Por: Caroline | 27 Mai 2014
“O feminismo é a teoria critica que interpela mais profundamente as bases da sociedade, porque não está pensando apenas no público, mas também no privado”, é o que diz Rosa Cobo Bedia (foto), teórica feminista espanhola, docente, pesquisadora e, principalmente, militante pelos direitos das mulheres. Foi assessora ministerial no governo de Rodríguez Zapatero. E, nessa entrevista, adverte sobre as consequências provocadas pela luta de igualdades de gêneros nos planos de ajuste tanto em seu país como em toda a Europa. Também traz o debate em torno da prostituição e analisa o que mudou na Espanha com a lei contra a violência de gênero.
A entrevista é de Mariana Carbajal, publicada por Página/12, 26-05-2014. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/0ATYmn |
Em sua visita a Buenos Aires, onde veio a convite de uma organização regional de mulheres, a Cladem, Rosa Cobo Bedia, falou sobre as consequências da luta por igualdade entre homens e mulheres nos planos de ajuste, o debate em torno da prostituição – trabalho ou exploração sexual? – as mudanças trazidas pela lei contra a violência de gênero sancionada há uma década na Espanha, entre outros temas.
Eis a entrevista.
Como as lutas pela igualdade entre homens e mulheres estão afetando as políticas neoliberais na Europa?
A Europa já está totalmente envolvida nas políticas econômicas neoliberais e são muitos os seus efeitos. Contudo há dois básicos, que podem ser identificados analiticamente. O primeiro deles é o aumento do trabalho gratuito por parte das mulheres. Na medida em que o Estado abdica das funções que desempenhava até o momento, essas tarefas são transferidas para as famílias, nas quais são as mulheres que passaram a assumi-las. Trata-se de invisibilizar esse processo de deslocamento. Ao mesmo tempo, os salários baixaram em demasiado e, então, as famílias de classe média prescindiram de uma ajuda doméstica, tarefas que passaram a serem feitas pelas mulheres. Com menos dinheiros nos lares, também tende-se a preparar outro tipo de comida: já não mais um bife, mas pratos mais elaborados que são mais baratos, mas que demandam mais trabalho. O cargo de cozinhar também fica para as mulheres. De 2003 a 2014, o trabalho gratuito das mulheres na Espanha, subiu 4,3%. É um dado paradigmático. Imagine-se em um país da América Latina, como ocorreu há alguns anos atrás no Peru ou no Brasil, que tenha um crescimento anual dessa magnitude. Esse trabalho gratuito das mulheres aumenta, sobretudo, outro fenômeno, que também é historicamente novo: a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho. E para isso, têm o dobro da jornada de trabalho.
Qual é o segundo efeito?
As mulheres têm entrado no mercado de trabalho a partir dos anos 60 e 70, em um processo de perda de direitos para os trabalhadores e de uma redução muito significativa dos salários. Em 1973, a partir do golpe militar de Pinochet, o Chile se transformou num primeiro laboratório onde foram aplicadas as políticas neoliberais; em seguida foi a Argentina, Inglaterra... A redução dos salários nos últimos vinte anos tem sido fatal. Isto é, as mulheres entram no mercado de trabalho na mesma posição que têm na sociedade: em uma posição de óbvia desigualdade em relação aos homens. As mulheres são maioria nos trabalhos de tempo parcial, na economia paralela, nos empregos mais precários, são as mais presentes nos chãos de fábrica mais desqualificados. A maior parte dos salários mais baixos são femininos.
O paradigma que explica esse fenômeno com muita nitidez é justamente o do chão das fábricas. Tende-se a pensar que estão presentes apenas na América central e no Sudeste asiático. Ora isso é muito falso: as montadoras, por exemplo, estão invadindo o mundo inteiro. Na Espanha também as vemos. Os dois grandes fenômenos que explicam a posição de exploração das mulheres são a indústria de um lado, e a prostituição de outro.
São as duas metáforas explicativas da sorte das mulheres no século XXI. Há outro efeito que já não tem haver exclusivamente com as mulheres, mas que também pode ter uma leitura feminista: o alargamento do mercado e redução significativa da capacidade de manobra do poder político, para poder gerir o mercado com uma chave social democrata, keynesiana, de redistribuição econômica. Em termos gerais, as políticas econômicas neoliberais estão causando um grande aumento da desigualdade social, formando um abismo entre pobres e ricos, um fenômeno que, há muitas décadas, era completamente desconhecido na Europa. É um processo que está veiculado principalmente a revolução do século XIX, com aquele capitalismo que explorava de uma forma impiedosa, mais do que em qualquer outro momento do último século.
