voltem às suas aldeias e às suas casas.
Deve-se destacar, finalmente, que, quando a Casa Branca começou a levar seriamente em consideração a possibilidade de atacar o Isis também na Síria, o L'Osservatore Romano trazia a manchete (no dia 27 de agosto) "O dilema de Obama", referindo-se à contradição inerente à posição de Washington: considerar Assad como um inimigo para depois, de algum modo, aliar-se a ele com o objetivo de frear a ascensão do Isis.
O fato é que a Santa Sé no Oriente Médio vai ter que reescrever o mapa da sua própria presença política e das suas relações internacionais, também com base na evolução dos acontecimentos. Aqui só é possível fazer uma menção ao Líbano e à difícil situação em que ele se encontra, enquanto o patriarca maronita, o cardeal Bechara Rai, dialoga com a cúpula do Hezbollah – força religiosa xiita, inimiga ferrenha de Israel – para buscar a solução para a crise política do país dos Cedros, que está à beira da desagregação.
Além disso, a crise ucraniana mostrou ao pontífice outra face daquela complexidade leste-europeia que tão frequentemente abalou os alicerces do Velho Continente. Além do emaranhado de razões geopolíticas e "energéticas" do conflito, os dois nacionalismos, o ucraniano e o pró-russo, alimentam-se abundantemente de motivações religiosas: greco-católicos, de um lado, e ortodoxos fiéis ao Patriarcado de Moscou, de outro.
O chefe da Igreja greco-católica ucraniana, o arcebispo Sviatoslav Schevchuk, desempenhou um papel importante na denúncia, do seu ponto de vista, da agressão russa e para dar uma veste identitária e nacional à Igreja ucraniana fiel a Roma. O mesmo fez o Patriarcado de Moscou de Kirill, assumindo integralmente as razões de Putin.
Se as palavras de Francisco sobre esse caso foram marcadas pelo pedido de uma pacificação, a Santa Sé não pode permanecer insensível diante dos sentimentos dos greco-católicos. O quadro até aqui esboçado, por razões evidentes, não pode conter uma versão definitiva das posições e do papel do Vaticano no atual contexto histórico convulsionado. O papa argentino terá que fazer as contas com a mudança de estratégia norte-americana no mundo. Daí o desafio para o nascimento de um multipolarismo do qual ainda não se vê nenhum rastro.
Francisco indicou várias vezes no pedido de parar o tráfico de armas uma prioridade em nível global. Trata-se de uma proposta utópica? Talvez, mas a sua opção, novamente, é a que uma instituição desarmada pode lançar com a devida força e relevância à comunidade internacional, abrindo a possibilidade de uma temporada de desarmamento convencional depois do nuclear nos anos da Guerra Fria.
Por fim, pense-se no telefonema do papa à família de James Foley, o repórter assassinado no Iraque pelo IS. Nesse ato, há uma parte consistente da novidade de Francisco: o gesto humano e direto de um chefe religioso e de Estado que tenta desmantelar os artifícios do poder.
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Da Ucrânia ao IS, um desafio para a liderança do papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU