04 Agosto 2014
Somente na Igreja Católica um beijo nunca é apenas um beijo. A Congregação para o Culto Divino decidiu que o beijo da paz deve ficar onde está na missa, mas deve ser realizado com maior sobriedade, de acordo com o Vatican Insider e o Catholic News Service. Esteja preparado para as seguintes instruções do seu pároco: "Demos uns aos outros o sinal da paz, mas não sorriam".
A análise é do jesuíta norte-americano Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos EUA, de 1998 a 2005, e autor de O Vaticano por dentro (Ed. Edusc, 1998). O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 01-08-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
A decisão chegou através de uma carta do prefeito da Congregação vaticana, o cardeal espanhol Antonio Cañizares Llovera, e também é assinada pelo arcebispo Arthur Roche, secretário da Congregação, e foi aprovada pelo Papa Francisco no dia 7 de junho.
O cardeal observa que foi durante o Sínodo de 2005 sobre a Eucaristia que surgiu a questão de mover o beijo da paz. Muitos bispos reclamaram que o beijo em seu local atual atrapalha a assembleia, que deveria estar se preparando para a Comunhão.
A carta mostra por que os estudiosos litúrgicos têm rezado por um novo prefeito para a Congregação. A decisão ignora o fato de que o texto litúrgico mais antigo (a primeira Apologia de São Justino, em meados do século II) traz o beijo da paz no fim da Liturgia da Palavra.
Como expliquei em um artigo na revista America em 15 de abril de 1995:
Justino descreve a Liturgia da Palavra como aquela que inclui as leituras das memórias dos Apóstolos ou os escritos dos profetas. Instruções e exortações do celebrante seguem as leituras, e, em seguida, todos se levantam e oram. Ele também observa: "Tendo terminado a oração, nós saudamos uns aos outros com um beijo". Em seguida, as ofertas são trazidas para a frente. Assim, o beijo ocorria imediatamente após as orações que concluíam a Liturgia da Palavra. Hoje isso significaria colocar o beijo da paz após a oração dos fiéis.
Beijar na conclusão das orações parece ter sido um costume cristão comum. Poderia ter sido tão espontâneo como as ações de uma família hoje, abraçando e se beijando depois de rezar o terço juntos. Outro escritor cristão primitivo, Tertuliano († 230), pergunta: "Que oração pode estar completa sem o ósculo santo?". Ele via o beijo como um selo da oração que a precedeu. Como o Amém que representa a concordância com o que se passou antes.
O beijo no fim da Liturgia da Palavra simboliza a aceitação da comunidade da mensagem que acabou de ouvir. Eles "se dão as mãos como em um negócio". Eles concordam com uma aliança. Historiadores litúrgicos acreditam que o beijo mudou-se para sua localização atual quando a oração do Pai Nosso foi transferida do fim da oração dos fiéis para a sua localização atual antes da Comunhão.
Alguns, incorretamente, têm visto o beijo não como uma conclusão da Liturgia da Palavra, mas como uma preparação para o sacrifício eucarístico, citando Mateus 5, 23-24: "Portanto, se você for até o altar para levar a sua oferta, e aí se lembrar de que o seu irmão tem alguma coisa contra você, deixe a oferta aí diante do altar, e vá primeiro fazer as pazes com seu irmão; depois, volte para apresentar a oferta".
Obviamente, este é o problema com um símbolo; o seu significado nem sempre é evidente. A comunidade lê no símbolo o significado que ela quer. A comunidade católica, não importa o que o Vaticano possa querer, fez do beijo da paz em seu lugar atual um símbolo de alegria, e nenhuma catequese vai mudar isso. Teria sido muito melhor se a opção de ter o beijo no final da Liturgia da Palavra tivesse sido permitida.
Publicamos abaixo o artigo original do Pe. Reese, publicado na revista America, 15-06-1995.
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Um beijo nunca é apenas um beijo
Thomas J. Reese
Quando os bispos se reunirem em Chicago de 15 a 17 de junho [de 1995], eles vão discutir e votar uma proposta para mover o beijo da paz a partir de sua localização atual, após a oração do Pai Nosso, para uma nova posição na Liturgia Eucarística. A proposta iria colocar o sinal da paz antes da preparação das ofertas (que costumava ser chamado de ofertório). Se os bispos adotarem essa proposta, eles podem estar fazendo a coisa certa pelas razões erradas.
O beijo da paz, que se originou entre os primeiros cristãos e caiu em desuso séculos mais tarde, foi restaurado no missal romano, em 1970, como parte das reformas litúrgicas iniciadas pelo Concílio Vaticano II. Nos Estados Unidos, no entanto, o beijo da paz raramente é um beijo de verdade. Em vez disso, a assembleia é convidada a trocar um sinal de paz, o que, para a maioria das pessoas, é um aperto de mão. Os membros da família, esposos ou amigos próximos podem se beijar, se abraçar ou tocar as bochechas na moda continental. Mas a grande maioria das pessoas apertam as mãos, um gesto mais confortável para os norte-americanos.
Quando o beijo da paz foi restaurado na liturgia, muitas pessoas, a princípio, acharam desconcertante. Desde pequenos, eles tinham sido treinados para não falar na Igreja. De repente, "no meio da parte mais sagrada da missa, eles estavam sendo orientados a beijar ou a apertar as mãos com as pessoas ao seu redor. A maioria dos católicos logo aceitaram a prática, e para muitos é um dos pontos altos da liturgia. Em algumas comunidades, a troca da paz é um gesto rápido e silencioso entre estranhos. Em outras comunidades, é um evento explosivo e alegre, que se prolonga por algum tempo como amigos que trocam cumprimentos.
Mas alguns se queixam de que, apesar do sinal da paz ser uma boa ideia, o seu lugar antes da comunhão é perturbador e irreverente. Um certo número de bispos parecem compartilhar essa visão. Eles argumentam que, antes da comunhão, a assembleia deve se preparar para receber o corpo e o sangue de Cristo e não ficar cumprimentando uns aos outros. Os fiéis devem estar voltados para Jesus, e não em direção uns aos outros.
Na sua forma mais crua, esse argumento cheira a uma piedade individualista que vê a Eucaristia como algo "entre eu e Jesus", em que o resto da assembleia é apenas uma distração. Alguns dos que se queixam do beijo da paz até mesmo são contrários ao durante a comunhão porque isso os distrai de se preparar para receber Jesus e de fazer sua ação de graças privadamente. Aqueles que defendem a atual localização do sinal de paz respondem: "Existe melhor preparação para a Comunhão do que expressar o nosso amor por nossos irmãos?". O beijo da paz é visto por essas pessoas como um gesto de unidade e comunhão que será sacramentalizado na Comunhão.
A fim de resolver esses argumentos opostos, é necessário primeiro examinar a natureza dos gestos simbólicos e, em seguida, examinar a história do beijo da paz na liturgia romana.
Os seres humanos se comunicam por diferentes maneiras: através de palavras escritas, por meio de palavras faladas, através da música, através da arte e através de gestos. Os gestos são ações não verbais e simbólicas usadas por uma pessoa para se comunicar com os outros. Um policial dirigindo o tráfego usa gestos para se comunicar com os motoristas em seus carros. Os motoristas, seja através da prática ou da observação, aprenderam a interpretar esses gestos.
O SIGNIFICADO DE UM GESTO nem sempre é claro para a pessoa a quem o gesto é direcionado. Quando eu estava no colégio, um novo professor da Alemanha pediu voluntários para colocar a tarefa de casa no quadro negro. Quando ninguém levantou a mão para se voluntariar, o professor disse que queria ver alguns dedos. Os alunos mostraram imediatamente alguns dedos - cujo significado ele felizmente não entendia.
Os gestos também podem ter significados diferentes em contextos diferentes. Estender o braço direito em uma sala de aula significa que o aluno quer perguntar alguma coisa, estender o braço em um leilão significa que você está fazendo uma oferta, estendê-lo em um comício nazista significa outra coisa. Muitas vezes, portanto, quando o significado de um gesto não é claro, as pessoas adicionam palavras para tornar o significado mais claro. Se você for a um bar e levantar dois dedos, o significado é esclarecido se você disser "paz", ou "duas cervejas", ou "uma mesa para dois." Da mesma forma, as palavras também ajudam a interpretar gestos em um ambiente litúrgico.
Finalmente, deve-se notar que o significado de muitos gestos é determinado pela cultura. Gestos podem até ter significados exatamente opostos para pessoas diferentes. Usar um chapéu em uma sinagoga é um sinal de respeito, usá-lo em uma igreja católica é um sinal de desrespeito, a menos que você seja um bispo.
No mundo do cinema de Casablanca, de Humphrey Bogart, um beijo era apenas um beijo, mas na vida real as coisas são mais complicadas. Um beijo, um abraço e um aperto de mão são gestos usados para comunicar algum significado. São formas de comunicação não verbal, gestos simbólicos. Mas o significado desses gestos simbólicos nem sempre é evidente.
UM BEIJO pode ter muitos significados, dependendo das pessoas que se beijam, do lugar, da época e da cultura. Dependendo das circunstâncias, um beijo pode ser um convite para um encontro sexual, um cumprimento, um adeus, uma expressão de uma relação especial (conjugal, familiar), uma expressão de simpatia para alguém que está sofrendo, uma expressão de reconciliação (beijar e fazer as pazes), um ato de agressão (se o beijo é indesejado) ou até mesmo um ato de traição (como Judas). Também pode ser um sinal de submissão, como no beijar os pés.
Da mesma forma, um aperto de mão pode ter muitos significados: olá, adeus, um sinal de concordância (vamos apertar as mãos), uma indicação de uma promessa ou compromisso, um sinal de que o conflito não é pessoal (apertar as mãos e ir à luta). Ele também pode ser um sinal de parabéns (ao receber um diploma) ou um sinal de reconciliação. Apertos de mão podem acontecer entre estranhos ou entre amigos íntimos.
Qual é, então, o significado do sinal de paz em sua posição atual na liturgia? Vindo após a oração do Pai Nosso, alguns o veem como um sinal de reconciliação: "Perdoa-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido". O sinal da paz completa a oração através de uma ação - mostramos que perdoamos uns aos outros e estamos em paz uns com os outros. Seguindo essa interpretação, alguns sacerdotes introduzem o sinal da paz, dizendo: "Mostremos que estamos em paz uns com os outros", embora estas palavras não estejam nos textos litúrgicos. O novo Missal Romano proposto pela Comissão Internacional da língua inglesa na Liturgia apresenta uma segunda opção: "Como filhos do Deus da paz, ofereçamos um sinal de reconciliação e de paz" A terceira opção é: "Irmãos e irmãs, ofereçamos uns aos outros a paz de Cristo ressuscitado".
A oração que precede imediatamente o sinal de paz não fala de perdão mútuo ou reconciliação. É uma oração incomum, uma das poucas na Liturgia Eucarística dirigida a Jesus. A maioria das orações na Eucaristia são dirigidas a Deus, isto é, para o Pai. Esta oração cita o Evangelho de João, as palavras que Jesus falou quando dá a sua paz aos apóstolos na última ceia. Nesse quarto Evangelho, o Senhor, então, fala de não estar angustiado ou com medo. Em outra parte, ele fala de reconciliação, mas não aqui. A oração eucarística pede a Jesus que não para os nossos pecados, mas para a fé de sua Igreja, e que nos conceda a unidade e a paz de seu Reino, onde ele vive pelos séculos dos séculos. A oração nem sequer pede perdão; ela pede que Jesus simplesmente ignore os nossos pecados.
Depois dessa oração, o celebrante diz: "A paz do Senhor esteja sempre convosco". Essas não são palavras que pedem perdão da congregação, nem são palavras que expressam o perdão do sacerdote para o povo por seus pecados contra ele. Assim, não estamos falando sobre uma reconciliação mútua. Em vez disso, as palavras soam como uma bênção ou uma oração: "A paz esteja convosco". O celebrante está pedindo que a paz, dom de Jesus, esteja com a assembleia.
O celebrante ou o diácono, em seguida, diz: "Ofereçamos uns aos outros o sinal da paz". Embora muitos celebrantes tentaram transformar o sinal da paz em um sinal de reconciliação, a maioria de seus esforços falharam, e com razão. Há uma tendência entre alguns clérigos a crer que o pecado e a reconciliação devem ser mencionados durante a liturgia a cada 60 segundos ou o povo de Deus vai esquecer que eles são pecadores necessitados do perdão. Orações de louvor, agradecimento e petição devem ser constantemente interrompidas com uma lembrança do pecado. Essa convicção é claramente vista quando o sinal da paz é transformado em um sinal de reconciliação ou um rito minipenitencial.
Mas as pessoas na assembleia não caem nessa. Apesar do que o sacerdote possa dizer, a maioria das pessoas não veem o sinal da paz em sua posição atual como um sinal de reconciliação. Claro, há exceções: a família que teve uma discussão dentro do carro a caminho da Igreja, a paróquia que está dividida pela tensão racial, velhos inimigos que, acidentalmente, se sentaram lado a lado. Mas a pessoa comum que se volta para o seu vizinho não está pensando em seus pecados contra aquele vizinho ou nos pecados dessa pessoa contra ele. Em muitos casos, ele nem sabe o nome da pessoa.
Como, então, a assembleia enxerga o sinal da paz? Muitas vezes durante o beijo da paz, as pessoas simplesmente dizem "Oi" para seus vizinhos. Alguns, como aquele que preside, desejam o dom da paz de Cristo para os seus vizinhos. Eles dão uma bênção. Eles dizem: "A paz de Cristo esteja com você". Eles não dizem: "Vamos ficar em paz uns com os outros". A troca é feita com sorrisos de alegria, não com lágrimas de arrependimento. O beijo de paz também pode ser um gesto físico, indicando uma abertura à comunhão com os irmãos, aqueles com os quais nos uniremos em Cristo através da Comunhão.
A Introdução Pastoral para a Ordem da Missa proposta pela Comissão Internacional para a língua inglesa na Liturgia dá uma das melhores interpretações do beijo da paz. Ela ressalta: a troca de paz antes da recepção da comunhão é um reconhecimento de que Cristo, a quem recebemos no sacramento, já está presente no nosso próximo. Nessa troca, a assembleia reconhece a verdade insistente no Evangelho de que a comunhão com Deus em Cristo é apreciada em comunhão com nossos irmãos e irmãs em Cristo. O rito da paz não é uma expressão meramente de solidariedade humana ou boa vontade, é sim uma abertura de nós mesmos e nossos irmãos para um desafio e um dom que vai além de nós mesmos. Como o amém quando recebemos a comunhão, ele é a aceitação de um desafio, uma profissão de fé de que somos membros, um com outro, do corpo de Cristo.
Aos bispos se pergunta agora, no entanto, se o sinal da paz deve ser movido ou ficar onde está. Antes de considerar essa questão, será útil olhar para a história do beijo da paz e do seu lugar na liturgia.
Beijos e abraços são práticas antigas entre os cristãos. Depois de pedir aos Coríntios para viver em harmonia e paz, São Paulo diz-lhes para cumprimentar uns aos outros com o ósculo santo. Em sua Carta aos Romanos, depois de saudar uma série de pessoas, Paulo escreve:
"Saúdem-se uns aos outros com o beijo santo. Todas as igrejas de Cristo saúdam vocês". Assim, para a dividida comunidade de Corinto, ele faz o beijo um sinal de reconciliação, mas para a comunidade romana, ele expressa saudações de carinho e amor. Pedro diz a seus leitores para cumprimentar uns aos outros com o abraço do amor verdadeiro. Ele, então, imediatamente conclui sua carta com: "Paz a todos vocês que estão em Cristo". O beijo foi algumas vezes, mas nem sempre, um sinal de reconciliação.
Beijar em liturgias cristãs, então, tem uma longa história. De acordo com o antigo costume, os adultos foram batizados e confirmados pelo bispo, que imediatamente saudava o novo cristão com um beijo. Catecúmenos, por outro lado, não eram permitidos a dar ou receber o beijo da paz. De acordo com Joseph J. Jungman, SJ, um historiador da liturgia, esta foi uma apropriação cristã da prática secular em que um beijo era o sinal de iniciação em uma fraternidade ou sociedade (The Early Liturgy, p. 128). Os cristãos tomaram essa prática secular e incorporaram-na em seu próprio sacramento de iniciação, onde assumiu um significado adicional. Embora a prática tenha desaparecido na sociedade secular com a mudança da cultura, o seu significado na comunidade cristã continuou, ainda que degenerada, por meio da influência alemã, a um mero toque na bochecha.
O primeiro registro de um beijo no rito eucarístico está na descrição mais antiga registrada da liturgia - fornecido pela primeira Apologia de São Justino, em meados do segundo século. Justino descreve a Liturgia da Palavra como aquela que inclui as leituras das memórias dos Apóstolos ou os escritos dos profetas. Instruções e exortações do celebrante seguem as leituras, e, em seguida, todos se levantam e oram. Ele também observa: "Tendo terminado a oração, nós saudamos uns aos outros com um beijo". Em seguida, as ofertas são trazidas para a frente. Assim, o beijo ocorria imediatamente após as orações que concluíam a Liturgia da Palavra. Hoje isso significaria colocar o beijo da paz após a oração dos fiéis.
O que significa esse beijo em uma liturgia em meados do século II? Justino não explica, mas é interessante notar que ele não usa a palavra "paz". Ele também não usa a palavra "reconciliação". A palavra "saudação" implica algum tipo de cumprimento ou reconhecimento do outro. Uma possibilidade é que o beijo naquele momento era um resquício do tempo em que a Liturgia da Palavra e a Liturgia da Eucaristia aconteciam em momentos e lugares diferentes. A Liturgia da Palavra ocorria no sábado, no mesmo dia em que as pessoas atendiam as sinagogas. A Liturgia da Eucaristia era celebrada no domingo, o dia da ressurreição do Senhor. O beijo poderia ser a conclusão da Liturgia da Palavra antes das pessoas irem embora. Quando as duas liturgias foram combinadas, o beijo foi mantido após as orações que encerravam a Liturgia da Palavra.
SEJAM QUAIS FOREM AS SUAS ORIGENS, o beijo começou a ser interpretado e explicado de diferentes maneiras. Isto não é surpreendente, uma vez que um beijo é uma expressão simbólica aberta a diferentes significados.
Beijar na conclusão das orações parece ter sido um costume cristão comum. Poderia ter sido tão espontâneo como as ações de uma família hoje, abraçando e se beijando depois de rezar o terço juntos. Outro escritor cristão primitivo, Tertuliano († 230), pergunta: "Que oração pode estar completa sem o ósculo santo?". Ele via o beijo como um selo da oração que o precedeu. Como o Amém que representa a concordância com o que se passou antes.
O Evangelho de Mateus fornece um significado alternativo para o beijo: " Portanto, se você for até o altar para levar a sua oferta, e aí se lembrar de que o seu irmão tem alguma coisa contra você, deixe a oferta aí diante do altar, e vá primeiro fazer as pazes com seu irmão; depois, voltepara apresentar a oferta" (5, 23-24). Embora Mateus não mencione um beijo, é fácil ver como os pregadores ligaram esse texto com o beijo da paz, que ocorria um pouco antes das ofertas serem levadas para o altar. Assim, um novo sentido foi dado a um gesto antigo.
Segundo Jungman, em The Mass of the Roman Rite (2 vols., 1951-1955), o beijo da paz foi originalmente colocado no final do serviço de leitura e orações, em vez de no início do sacrifício da missa. De acordo com a antiga concepção cristã, ele era o selo e o penhor das orações que o precediam. Mas, depois que o serviço de leituras e orações se juntaram à celebração da Eucaristia - e levando-se em conta a admoestação de nosso Senhor (Mt 5, 22 ss.) sobre as disposições necessárias para aqueles que desejam fazer uma oferta -, provavelmente, teria levado o beijo da paz (como garantia de sentimento fraternal) para mais perto do momento em que se está trazendo sua oferta diante do altar.
Como, então, o beijo foi movido do fim da Liturgia da Palavra para sua posição atual após a oração do Pai Nosso e antes da Comunhão? A liturgia romana pode ter pego essa prática da liturgia africana, na qual, segundo alguns historiadores, a oração do Pai Nosso, originalmente, concluía a prece dos fiéis e, portanto, era seguida pelo beijo. Quando os africanos mudaram a oração do Pai Nosso para depois da fração do pão e um pouco antes da Comunhão, de acordo com a petição, "o pão nosso de cada dia nos dai hoje", o beijo foi junto com ele. Santo Agostinho de Hipona (430 d.C.), explica o beijo da paz como uma representação da petição "Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido". Tornou-se, assim, uma expressão de reconciliação imediatamente antes da Comunhão.
Mas a primeira indicação de um novo local para o beijo em Roma aparece em 416, quando o Papa Inocêncio I escreveu ao bispo de Gubbio dizendo que ele deveria seguir o costume romano de ter o beijo no final da oração eucarística. O bispo estava seguindo a prática mais antiga de fazê-lo antes de realizar os mistérios.
O motivo de Inocêncio para colocar o beijo após a oração eucarística é interessante: porque assim as pessoas dão uma prova de seu consentimento a tudo que é realizado nos mistérios e celebrado na Igreja. Como Tertuliano tinha dito, o beijo é um selo ou uma garantia da oração que acaba de ser recitada. E que oração não é maior do que a oração eucarística? O beijo, por isso, vai no fim dessa oração. Inocêncio não via o beijo como um sinal de reconciliação.
No tempo do Papa Inocêncio I, a oração do Pai Nosso era recitada após a fração do pão, imediatamente antes da Comunhão. O Papa Gregório, o Grande (590-604) reorganizou a liturgia e mudou a oração do Pai Nosso para uma posição imediatamente após a oração eucarística. O Pai Nosso era seguido de "Livrai-nos, Senhor, de todo o mal...". O beijo, por isso, estava bastante distante da oração eucarística que ele supostamente estaria selando. Por outro lado, a prática romana agora seguia o costume africano de ter o beijo após a oração do Pai Nosso, embora em Roma a oração do Pai Nosso ocorresse antes da fração do pão. Estando logo após o "Pai Nosso" ("Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos..."), o beijo agora assumia um tema de reconciliação. A oração pela paz ("Senhor Jesus Cristo...") antes da saudação da paz apareceu pela primeira vez na Alemanha no século XI. Ela substituiu orações mais velhas pela paz e foi adotada no Missal de Pio V (1570).
O beijo da paz continuou a ser mudado de lugar. Antes do Concílio Vaticano II, ele ocorria após o Agnus Dei, cuja última petição é: "dai-nos a paz", apesar do fato de que a Pax Domini ("A paz do Senhor esteja convosco") fosse cantada antes do Agnus Dei. Depois do Vaticano II, o beijo da paz foi devolvido à sua localização gregoriana, ou seja, após a Pax Domini, mas antes do partir do pão.
A VARIEDADE DAS PRÁTICAS nas Igrejas cristãs é quase infinita. Em algumas liturgias orientais, o beijo da paz ocorria antes da oração eucarística, mas após a apresentação dos dons. Em outras, ocorria após o Credo de Niceia para indicar uma afirmação do credo. Em outras ainda, a mão do bispo ou do sacerdote era beijada antes de receber a comunhão. Nas liturgias anglicanas, luteranas e protestantes contemporâneas, o beijo foi devolvido para o fim da Liturgia da Palavra. Simplesmente por razões ecumênicas, devolver o beijo da paz à sua posição antiga tem mérito porque ele iria colocar a liturgia romana mais próxima da prática nas liturgias orientais e protestantes.
Na época de Gregório, o Grande, o beijo da paz era visto como uma preparação natural para a Comunhão. Mesmo quando a Comunhão era recebida pelo doente ou outras pessoas fora da Missa, o beijo da paz era trocado antes da Comunhão. Em alguns lugares, aqueles que não receberiam a Comunhão não poderiam trocar o beijo da paz. Mas, em certos mosteiros, onde a congregação recebia a Comunhão somente na Eucaristia dominical, o beijo da paz tornou-se o ponto alto da liturgia diária. Uma restrição comum sobre o beijo da paz era a de que só os homens podiam dar para os homens, e as mulheres só poderiam dar para as mulheres. Essa regra era fácil de manter em igrejas onde os sexos eram separados, um costume ainda praticado nas sinagogas.
Pelo século X, o beijo da paz tinha desenvolvido um sabor hierárquico. Tudo começava com o bispo e descia até as fileiras do clero até os membros leigos na congregação. Ninguém poderia passar adiante o beijo da paz sem antes tê-lo recebido de algum superior. Essa prática levou a disputas não edificantes entre o clero sobre quem iria receber o beijo da paz em primeiro lugar. Assim, o gesto se tornou um símbolo do poder hierárquico e precedência - uma perversão de seu sentido original.
Quando um sacerdote presidia sozinho, a prática evoluía de seu primeiro beijo no altar e, em seguida, passava o beijo da paz para o povo. Ao beijar o altar, que simboliza Cristo, o sacerdote simbolicamente recebe o beijo da paz da parte de Cristo, que, em seguida, é passado para a assembleia. Na França, o simbolismo era mais gráfico, porque o padre beijava o anfitrião antes de passar o beijo da paz. Essa troca é semelhante à prática do Sábado Santo em que a chama (a luz de Cristo) a partir do círio pascal é repassada para toda a assembleia.
Na liturgia de hoje, o sacerdote já não beija o altar antes de estender o beijo da paz para os outros, então a ideia de estar passando algo que ele recebeu está perdida. Proibir as pessoas na assembleia de trocar o sinal da paz, até que, de alguma forma, recebam do padre é agora visto como demasiado clerical e contrário à visão da Igreja de ser o povo de Deus que partilha um sacerdócio comum através do batismo. Como uma questão prática, repassar beijo da paz em uma grande igreja leva tempo. Assim, por razões teológicas e práticas, essa prática foi abandonada.
