27 Junho 2014
"Há pouco tempo, o autor destas linhas precisou intervir porque um jovem índio do Xingu, de 15 anos de idade, havia sido trazido para Goiânia por um empresário para assinar contrato com uma equipe de primeira linha do futebol local - mas cedendo a quase totalidade de seu pequeno salário e dos direitos de transferência a esse mesmo empresário", informa Washington Novaes, jornalista, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 27-06-2014
Eis o artigo.
Pois é. O futebol, que durante mais de um século pareceu terreno fertilizado por meninos descalços que jogavam "peladas" em campos de terra batida, onde se formavam os craques dos grandes times, dá a impressão de ser hoje uma área comandada principalmente pela publicidade, pelo mundo das finanças e pela complexidade tecnológica - essa mesma área que durante mais de um século teve seu curso ditado quase apenas pela paixão dos torcedores. O noticiário recente dá conta, por exemplo, de processo movido na Justiça pela própria Confederação Brasileira de Futebol (CBF) contra uma das empresas a que a Fifa, a federação internacional desse esporte, vendeu o patrocínio da Copa do Mundo. A empresa estaria utilizando indevidamente os "símbolos da seleção" em anúncios na televisão, com atores "usando a camisa verde e amarela da seleção". Diz a CBF que as cores verde e amarela da Bandeira "são atributos de domínio público, que representam a brasilidade e o patriotismo". Por isso não poderiam ser "apropriadas pela empresa" (nos anúncios da Fifa?).
Como interpretar tudo isso? De fato, os espectadores nos estádios e as pessoas nas ruas vestem-se de amarelo, cantam o Hino Nacional com a mão levada ao peito, vibram com os gols e as vitórias. Mas isso não significa que também aí não haja contradições. Por exemplo, que importância ou significado tem a seleção nacional até aqui só haver sido integrada em campo por profissionais que não atuam no País, e sim em clubes de outros continentes? Entre os 12 reservas a situação não é muito diferente. Quem somos? Para quem torcemos?
Na nossa seleção em campo há quem jogue na Espanha, na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos. No elenco todo também há jogadores que atuam em vários outros países, do Japão e da Coreia do Sul à Europa toda. Mais complicado ainda, há atletas nascidos no Brasil que integram seleções da Espanha, da Croácia, da Itália, de Portugal - porque assumiram legalmente a nacionalidade desses países. E ainda não somos a maior complexidade. Há dois irmãos dividindo nacionalidades: um na seleção de Gana e o outro na da Alemanha.
Há quem interprete até certa decadência de seleções como as da Espanha, da Inglaterra, da Itália ao fato de não poderem contar, na Copa do Mundo, com jogadores de outras nacionalidades que integram seus grandes times nos campeonatos nacionais. Da mesma forma, a atual ascensão de seleções como as do Uruguai, da Colômbia, do Chile, da Costa Rica, da Croácia, da Argentina seria explicável, ao menos em parte, pela inclusão de profissionais nascidos em seus territórios e que hoje jogam não nos campeonatos nacionais, e sim nos vários continentes.
O processo aberto pela CBF também surpreende quando nos lembramos de ver na TV e nos jornais jogadores da seleção brasileira, seu técnico, membros da comissão técnica anunciando os mais variados produtos e empresas - ao lado do maior artilheiro brasileiro em Copas do Mundo, embora ele seja membro do "comitê organizador local" da Copa, mantido pela CBF. O mesmo jogador que foi protagonista, em 1998, de episódio em que, provavelmente pela primeira vez, houve acusações de interesses comerciais, de patrocinadores, na escalação da seleção brasileira para o jogo final - depois de haver sido o atleta, vítima de uma convulsão física, levado para hospital e de lá saído poucas horas antes de entrar em campo.
Hoje se testemunham a abrangência e a relevância dos interesses financeiros na área. Meninos de 8 anos de idade começam a ser observados por representantes de clubes e de empresários da área nos treinamentos das chamadas "divisões de base" de clubes. Por volta de 12 ou 13 anos de idade, seus representantes legais já assinam compromissos com esses empresários ou clubes, pelos quais cedem parte (às vezes, leonina) das remunerações (salários, transferências de clubes, etc.). Recentemente se noticiou que o mais famoso atacante da seleção brasileiras de hoje ganhou seu "primeiro milhão de reais aos 13 anos de idade".
Há pouco tempo, o autor destas linhas precisou intervir porque um jovem índio do Xingu, de 15 anos de idade, havia sido trazido para Goiânia por um empresário para assinar contrato com uma equipe de primeira linha do futebol local - mas cedendo a quase totalidade de seu pequeno salário e dos direitos de transferência a esse mesmo empresário. O pai do jovem xinguano pedia ajuda, para conseguir melhores termos financeiros. Com a ajuda de terceiros foi possível melhorar financeiramente os termos do contrato oferecido.
Há quem até tenha escrito que o temor de contusão tem levado nossos craques a não se arriscarem tanto em jogadas com possibilidade maior de causar problemas físicos - porque isso significaria sair do time, ficar afastado, reduzir gratificações, prêmios, etc. E isso explicaria a impressão, em certos instantes, de pouco envolvimento nos jogos.
Passando de pato a ganso, como diziam os antigos, talvez tudo se complique ainda mais. Nos últimos dias têm sido frequentes as notícias de que "aplicativos para apps, smartphones e tablets" têm permitido "acompanhar a Copa do Mundo em detalhes, saber de resultados de grupos, estatísticas e até probabilidades", tornando tudo "possível para técnicos e para a imprensa esportiva", em tempo real e gratuitamente (O Popular, 23/6). Em última análise, "quem não quer perder um lance e saber mais sobre os jogadores em campo pode equipar seus dispositivos móveis para servir como segunda tela" (de televisão), inclusive durante os jogos nos estádios. E muito mais, inclusive nos intervalos entre os jogos. É o mundo da informática também comandando o futebol. Aumentando a complexidade.
Mundo complicado. E ainda lembrando o custo dos estádios, alvo de protestos populares: R$ 8 bilhões, segundo o governo federal, ou R$ 28 bilhões, como dizem por aí? Haja paixão para torcer assim mesmo.
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As novas contradições do mundo do futebol - Instituto Humanitas Unisinos - IHU