Você mencionou a prostituição... o que pensa sobre a postura de algumas organizações que argumentam que deve-se regulá-la como um trabalho?
É um debate complicado que está presente em muitas partes do mundo e que por muito tempo está em um lugar marginal, contudo finalmente conseguiu um lugar da agenda política dos países europeus. A maior parte do feminismo inclina-se para consideração de que a prostituição é uma forma de exploração das mulheres. Tenho adesão a este olhar. Também é certo, e devemos levar em consideração, que nos países que têm estados de bem-estar mais desenvolvidos na Europa, como é o caso da Suécia, Noruega, Finlândia e Islândia, chegou-se a conclusão de que trata-se de uma forma extrema de exploração sobre as mulheres. E estão sendo elaboradas políticas orientadas a penalizar o cliente e colocar sobre a mesa, políticas e recursos que tornem possível que as mulheres - que estão vivendo da prostituição - possam sair dela. É muito importante colocar como manifesto a maneira com a qual o feminismo está tentando tirando o foco da mulher prostituída para o homem prostituidor, ou seja, aquele que se chama de cliente que, ao meu ver, está sendo feito de uma forma bastante branda. Não acredito que devemos chamá-lo assim, porque é reconhecer ruma relação comercial.
Aqueles que defendem a prostituição como um trabalho, fundamentam sua postura no direito, por parte das mulheres, a decidir sobre seu próprio corpo, o mesmo argumento com o qual o feminismo defende o direito ao aborto. O que você pensa sobre essa abordagem?
Há uma escolha quando há a possibilidade de escolher. Quando não há possibilidade de escolher, não. Uma mulher extremamente pobre, com poucos recursos culturais e que tenha sido abusada sexualmente em sua infância – porque a maioria das mulheres que exercem a prostituição sofreram essa violência, e esse é um aspecto que não se comenta – que possibilidade de escolha ela tem? O que há são circuitos semi-institucionalizados pelos quais as mulheres transitam para a prostituição, que são os mesmos pelos quais circulam as armas, drogas, órgãos. As mulheres vão dos países mais pobres para os mais ricos, e seguem esses circuitos. Não se pode dizer alegremente que a prostituição é um trabalho como qualquer outro, porque a maior parte das mulheres que a exercem não querem exercê-la. Não estou colocando em discussão a existência de grupos reduzidíssimos de mulheres que exercem prostituição e que a consideram um trabalho. Coordenei um trabalho de pesquisa entre 2010 e 2013, financiado pelo Instituto da Mulher na Espanha.
Nessa época entrevistamos as mulheres que exerciam a prostituição e nenhuma delas desejava realiza-la, mas o faziam porque era uma possibilidade mais segura de obter uma renda, principalmente em momentos que o mercado de trabalho se reduziu a extremos insólitos. Para as mulheres resta essa forma de pagamento para poder viver, assim como para outras pessoas resta a venda de um rim. Mas mesmo assim isso não quer dizer que seja aceitável. Não podemos renunciar a construção de uma imagem de como queremos que o mundo seja e, a partir do ponto de vista ético e social, não me parece que nessa imagem possa haver grupos de mulheres para uso sexual de todos aqueles homens que queiram fazê-lo. Uma lei serve para enviar uma mensagem para a sociedade. Quando se legaliza a prostituição envia-se a mensagem a todas as nossas mulheres jovens – e eu estou pensando em minha filha, que tem 12 anos – de que se trata de uma atividade aceitável. Desde já não quero que minha filha, nem que nenhuma jovem – porque são as jovens que basicamente alimentam esse campo – recebam como mensagem que a prostituição é um trabalho como qualquer outro, porque realmente não o é.
Que sequelas a prostituição deixa nas mulheres?
O uso de álcool e de drogas é altíssimo entre elas. Quando as entrevistei, me disseram que têm que beber e usar drogas porque para elas é impossível deitar-se com um homem e logo com outro e depois com outro. Além disso, é uma atividade que as desgasta em demasiado porque enquanto se deitam com os homens têm que ter um nível de controle fortíssimo para que não se excedam, não utilizem a violência, para que permaneçam o tempo que tiver que estar, para que não as obriguem a fazer coisas que não querem fazer. É um desgaste psicológico extremamente forte e é um processo de desempoderamento brutal. Muitas delas não utilizam esta palavra, contudo o significado é esse.