Se o sacerdote só deve trocar a paz com os que estão no altar, ou se ele deve ir para a assembleia, isso é um ponto a ser debatido. Alguns argumentam que ele já estendeu a paz a toda a assembleia e não precisa oferecer-lhe individualmente a todos. Mas, se este é o caso, por que estender o sinal da paz para as pessoas no altar? Sobre essa questão, os liberais e os conservadores se opõem aos moderados. Os liberais, reagindo contra o modelo de "passar adiante", argumentam que as pessoas não precisam do padre para ajudá-los a trocar a paz uns com os outros. Os conservadores são relutantes em ver o presidente da celebração deixar o território sacerdotal, que é o presbitério. Os moderados simplesmente respondem às pessoas que parecem desfrutar de receber o beijo da paz do celebrante. Esse ir e vir também quebra a barreira artificial entre o presbitério e a assembleia.
Quase 2.000 anos de prática litúrgica, portanto, mostram que na Igreja Católica um beijo nunca é apenas um beijo. Pelo contrário, é um símbolo para o qual muitos significados diferentes foram oferecidos. O que isso nos diz sobre a proposta atual para mover a posição do beijo da paz? Seis pontos são dignos de nota:
Em primeiro lugar, o beijo da paz foi movido antes e não há nada de errado com movê-lo novamente por um bom motivo.
Em segundo lugar, ao beijo foram dados diferentes significados pela comunidade cristã em diferentes períodos de sua história. Não há nada de errado em dotá-lo de um novo significado hoje se isso se encaixa em nosso entendimento e prática eucarística atuais.
Em terceiro lugar, a prática mais antiga é dar o beijo na conclusão da Liturgia da Palavra. A prática romana e africana eram incomuns. Em uma comunidade onde a história e a tradição são importantes, a colocação antiga deve ser encarada seriamente, especialmente quando ela é usada por outras Igrejas. A prática mais antiga apoia a proposta de mudar o beijo da paz para a conclusão da Liturgia da Palavra.
Em quarto lugar, em sua forma original, o beijo da paz não era um sinal de reconciliação. Em uma comunidade onde a história e a tradição são importantes, tentativas de transformar o beijo da paz sempre em sinal de reconciliação devem ser questionadas. A prática mais antiga não suporta a ideia do beijo da paz como um sinal de reconciliação. Por outro lado, as interpretações menos antigas do beijo da paz, como sinal de reconciliação não são necessariamente inválidas. Interpretações do beijo da paz como um símbolo de unidade e de amor também não são inválidas. A comunidade tem o direito de dar aos símbolos significados novos e diferentes.
Em quinto lugar, o beijo era inicialmente visto como um selo ou garantia da oração recentemente recitada. Como o Amém, é uma afirmação congregacional, uma promessa dos fieis de encarnar em suas vidas o que ouviram na Liturgia da Palavra. Nesse sentido, é muito mais como apertar as mãos em um negócio do que como beijar e fazer as pazes. Ele simboliza a afirmação das pessoas e a renovação da aliança da comunidade proclamada na Liturgia da Palavra. Uma parte essencial desse pacto é a reconciliação, mas a reconciliação não é a única mensagem. É incerto se esse significado original do beijo pode ser recapturado, mas essa interpretação teria uma chance melhor de ser entendida se o beijo fosse para a conclusão da Liturgia da Palavra, em vez de em qualquer outro lugar na liturgia.
Em sexto lugar, a maioria das pessoas na assembleia atualmente enxergam o beijo da paz quer como uma bênção que conferem um no outro, quer simplesmente como uma chance de dizer "oi" para seus vizinhos. As tentativas de mudar esse ponto de vista, provavelmente, não vão ter sucesso se o texto litúrgico permanecer inalterado e enquanto o beijo permanecer onde está.
Assim, o beijo da Paz deveria ser movido?
Um estudo conjunto da Comissão Episcopal dos Estados Unidos sobre a Liturgia e da Federação das Comissões Diocesanas Litúrgicas revelaram alguma insatisfação com o lugar atual do sinal de paz e recomendam a sua mudança. A recomendação apresentada aos bispos em sua reunião de novembro de 1994 propunha a mudança do beijo da paz à sua posição mais antiga, depois da Liturgia da Palavra e no início da Liturgia da Eucaristia (grifo nosso).
A formulacão imprecisa do texto dessa proposta é surpreendente, considerando sua fonte. Como aprendemos de Jungman, seria mais correto dizer que a posição mais antiga era no fim da Liturgia da Palavra e antes da Liturgia Eucarística. A questão não é tão trivial quanto parece à primeira vista. Será que o beijo da paz conclui (olha para trás) a Liturgia da Palavra, ou começa (olha para frente) a Liturgia Eucarística? Ou é uma dobradiça neutra entre as duas?
A proposta cita Mt. 5, 23-24 ("Se você levar sua oferta ao altar...") para defender a mudança do beijo da paz. O texto proposto faz o sacerdote introduzir o sinal de paz com as seguintes palavras (ou outras semelhantes):
"Cristo nos lembra que, antes de trazer a nossa oferta ao altar, devemos nos reconciliar uns com os outros. Juntos vamos nos reconciliar em Cristo, que coloca nossos corações e mentes em paz".
O padre então estende suas mãos e dá a saudação de paz: "A paz do Senhor esteja sempre convosco". Depois de o povo responder: "O amor de Cristo nos uniu", o sacerdote, em seguida, usa as seguintes palavras (ou outras semelhantes): "Ofereçamos um ao outro um sinal de reconciliação e de paz". O texto, portanto, identifica explicitamente o beijo da paz como um sinal de reconciliação. Daí a minha conclusão: os bispos parecem estar se preparando para fazer a coisa certa pelo motivo errado. Novamente, vence o sendo de pecado de Agostinho.
A graça salvadora é que as palavras não são obrigatórias. Assim, um celebrante pode se referir a algo em leituras bíblicas do dia, introduzindo o sinal da paz. Por exemplo: "Jesus nos disse: 'Amai-vos como Eu vos amei'. Para mostrar nosso amor uns pelos outros, saudai-vos no amor e na paz de Cristo". Ou um outro exemplo: "Jesus veio para estabelecer o reino de seu pai, um Reino de justiça e de paz. Como comunidade, nós nos comprometemos a trabalhar pela justiça e pela paz. A paz e a justiça de Cristo estejam sempre convosco. Prometamos a paz e a justiça uns aos outros".
Mas, se os bispos realmente querem usar o beijo da paz como um meio de implementar a passagem de Mateus 5,23-24, então eles devem mover o rito penitencial para o fim da Liturgia da Palavra e celebrar o rito penitencial com o beijo da paz. Nesse rearranjo, o rito penitencial seria visto como uma resposta ao chamado para o arrependimento e reconciliação como proclamado nas Escrituras e na homilia. Há muito a ser dito sobre esse rearranjo, que é usado na liturgia do Zaire [República Democrátia do Congo] aprovada por Roma. Ela segue o padrão de proclamação e resposta que é um princípio litúrgico fundamental. O lado negativo (ou positivo, dependendo do seu ponto de vista) é que os pregadores seriam encorajados por esta estrutura a concluir a homilia com referências ao pecado, ao perdão e à reconciliação.
Se os bispos querem dar o beijo da paz como um sinal de reconciliação, outra possibilidade é movê-lo para depois do rito penitencial em seu local atual, no início da Liturgia da Palavra. Tal movimento, no entanto, daria ao rito penitencial mais ênfase do que a maioria das pessoas acredita que ele mereça e reverteria o padrão de proclamação-resposta para resposta-proclamação. Se estamos verdadeiramente reconciliados e em paz assim tão cedo na liturgia, por que ouvir a palavra de Deus?
Finalmente, algumas pessoas acreditam que o beijo da paz é liturgicamente irrecuperável e gostariam de dá-lo antes que a liturgia comece. Aqui ele iria voltar a ter um significado secular como uma saudação ou parte de uma introdução. Muitas paróquias já introduziram uma saudação iniciada por um leigo antes do sacerdote entrar na assembleia. Uma vez que ocorra antes do início da liturgia, não há nenhuma lei contra fazer isso. Essa saudação promove um senso de comunidade. Quando feita corretamente, ela faz pessoas estranhas apresentarem-se a outras ou permite saudações entre amigos que ainda não se cumprimentaram. Mas esse não é o momento para as famílias e amigos que vieram à igreja no mesmo carro apertar as mãos!
ALÉM DE PROMOVER O SENSO DE COMUNIDADE, esse aperto de mão introdutório também ajuda as pessoas a entender que o beijo da paz não é apenas dizer "oi". É diferente. Você diz "oi" para alguém que você ainda não falou, mas você troca o sinal da paz com todos os outros (família, amigos e estranhos), mesmo se você teve uma longa conversa com eles antes da liturgia.
Para resumir: os bispos devem votar para colocar o beijo da paz no fim da Liturgia da Palavra. Deve acontecer após a oração dos fiéis, ou seja, retornar à sua posição mais antiga. Como o beijo será interpretado pelo clero e pelo povo, vai ser interessante de ver.
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Vaticano diz ''não beije'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU