Por: Jonas | 26 Mai 2014
Na pessoa de Antonio Elizalde convergem, de forma natural, as reflexões do ativista, pesquisador, educador e divulgador. Colaborador costumeiro dos movimentos sociais e ambientalistas chilenos e licenciado em sociologia pela Universidade Católica do Chile, assumiu tarefas governamentais nos governos prévios à ditadura de Pinochet para, posteriormente, tornar-se pesquisador e consultor independente de organismos internacionais como UNICEF, PNUD e CEPAL. Um infatigável ensaísta e divulgador de questões relacionadas à globalização, modelos de desenvolvimento e sustentabilidade. Durante onze anos, foi reitor da Universidade Bolivariana do Chile e, atualmente, preside a Fundação Chile Sustentável e dirige as Revistas Polis e Sustentabilidades.
A entrevista é de José Luis Fernández Casadevante, publicada por Rebelión, 19-05-2014. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
A teoria do Desenvolvimento em Escala Humana, que você esboçou juntamente com Max Neef e Hopenhayn, no final dos anos 1980, supôs um abalo no momento de encarar a reflexão sobre as necessidades humanas e as diversas formas culturais de resolvê-las. Como você resumiria essa proposta?
No imaginário construído pela linguagem economicista está uma noção de ser humano como um ser de necessidades infinitas, permanentemente insatisfeito pela pressão da manipulação, de acordo com o que reconhecem os inventores da publicidade, gerando uma falácia de que nos instalamos como civilização, com uma propensão suicida. Frente a isto, há alguns anos atrás, percebemos que o elemento central desta crença de necessidades sempre crescentes, cambiantes e praticamente infinitas era falso. O ser humano é por lógica um ser conformado por poucas necessidades. Uma vez que estas são poucas e constantes, ao longo da história humana, o que muda então são outras coisas. E aí introduzimos o conceito de ‘satisfactor’ – cunhado previamente na Fundação Bariloche -, o elemento cultural por meio do qual tais necessidades se satisfazem. O que muda de uma cultura para outra não são as necessidades, mas, sim, os ‘satisfactores’. O outro elemento constitutivo do sistema, com o qual procuramos representar a realidade, são os bens.
Os bens são a dimensão material de uma cultura. Então, temos necessidades, poucas, finitas e classificáveis. Temos ‘satisfactores’ que mudam de cultura para cultura e finalmente os bens, que formam o que nós, seres humanos, produzimos. Os bens potencializam a capacidade do ‘satisfactor’ para dar conta de uma necessidade.
Em nossa sociedade, na vida cotidiana nos relacionamos quase exclusivamente com bens, pois é uma civilização baseada no superconsumo, que constrói sistematicamente a obsolescência destes bens porque os padrões de consumo ou a moda dizem que já não são viáveis. Os discursos críticos atuais afirmam que não se pode continuar crescendo, que nesta sociedade da desmedida é preciso introduzir a contenção, a moderação, a simplicidade voluntária... e isto se encaixa muito bem com nossa teoria.
Há pouco, lia uma frase de W. R. Lethaby, arquiteto amigo de William Morris e outros socialistas dos finais do século XIX, que diz: “Durante a época mais jovem de minha vida, tranquilizavam-me dizendo que o nosso país era o mais rico do mundo, até que descobri que o que eu entendia por riqueza era a aprendizagem e a beleza, a música e a arte, o café e as panquecas; talvez nos dias de pobreza que se avizinham haja mais de tudo isto...”. Afirmação muito em sintonia com essa sua proposta de relativizar as noções de riqueza e pobreza, questionando o etnocentrismo da sociedade ocidental.
É claro, e me lembro de uma anedota ilustrativa neste sentido. Por conta da Reforma Agrária, assumi a Direção Integrada dos serviços agrários de uma região de meu país, deixando de trabalhar em uma instituição onde havia 15 pessoas para ingressar em outra com 2.000. Como estabelecer uma relação de proximidade com tanta gente? Ocorreu-me pedir as datas de aniversário de todos os empregados por meio de minha secretária. O primeiro trabalho, todas as manhãs, era assinar uma carta para aqueles que faziam aniversário naquele dia. Um dia houve um acidente e um trabalhador ficou ferido, após alguns dias fui visitá-lo em sua casa para ver como estava. Ali, encontrei a carta emoldurada: isso é um ‘satisfactor’. Pode ser que para uma pessoa universitária isso não signifique nada, mas para outras pessoas significa muito: o reconhecimento de seu trabalho, o sentir-se apreciado, estimado. Essas questões têm a ver com os ‘satisfactores’. Temos enchido a vida de coisas e esquecido o fundamental, e isso tem a ver com o fato de que nós, seres humanos, vivemos necessitando sermos reconhecidos, sermos queridos. Algo que a nossa sociedade se esqueceu e que devemos recuperar. Formas simples de obter maiores graus de felicidade com algo que não implica gastos materiais, simplesmente em se preocupar com o outro.
Teria muitos exemplos semelhantes de “satisfactores” sinérgicos como este. Em uma apresentação do livro “Desarollo a escala humana” estava presente o economista Osvaldo Sunkel e apresentou, como exemplo, as cenas dominicais em que a família se reúne. Para além da alimentação, que dá conta da necessidade de subsistência, é preciso pensar esse momento como um espaço onde os afetos se recriam, acessa-se a informação, participa-se e é gerado determinado tipo de clima afetivo, de determinadas formas de relação entre nós, que permitem reproduzir aqueles valores imprescindíveis para a subsistência humana civilizada e com um horizonte de felicidade coletiva.
Uma das críticas mais construtivas e complementares feita à sua teoria seria a necessidade de incluir uma tipologia que diferenciasse ‘satisfactores’ ecológicos e antiecológicos. Por sua trajetória pessoal e intelectual, podemos subentender que você seria um aliado para introduzi-los...
Eu diria que os “satisfactores” podem ser destrutivos ou sinérgicos, possuem uma carga positiva e negativa. Quando nós pensamos em um “satisfactor” sinérgico pensamos naquele que consegue estimular positivamente o conjunto do sistema, razão pela qual naturalmente concebemos que é ecológico. Se entendemos que a ecologia é a expressão de uma demanda do ecossistema do qual fazemos parte, o sinergético implicaria uma espécie de coerência na visão, em longo prazo, que a visão de curto prazo em que estamos instalados não permite. Geralmente, a visão humana está ausente nos processos que nos superam em termos de espaço e tempo, custa-nos perceber a modificação das correntes oceânicas, as mudanças provocadas pela alteração na alimentação e a homogeneidade dietética que se traduz na perda de biodiversidade ou alterações imunológicas. A sinergia implica uma capacidade para potencializar cada um dos elementos que estão contidos dentro de um sistema, incluindo a natureza, de tal forma que cada um receba um agregado, uma potencialidade. Acolho a crítica no sentido de que nossa perspectiva procura dar conta disso, o que acontece é que a categoria, a nomenclatura, não se ajusta ao que as pessoas mais envolvidas na questão ambiental esperam.
Há tempo, suas reflexões sobre a sustentabilidade o levaram a defender a necessidade de um ecossocialismo ou socialismo ecológico. Uma noção que nas diferentes geografias (europeias, latino-americanas, anglo-saxãs...) foi se enriquecendo, sob a premissa de que uma redistribuição da riqueza, do trabalho produtivo e reprodutivo, bem como uma limitação no consumo de materiais e energia são igualmente necessárias. Como você imagina este projeto que inverte as prioridades do capitalismo?
O elemento medular tem a ver com uma mudança de chip ético-político, que consiste em mudar nossa forma de avaliar as coisas. Esta mudança nos permitiria perceber a existência de limites na base biofísica sobre a qual operam os sistemas humanos. Reconhecer os limites nos leva inexoravelmente a assumir a impossibilidade do consumo ilimitado, um discurso que temos interiorizado, mas que ainda não mudamos em nossas práticas. A partir da ecologia do Sul, no projeto Países Sustentáveis definimos a linha da dignidade, uma espécie de convergência no consumo.
Sempre tivemos clareza da indignidade do subconsumo, entretanto, não temos clareza do mesmo modo da indignidade do superconsumo, e esse passo é imprescindível para avançar para um horizonte compartilhado, ecossocialista. Não há outra maneira, não é possível universalizar as pautas de consumo ocidentais, devemos adotar o princípio de rebaixamento, o que implica a disposição ética e política de reduzir minha forma de consumo para aumentar as possibilidades daqueles que não possuem acesso. A linha da dignidade é uma ferramenta adequada que nos serviria para ir tomando consciência progressivamente. As atividades de educação ambiental tiveram um grande impacto, agora deveríamos integrar a perspectiva da distribuição, pois a sustentabilidade se ancora na relação que temos com o meio natural, mas também com o meio humano, social, cultural...
Esta crise multidimensional está afetando as bases do próprio sistema político. Em que medida se está apertando ou compatibilizando as relações entre democracia e capitalismo?
A característica fundamental do capitalismo, seu DNA, é seu impulso ao crescimento ilimitado como forma de manter a taxa de lucro. E fará qualquer coisa para crescer, reformular-se, construir novos imaginários, desenvolver economias fictícias como a financeira para poder continuar crescendo. O capitalismo se encarrega de forma permanente de construir escassez e de facilitar os processos de concentração.
Atualmente, vivemos uma tendência tão forte à concentração da renda como nunca se viu na história e, nesse contexto, recorre-se à arbitrariedade, pois não há elementos reguladores, uma vez que mediante a desregulação se concentra não apenas o capital, mas também o poder. E isso atenta contra a democracia. A democracia, dizendo de forma simples, seria a capacidade de que cada qual possa decidir por si mesmo sobre sua vida, mas a realidade é que em nossa cultura temos implantado uma série de “satisfactores” que são profundamente antidemocráticas. A própria profissionalização, a tecno-burocracia que em muitos casos faz operar mecanismos de tomada de decisão onde está ausente o critério político, e se supõe que este critério deveria expressar a vontade popular soberana. O critério “técnico” ou “científico” despreza vontades coletivas que fomos construindo nas democracias que nos orgulhamos de ter. Assim, deparamo-nos com sistemas democráticos com fortes incapacidades na prática para escutar as demandas populares, e a democracia fica reduzida a um procedimento, a um ritual como celebrar o aniversário. A democracia deveria ser celebrada todos os dias e não apenas nos momentos eleitorais, o que implica que o povo soberano possa exigir respostas, apresentar demandas ou pedir prestação de contas a respeito da coerência da oferta eleitoral.
Eu visualizo um cenário em que, de acordo com a crise ecológica vai se tornando mais evidente, avançaremos crescentemente para uma espécie de fascismo ecológico. O fascismo ecológico implica que em um dado momento, em razão de não se adotar as mudanças políticas e culturais que era necessário fazer, aqueles que têm o poder irão usar elementos próprios do fascismo para preservar essa concentração, reduzindo o espaço tolerável de crítica, restringindo as liberdades e criminalizando o protesto cidadão. Minha impressão é que a escassez de recursos provocada pelos processos de privatização e concentração de capital irá facilitar a aplicação deste discurso funcional, para continuar controlando este sistema estimulado por uma cobiça infinita, mesmo carregando riscos enormes para o futuro da democracia e ainda mais para a própria vida humana.
A América Latina se tornou uma das reservas de esperança e um dos principais laboratórios de inovação política em nível mundial, tanto a partir dos movimentos sociais como de algumas políticas públicas. Qual seria o balanço que você faz dos anos de governos progressistas? Quais seriam suas potencialidades, limitações, contradições... no que diz respeito a esta noção de transição para o ecossocialismo?
Em termos gerais, percebo um avanço e, por sua vez, manifesto minha absoluta desconformidade com o existente, com os rumos que tomaram estas democracias progressistas de nosso continente. A razão é que, lamentavelmente, nenhuma conseguiu romper o paradigma industrial, o que faz com que nos instalemos em sociedades com amplos processos redistributivos, onde houve uma melhora substantiva para setores que estavam marginalizados da sociedade e que foram integrados mediante as políticas públicas, mas que, em seu conjunto, este processo continua dominado pela crença do conto econômico do crescimento. Tristemente, em razão da conjuntura mundial e por conta do crescimento chinês e sua demanda por matérias-primas, nosso continente fica acoplado ao extrativismo. Pão para hoje, fome para amanhã.
Minha crítica é que os governos só assumem verbalmente o discurso crítico da descolonização e do paradigma eurocêntrico, subscrevem o sumak kawsay, o bem viver, mas formalmente, porque na política concreta que realizam, nas atuações, são funcionais ao modo dominante de acumulação que está instalado no planeta e que opera sobre uma subtração absoluta da energia humana e de recursos naturais. Não são pequenas as contradições. É que o imaginário não se modificou e é onde encontramos o principal problema. E as propostas alternativas carecem de suficiente apoio popular, porque enquanto não for rebatida essa concepção induzida pelo capitalismo de empobrecer nossas formas de trabalho, reduzida ao formato emprego/salário, vão continuar governando sob a ameaça do desemprego ou da oferta do pleno emprego.
Eu acredito que a humanidade está em condições de transitar para outra forma de distribuição da riqueza socialmente construída. Nossas capacidades materiais e tecnológicas possibilitariam isso, mas não temos sido capazes de construir as formas de avançar neste imaginário alternativo. Aí situo a perspectiva ecossocialista, pois a longo prazo devemos pensar em uma Renda Básica cidadã associada a uma linha de dignidade que nos desenhe os traços nos quais inserir a atividade humana para empregar a riqueza social. Uma riqueza que será mais imaterial, associada à regionalidade e ao enriquecimento de nossos mundos interiores, transitando de uma civilização com uma orientação exssomática para uma endossomática. Temos o desafio de que o colapso induzido pelo superdimensionamento de nosso sistema socioeconômico, ao ter posto toda nossa confiança no exterior, não nos prejudique de tal forma que não possamos realizar esta aventura. Isto obriga a repensar nossa institucionalidade pública, pois nossas instituições ao invés de potencializar os recursos imprescindíveis para a sobrevivência, em tempo de crise, mutilam os mesmos, falta-nos imaginação. Não há mais que pensar o sistema educacional, os sistemas de crenças, as organizações políticas... reprimem tudo o que seja dissidência, variação, heresia, criatividade ou vocação de transformação.
A Europa se encontra em um labirinto (perdendo peso internacional, legitimidade social do projeto neoliberal, tendências nacionalistas diante das contradições na arquitetura institucional, crise econômica assimétrica, fragilidade de projetos alternativos). Vista a partir da experiência latino-americana, como se percebe esta crise? Que paralelismos e diferenças você encontra em relação ao que significaram os Planos de Ajuste Estrutural dos anos 1980 e 1990?
O que experimentamos é um mundo unificado, a globalização implica no fato de que aquilo que um camponês faz, devastando na Amazonas, ou um trabalhador de uma indústria fabril de Taiwan, afeta todos nós, e não somente as decisões de Obama ou Hollande. O capitalismo opera expandindo uma espécie de bolha de expectativas, requer construir um imaginário em função de um universo virtual em que as palavras e práticas humanas geram realidade. Uma economia financeira que cresce baseada na fumaça.
Pensemos nos mercados de futuro, onde se compram os direitos sobre bens, mas antes de serem produzidos, tratamos de revendê-los. Transações e transações que não geram riqueza, mas todos nós fazemos isso como se gerassem. Este boom especulativo se traduziu em coisas como a bolha imobiliária, em que para dinamizar a economia damos crédito para pessoas insolventes. E estes insolventes compram moradias e como isso gera riscos, pois emprestamos dinheiro aos bancos para que o empreste aos insolventes, aumentando as taxas de juros... isto funciona como um calote piramidal.
Este modelo foi armado e trabalhado na América Latina, assim que se decidiu injetar na economia o excesso de liquidez dos países da OPEP, após a subida dos preços do petróleo, em 1979. Esse dinheiro financiaria aos países latino-americanos para financiar o consumo. Durante um breve período, desfrutou-se de uma paridade artificial das moedas, uma espécie de subsídio destinado a potencializar o consumo e não a indústria básica ou as infraestruturas, como era tradição na política latino-americana. Depois, essa massa monetária se muda para outros lugares e surge a crise que foi catastrófica. Além da ditadura no Chile, no início dos anos 1980, tivemos taxas de desemprego de 30%, em pesquisas focadas em determinados bairros de Santiago chegava a 90% o número de desempregados. Nesse momento, surge o crescimento das organizações econômicas populares para encarar o temporal, como as paneladas populares, que eram principalmente de mulheres.
Além disso, como estávamos em um contexto ditatorial, colocaram em marcha programas de emprego absurdos, destinados para que os desempregados se dedicassem a mover pedras de um lado para o outro da calçada, pois era imprescindível transferir recursos para que as pessoas não morressem de fome. Outro problema como o excesso de cachorros de rua, em Santiago, foi solucionado, pois era a única proteína animal a qual os setores populares tinham acesso... uma situação análoga aconteceu em toda a América Latina.
Desta crise, aprendemos muito, pois identificamos os ofícios de sobrevivência, descobrimos as formas por meio das quais as pessoas lidavam para poder sobreviver e você vai observando como havia um empobrecimento na forma de conceber o trabalho, fruto da cultura, dos imaginários introduzidos pelo capitalismo. Isto é o que está acontecendo na Europa, com a diferença de que nós não tínhamos um Estado de Bem-Estar constituído, razão pela qual barbarizou o aparato do Estado e deixou estremecendo a institucionalidade pública destinada a resolver necessidades básicas de saúde ou educação.
Os serviços sociais que estavam no processo de instalação foram reduzidos. No entanto, as organizações populares se fortaleceram, recuperou-se a memória perdida, a solidariedade e as estratégias de sobrevivência que se massificaram. Em definitivo, esta busca de lucro se move, posteriormente, para o primeiro mundo, pois nós, latino-americanos, já havíamos pagado com acréscimos, durante a década perdida dos anos 1990, com os Planos de Ajuste Estrutural, que sempre afetaram os mais pobres e as classes médias. O processo que estão começando a viver na Europa é parecido. Uma crise muito dura que apenas iniciou, mas que abre possibilidade para a recuperação das redes próprias de solidariedade, de comunidade, que estão presentes em todas as sociedades.
Quando a Europa se democratiza, após a II Guerra Mundial, é uma proposta política onde se perfila uma política com um alto conteúdo de ideias, de propostas, de visões de mundo, de utopias... que permite a mobilização. E tudo isto entra posteriormente em crise. Vemos como o populismo e os presidentes palhaços como Berlusconi proliferam ou como os compartimentos econômicos, culturais e políticos, em que a realidade havia se fragmentado para dar uma explicação, requebram-se. A história deixa de aparecer de forma nítida como um progresso linear, e isso é difícil de aceitar, pois viemos de uma concepção aristotélica, tomista, cartesiana e hegelianaa, em que a ideia se depura a si mesma, aperfeiçoa-se e acaba sendo mais exata por meio das instituições. Hoje, no entanto, percebemos a simbiose, a mistura, a hibridez do real, onde tudo está relacionado com tudo, e aí percebo um potencial enorme em termos de projeto civilizatório. A saída que vejo para Europa é recuperar a história, o inconsciente coletivo, grande parte das tradições destruídas pela própria Modernidade e o capitalismo. Um dos aspectos-chave será reexperimentar o campo, recuperar a agricultura tradicional e ecológica, os circuitos curtos de comercialização.
Há anos, você vem colaborando com grupos pacifistas na Colômbia e em outros lugares, buscando formas criativas de enfrentar a violência estrutural e a violência política. Com o que a não-violência contribui para a democratização da democracia?
Eu descobri que era pacifista graças aos meus amigos colombianos, como o personagem de Molière que falava em verso sem saber. No fundo, o movimento pacifista se encontra ligado ao reconhecimento dos limites do planeta e do humano, é a forma de recuperar uma relação com a natureza que nós perdemos. Algo que está presente nos clássicos do pacifismo como Thoreau, Gandhi, Luther King... onde encontramos essa valorização da relação com o entorno do qual somos parte constitutiva. Uma coincidência e sintonia que foram se tornando mais explícita, avançando para uma teoria da tradução, como sugere Sousa Santos. Já há literatura nesta linha de confluência, eu mesmo recuperei Barry Componer e o seu fazer a paz com a natureza, pois a visão ambientalista dispõe dessa harmonia que, a partir de outros discursos políticos, denominou-se como paz.
Nas sociedades tão excludentes, repressivas e auto-repressivas que nós geramos, enfrentamos dois cenários. Um em que a ausência de um giro epistêmico e moral oportuno implicará na morte de milhões de seres humanos, supondo um custo social, político e humano incomensurável. O outro em que haja essas transformações, mudanças que serão aceleradas pelos ensinamentos e o valor de exemplaridade das lutas pacifistas.
Algo que conflitos de décadas como o colombiano deixa claro é o papel das armas e da emergência da violência. Eu não acredito nas guerras justas, pois acabam desenvolvendo a lógica de perversão humana, que em longo prazo acaba nos autodestruindo. Na prática, o único caminho é o da não-violência. Minha vinculação afetiva com a Colômbia e os processos da América Central tem relação com o conhecimento que tive dos muitos mártires, santos... muita gente bonita que lamentavelmente deu sua vida em defesa de causas justas.
“Navegar en la incertidumbre” é o título de um dos seus últimos livros, em que relaciona a sustentabilidade com as teorias da complexidade para acabar reivindicando a noção de utopia, como sonho coletivo cimentado sobre profundas e duradouras transformações individuais. Como os movimentos sociais cadenciam os processos de transformação interna e externa? Que referências e exemplos tem em mente quando afirma estas questões?
Um processo difícil, sem receitas, que vai transcorrendo sem que tenhamos consciência disso, em uma espécie de transparência do existir. Um processo que se torna mais fácil de entender ao nos envolvermos no local, pois é no âmbito do cotidiano onde é possível sentir e pensar que as distinções irreconciliáveis, que a nossa razão estabelece, podem se harmonizar com as emoções.
Vivemos uma tendência para a universalização e a homogeneização, onde desaparece o que caracteriza cada qual; avançamos em um processo de abstração em que convertemos os próprios seres humanos em abstrações, seja um número em uma carteira de identidade, uma unidade dentro de uma amostra probabilística ou uma linha em um jornal. A única forma de confrontar este espaço, o único espaço inexplorável pelo capitalismo, está no âmbito do reconhecimento da própria identidade, o que nos faz singulares no mundo, que é a nossa pertença a outros espaços. Aquilo que me caracteriza como ser humano é a minha pertença a múltiplos espaços que compartilho com outros seres humanos, com os quais aprendi. O que considero meu é algo construído em e para a alteridade.
O espaço de contenção está no mais local e próximo. O território próprio onde se desenvolve a vida é onde reside uma contradição irreconciliável entre a tendência homogeneizante e a manutenção da especificidade de cada lugar, cada ser do universo. O mundo se empobreceu ao tirarmos dele a singularidade, razão pela qual precisamos voltar nossos esforços para a reconstrução do local destes espaços que antecipam as utopias.
Eu quando fui militante de um partido socialista, como fundador da Esquerda Cristã, meu discurso permanente era o de que nossa responsabilidade estava em adiantar, no tempo, a construção do socialismo. A única forma que tínhamos de demonstrar para as pessoas que a forma de viver socialista é melhor do que as outras estava em antecipar em nosso próprio cotidiano esta forma de vida. Uma demanda que estava na contramão da história, até que descobrimos os limites e voltamos a olhar para estes espaços, pois o grande drama que a maioria das propostas movidas teve, até agora, é a absoluta incoerência entre as teorias e as práticas.
Para finalizar, você foi reitor da Universidade Bolivariana do Chile e editor de revistas comprometidas com a reflexão crítica como Polis e Sustentabilidades. Que papel confere à educação e à divulgação cultural das revistas na hora de mudar o mundo? Diante da urgência de mudanças ecossociais, em que medida continuam sendo válidos os ritmos lentos da sedimentação de mudanças de valores e atitudes da educação?
Nós, educadores, incluindo os comunicadores, temos grande responsabilidade em tudo isto. Dispomos de pouco tempo e devemos nos esmerar em nossa criatividade e imaginação, recorrendo inclusive aos recursos legítimos, mas não lícitos em questões de copyrights e institucionalidades perversas nas quais estamos instalados. Avançar nestas perspectivas requer um imaginário diferente, requer pensar que as instituições em que fomos modelados e que reverenciamos foram criadas em um momento histórico concreto, dentro da possibilidade de um mundo sem limites. Agora, vivemos outro tempo histórico, estamos vivendo o dramatismo da urgência. Apelar à criatividade supõe pensar em como vamos saltar os obstáculos que as instituições nos colocam. Devemos reinventar a educação, a forma de nos comunicarmos e gerar consciência.
Nestes quarenta anos, avançou-se muito. Naquela época, já sonhava como um profeta nas margens, agora, situo-me dentro das correntes principais. Lamentavelmente, as transformações não acontecem com a velocidade que gostaríamos. Da mesma forma como aceleram outras dimensões da existência humana, nós também devemos acelerar nossas formas de atuação sobre os imaginários e sobre as políticas públicas, que em última instância vão condicionar o mundo que teremos.
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Da indignidade do subconsumo à indignidade do superconsumo. Entrevista com Antonio Elizalde - Instituto Humanitas Unisinos - IHU