Que interesse há por traz dos planos de legalização e sindicalização da prostituição?
Vou dizer desta maneira: há momento nos quais não se pode fazer desaparecer os fenômenos sociais que são extraordinariamente duros para os que têm que vivê-los, trata-se de optar pelas saídas que melhorem suas condições de vida. Porém já temos dados nítidos e categóricos, como os relatórios que foram publicados após muitos anos da sua legalização na Holanda, que argumenta que com a legalização da prostituição não houve melhora das condições de vida das mulheres que a exerciam. Assim, não devemos nos esquecer desse argumento. Se a tendência é a de “desnormatizar” as relações de trabalho de setores cada vez mais amplos de trabalhadoras e trabalhadores, nos quais não há contratos – isso chama-se de flexibilização – me pergunto: Como é possível elaborar contratos para as mulheres que exercem a prostituição se, como ocorre na Europa principalmente, a maioria não têm documentos porque são imigrantes? Sua vida não melhora. O que melhora com a legalização é a vida dos traficantes, dos donos dos bordéis e dos homens que sabem que terão corpos que são mercadorias à sua disposição.
Que mudanças houve na Espanha na última década em relação à violência de gênero a partir das leis que foram aprovadas para sancionar e implementar outras medidas para sua prevenção?
A partir de 2004 começou-se a fazer políticas públicas de igualdade de gênero e, nesse marco, aprovou-se uma lei contra a violência de gênero. Havia mais expectativas em torno dessa lei frente as quais conseguiu-se realmente satisfazer. O mais importante, acredito eu, é a mensagem que foi enviada a sociedade de que a violência contra as mulheres não é aceitável a partir do ponto de vista moral e social. O limite da tolerância baixou. Isso foi muito bom. Tornou-se, além disso, um tema de debate social, político e público de um tema que era considerado privado. O problema se tornou visível para muita gente, para as quais, até o momento, era invisível. A lei tem uma parte impositiva, que se centra no castigo ao agressor, e outra, propositiva, que assinala que a violência contra as mulheres não pode desaparecer se não forem feitas políticas de prevenção, que têm haver com educação sexual nas escolas, com a introdução do problema da desigualdade entre homens e mulheres nos estudos primários, secundários e universitários. Essa parte é a que não foi cumprida. Nesse ponto também temos que dizer que a direita tem sido extramente agressiva contra as políticas de prevenção. Nunca aceitou introduzir a educação sexual no currículo escolar.
Os últimos anos, que têm sido os piores na Espanha desde que a democracia foi reinstaurada, visto as políticas de ajuste que têm sido brutais, tem ocorrido o desaparecido completo das políticas sociais e os recursos para as mulheres – mesmo que não apenas para elas – de modo que a lei contra a violência de gênero está sendo esvaziada de conteúdos.
Na Argentina observa-se uma exacerbação da violência contra as mulheres, com casos de mulheres queimadas vivas por seus parceiros ou ex-parceiros em diversos casos que se repetem. O mesmo fenômeno é observado na Espanha? A que você acredita que poderia estar relacionado?
Poderíamos falar de um grande exemplo da violência patriarcal, que é de um homem que considera que sua parceira é sua propriedade – como no século XIX, quando não tínhamos muitos direitos civis – e, frente à possibilidade de que ela possa ter voz, autonomia, ou possa ir embora, utilizam diversas formas de violência, que em alguns casos termina no assassinato. Esse é o exemplo da violência patriarcal que estamos costumadas a ver e que as feministas têm conseguido identificar analiticamente de modo que temos provocado uma conscientização e também introduzido a questão na agenda política de muitos países. Depois, vimos que houve um surgimento de novas formas de violência patriarcal. Estou pensando nos feminicídios da Cidade de Juarez (México) e em como os crimes contra as mulheres aos finais de semana estão aumentando em alguns lugares da América Central. Trata-se de adolescente que saem por aí para tomar uma bebida e são violentadas coletivamente por vários homens e, em alguns casos, são mortas. Em gangues da América Central, para que algumas mulheres possam acender como membros de pleno direito são obrigadas a passar por vexações, desde ter relações sexuais com os chefes até a terem que aguentar violências físicas. Isto é, estão surgindo formas de violência perpetradas por um homem que não é parente da vítima. Pode-se interpretar desta maneira: as mulheres conseguiram, a partir dos anos 70, mais liberdade, mais igualdade, mais autonomia, mais independência econômica e, pela primeira vez na história – e isto é inédito – podemos dizer “não” aos homens. E não apenas podemos dizer, mas de fato o dizemos. As taxas de divórcio são altíssimas em muitas partes do mundo, sobretudo em setores de classe média e média baixa. E não apenas na Europa. As taxas de natalidade, além disso, vem descendendo. São maneiras de dizer não ao conceito de família patriarcal tradicional. Parece que os homens não podem aceitar esse processo: que as mulheres lhes digam não. Por exemplo: 13% das mulheres alemãs não querem ter filhos e não os têm. É completamente inédito. Parece que na medida em que as mulheres ganham direitos e podem dizer não aos homens individualmente, os homens coletivamente respondem com um tipo de agressividade e de violência que não estava na maneira de relacionar-se entre os homens e as mulheres. Não tem sentido como fato isolado tomar uma mulher, tortura-la, violá-la, jogar-lhe cal puro, porque os atos de violência têm sempre uma dimensão instrumental. Isso quer dizer que, eu exerço violência contra alguém porque isso irá me produzir benefícios. E, todavia, estes atos seguem sem ter, aparentemente, essa dimensão instrumental. Apenas a têm se olharmos dentro de um contexto mais amplo. As vítimas do feminicídio da Cidade Juarez são mulheres que saíram do domínio masculino, vão pelas ruas, pelas noites aos bares, têm uma vida autônoma. Essa é o pano de fundo desses assassinatos. Uma violência dessas características faz com que seu pai, seu irmão, seu namorado, vão te buscar em teu trabalho, na escola, e que um número muito menor de mulheres saiam às ruas sozinhas principalmente em determinadas horas. Faz com que elas não tenham confiança para saírem sozinhas.
Por que se as conquistas conseguidas pelas mulheres nas últimas décadas são relacionadas com as lutas feministas, mas o feminismo continua não sendo visto com bons olhos?
Porque é uma teoria crítica da sociedade que trata de colocar em questão um sistema de dominação, estabelecido pelos homens coletivamente sobre as mulheres. Todas as teorias críticas da sociedade sempre geram muita resistência social e rejeição por aqueles que não se beneficiam: ocorreu com o marxismo, o anarquismo, o ambientalismo em países como Brasil e Costa Rica. No caso do feminismo é mais grave porque, como dizia um filósofo francês do século XVII, os homens são juiz e júri ao mesmo tempo. Os homens veem seus privilégios ameaçados e o feminismo os interpela diretamente em sua cara e os diz que os privilégios devem acabar, e eles respondem que as coisas não são assim, pois respondem a uma ordem natural. Ninguém quer que deixem de fazer a cama, de cuidar dos filhos, de desenvolver sua carreira profissional, de ir jogar cartas, tomar uma bebida, ou dividir as listas eleitorais dos partidos e do poder, afinal isto é o que está no centro de tudo. O patriarcado tem subsistido com ordens econômicas muito diferentes, contudo acredito que é um momento histórico muito especial e que há uma aliança para a morte do patriarcado e do neoliberalismo porque nós mulheres somo trabalhadoras idôneas para um novo mercado de trabalho sem contratos, para pessoas intercambiáveis. E as mulheres sempre têm sido definidas como intercambiáveis. Não sei aqui, mas na Espanha se dizia: “O que uma mulher pode fazer, pode ser feito por outra”, que é uma maneira de dizer que não se requer qualificação profissional nem transformação cultural. No chão das fábricas qualquer um pode trabalhar, porque repete-se sempre o que deve ser feito. O feminismo é a teoria critica que interpela mais profundamente as bases da sociedade, porque não está pensando apenas no público, mas também no privado. Não queremos apenas ter um trabalho bem pago, entrar na política e participar em todos os reais espaços de poder, mas, além disso, também vamos iluminando as relações de poder que existem dentro das famílias.
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“As políticas econômicas neoliberais aumentam o trabalho gratuito das mulheres”. Entrevista com a teórica feminista espanhola Rosa Cobo Bedia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU